Flores de Xangai, 1998



Michiko Hada em Flores de Xangai de Hou Hsiao-hsien

Flores de Xangai tem 1h53 e 37 planos. Um triunfo do plano-seqüência, a câmera realiza um verdadeiro balé entre os personagens do filme, filma às vezes o nada e sempre opta por jamais rodar um plano onisciente, qualquer que seja. Nenhum posicionamento de câmera tem a intenção de registrar um momento vital, um gesto a mais do que os outros. Hou Hsiao-hsien tem nesse filme uma aposta estética principal: registrar ambiências, captar atmosferas, compor os climas de um mundo povoado por desejos, ebriedades, comércios, jogos, gestos, vaidades e muito, muito luxo. Somos transportados às casas das flores, como eram chamadas na Xangai do século XIX as luxuosas casas de prostituição, onde os ricos "mestres" da época vinham encontrar amor e descanso, um refúgio do mundo exterior. E, ao contrário de Adeus ao Sul, seu filme anterior, Hou não coloca nada do mundo externo em seu filme. Em Flores de Xangai, tudo se passa dentro de quatro casas de flores, afortunadamente chamadas enclaves: são de fato territórios separados do meio que os rodeia, pelos costumes, pelos modos, pelo constante uso de ópio, pelos jogos, pelos rituais gastronômicos e amorosos, pela profusão de mobiliárias, bibelôs e luminárias trabalhadíssimas, índices da opulência simbólica daquele ambiente.

O décimo-quarto filme de Hou Hsiao-hsien é uma experiência. Pode-se pouco entender da história quando se vê o filme pela primeira vez (e a dificuldade para nós ocidentais em distinguir um chinês de outro é um fator preponderante nessa confusão), e mesmