Hou
Hsiao-hsien, chefe da experiência
"Eu
não desejo contar histórias,
meu desejo é antes criar climas, ambiâncias."
Hou Hsiao-hsien
Hou Hsiao-hsien controla a luz de Flores de Xangai
(Tony Leung à esquerda)
Cada vez que se vê
uma das grandes cenas de Hou Hsiao-hsien, tem-se a impressão que
seu cinema sempre alarga e ultrapassa a visão tradicional de linguagem
cinematográfica. Em filmes como A Cidade das Tristezas,
O Mestre das Marionetes, Adeus ao Sul ou Flores de Xangai,
o relato passa a assumir múltiplas dimensões, todas elas
jamais experimentadas anteriormente no cinema, e a própria lógica
narrativa parece estar em xeque. Ora é a montagem que nos coloca
em enrascadas (Flores de Xangai), ora é a seqüência
cronológica (A Cidade das Tristezas), ora é a profundidade
de campo que leva a história para segundo plano e coloca à
frente da tela coisas que aparentemente pouco têm a ver com o filme
(em toda sua carreira). Todo filme de Hou Hsiao-hsien estabelece uma outra
relação com o espectador, inaudita, inesperada. Mas
sua tática mais famosa, que desconcerta todo espectador rigoroso
de cinema, é sua noção de quadro cinematográfico,
certamente evoluída de seus primeiros filmes e Sandwich Man
até Cidade das Tristezas e Mestre das Marionetes,
mas que está presente desde o início. Num filme de HHH,
o quadro cinematográfico é sempre maior do que o enquadramento,
e todas as formas de off são utilizadas para violentar o
quadro: ações que acontecem fora da vigilância da
câmera, barulhos mil que não fazemos idéia do que
sejam, entrada e saída de personagens no plano... E, paradoxo dos
paradoxos, isso não é feito para colocar em questão
a narrativa, mas justamente para fortalecê-la! Todo filme de Hou
é inteiramente baseado em uma história, e mesmo uma história
bastante simples. A revolução, a função-Hou
reside justamente na forma de contá-la. E essa reflexão
sobre a narrativa ganha uma amplitude maior quando sabemos que ele tem
uma trilogia ambiciosa, que tenta dar conta de toda a memória coletiva
da ilha de Taiwan desde 1894, data do início do domínio
japonês, até os dias de hoje, a partir da democratização
e do começo de uma era de liberdade individual e de expressão.
Desde que ganhou atenção
internacional a partir da premiação principal em Veneza
por A Cidade das Tristezas em 1989 (infelizmente, até hoje
nenhum filme seu foi exibido comercialmente no Brasil), a imprensa inrernacional
vem reconhecendo em Hou um dos principais renovadores do cinema. E, de
fato, dentro do cenário dos anos 90, ele é certamente um
dos 5 realizadores mais importantes. Um filme de Hou Hsiao-hsien de primeira
impressionará pelo olhar distanciado que apresenta diante de seus
personagens. É a característica mais recorrente e que primeiro
salta aos olhos. Ele evoca dois lemas de Confúcio a partir de sua
própria obra: "Olhar e não intervir", "Observar e não
julgar". E seu ideal de cinema, ele o manifesta dessa forma: "É
inútil e vão julgar. O que eu quero é estar no meio,
e simplesmente ver o que se passa no interior de cada ambiente, sem procurar
trazer nenhum julgamento."
O método de
filmar de Hou Hsiao-hsien também lhe garante muitos méritos.
Adepto do plano seqüência, que ele vem evoluindo (197 planos
para Poeira no Vento, 109', 195 para A Cidade das Tristezas,
159', 37 para Flores de Xangai, 113'), seu jeito de filmar facilita
o trabalho dos atores (muitos deles não-profissionais) e o resultado
na tela é impressionante: todos os atores, até os segundos-papéis,
encontram uma naturalidade inacreditável. Outra coisa que garante
naturalidade à encenação de Hou é o jeito
como ele faz movimentar os personagens em cada cena. Seu cinema corta
todo o tipo de ligação com a teatralidade (luz principal
no ator, ninguém passa na frente de quem fala) e da lógica
clássica do plano (ator não poder sair do quadro, o protagonista
movimentar-se para o fundo do quadro). A mistura do distanciamento e do
plano-seqüência cria um efeito de realidade absurdo. Tanto
maior quando lida com "atores" que não podem ser ensinados (cachorros
em Adeus ao Sul, um bebê em A Cidade das Tristezas).
Hou Hsiao-hsien nasceu
em 1947 em Cantão, China continental. Sua família, de origem
pobre, mudou-se para Taiwan a fim de fugir da guerra civil entre o Partido
Nacionalista (Kuomintang) e o Comunista. Menino rebelde, quase envolvido
em trambiques como os anti-heróis de Adeus ao Sul, Hou foi
fazer escola de cinema - atividade considerada baixa e vergonhosa em seu
seio familiar - e se formou em 1972. Não era um dos melhores alunos.
Com 32 anos, ele realiza Cute Girl, seu primeiro filme. Ele fará
mais dois filmes no estilo do primeiro: musicais com cantores de sucesso,
muito populares em Taiwan e pouco ousados formalmente, sem nenhuma aparente
semelhança com a obra de HHH conhecida no ocidente (seus três
primeiros filmes até hoje jamais conheceram lançamento comercial
fora do Oriente).
Em 1983, vem a grande
mudança. Uma companhia estatal de cinema, recém-formada,
a Central Motion Picture Corporation, quer renovar o cinema do país
e escolhe como diretores artísticos alguns dos famosos escritores
de "Shantu Wenshi" (a literatura da terra), um movimento literário
que tentava refletir os problemas sociais e existenciais do povo de Taiwan
a partir da vida cotidiana de seus habitantes. Hou conheceu, assim, seus
dois maiores colaboradores até hoje: Wu Nien-jen (mais conhecido
agora como o protagonista de Yi Yi, de Edward Yang) e Chu Tien-wen,
até hoje sua roteirista. Com Wu Nien-jen, Hou Hsiao-hsien mais
dois realizadores fizeram The Sandwich Man, o primeiro filme do
chamado Novo Cinema Taiwanês (os outros realizadores são
Tseng Chuang-hsieng e Wan Ren). O Bonecão do Filho, o episódio
de Hou, já revela a tendência social que abundará
no restante de sua obra, e um certo gosto pela poesia do cotidiano que
ele jamais abandonará. The Sandwich Man é uma espécie
de Rio 40 Graus, de Roma Cidade Aberta de Taiwan.
A fase seguinte de
sua carreira explora todas as condições do realismo. Ancorada
na força da realidade, em muitas filmagens externas filmando as
relações familiares e deixando transparecer (sempre a partir
do filtro da vivência cotidiana) a tradição de intolerância
da China nacionalista. Seus filmes dessa época já deixam
ver um cineasta completo. Já completamente dominando a ritmo interno
de cada plano e ciente de que o cinema não é uma questão
de copiar a realidade, faz as suas primeiras obras-primas (Os Garotos
de Fengkuei, considerado por ele seu melhor filme, Um Tempo para
Viver e um Tempo para Morrer, Poeira no Vento). É Édipo
Rei, de Pasolini, que mostra a ele que o cinema não precisa ser
naturalista: "O cinema ocidental me ensinou que podemos nos desembaraçar
da opressão da lógica, das obrigações da montagem,
que podemos nos desfazer dos planos inúteis". Com Poeira no
Vento, Hou começa a ser exibido no ocidente.
Porém, é
com A Cidade das Tristezas que vem sua consagração
internacional. Em 1989, o filme concorre no Festival de Veneza e ganha
o Leão de Ouro. Em suas duas horas e meia, Hou Hsiao-hsien consegue
fazer mais do que um filme sobre os quatro anos mais sinistros da história
de seu país (1945-49): conseguiu fazer a História transformar-se
em memória nacional, contando o período atribulado
entre a derrota japonesa e o controle de Tcheng Kai-shek e seu partido
nacionalista. A partir daí, o cinema de Hou flutua entre o relato
impessoal de um povo (memória) e o relato pessoal do artista (narrativa),
sempre conseguindo bestificar o espectador que acredita ter encontrado
uma fórmula-Hou.
No final da década,
Hou realiza duas proezas fabulosas, tão antagônicas quanto
inovadoras: Adeus ao Sul e Flores de Xangai. Nesses dois
filmes, ora explorando a luz natural (Adeus) ou a artificial dos
bordéis do século XIX (Flores), Hou alcança
uma perfeição de mise-en-scène que combina
à perfeição com a escolha dos temas, misturando realismo
extremado com o mais profundo artificialismo, criando duas obras ímpares
na história do cinema, sem precedentes ou até mesmo parentes.
Em 2001, em Cannes, foi exibido Millenium Mambo, o filme seguinte
a Flores de Xangai. Ainda sem exibição comercial em qualquer
parte do mundo, suas resenhas levam a crer que o filme persegue o mesmo
caminho estético das duas obras.
"Eu não procuro
copiar a realidade, mas recriar alguma coisa a partir de uma idéia
e pelo trabalho da imaginação." O cinema de Hou é
antes de tudo um cinema que refletiu profundamente sobre o realismo, logo
cedo em sua carreira, e que percebeu que o cinema, como qualquer arte,
lida com um coeficiente de ficção que põem em xeque
um cinema de inspiração mais verista. Como contrapartida,
concebeu que a única coisa que ele poderia de fato documentar com
o cinema era o momento, aquilo que escapa à mestria técnica
mas que pode, entretanto, em momentos, ser capturado. Todo o cinema de
Hou Hsiao-hsien pode ser encarado do ponto de vista de documentários
sobre o momento. Cada plano não responde a nada além
de seu ritmo interno, a montagem assume seu papel não mais de normalizadora
entre dois planos, mas junta-os mantendo uma fissura irremovível
entre eles. O que remete à fórmula de Klee, comumente repetida
por Godard, segundo a qual a arte não reflete a realidade, mas
que é a realidade de um reflexo.
O cinema de Hou Hsiao-hsien
entretém com o espectador um jogo que só pode fazer sentido
após o término de cada filme. Pois o bom funcionamento de
cada plano de HHH obriga que o espectador só possa construir alguma
relação de causa-conseqüência, de temporalidade,
depois de terminada cada seqüência, cada plano. Um cinema da
inteligência, porque é o espectador que tem que construir
a história na sua cabeça. Mas um cinema também da
beleza, do gozo do olho, da mestria no uso da câmera, da sedução.
Hou entende os mecanismos do cinema: extrai uma beleza profunda (porque
exige um feedback do espectador) ao mesmo tempo que oferece ao
espectador um banquete visual primoroso. Godard dizia: lutar em duas frentes.
Hou pode-se dizer adepto.
Ruy Gardnier
Filmografia de
Hou Hsiao-hsien:
(nenhum dos filmes de Hou foi até
hoje exibido comercialmente no Brasil; apenas A
Filha do Nilo, Bons Homens, Boas Mulheres, Adeus Ao Sul
e Flores de Xangai foram exibidos em mostras)
1980 Jiu shi liuliu
de ta / Cute Girl (Menina Bonita)
1981 Feng'er
titacai / Cheerful Wind (Vento Gracioso)
1982 Zai na
hepan qigcao qing / Green Green Grass Of Home (A Grama Verde de Casa)
1983 The Sandwich
Man (O Homem Sanduíche) epis. Erzi de da wan'ou / Son's Big Doll
(O Bonecão do Filhinho)
1983 Fenggui
lai de ren / The Boys From Fengkuei (Os Garotos de Fengkuei)
1984 Dongdong
de jiaqi / A Summer At Grandpa's (Um Verão na Casa do Papai)
1985 Tongnian
wangshi / A Time To Live And A Time To Die (O Tempo de Viver e o Tempo
de Morrer)
1987 Lianlian
fengchen / Dust In The Wind (Poeira no Vento)
1987 Niluohe
nüer / The Daughter Of The Nille (A Filha do Nilo)
1989 Beiqing
chengshi / A City Of Sadness (A Cidade das Tristezas)
1993 Ximeng
Chengsheng / The Puppetmaster (O Mestre das Marionetes)
1995 Haonan
haonü / Good Men, Good Women (Bons Homens, Boas Mulheres)
1996 Zaijian,
nanguo, zaijian / Goodbye South Goodbye (Adeus ao Sul)
1998 Hai Shang
Hua / The Flowers Of Shangai (Flores de Xangai)
2001 Millenium
Mambo
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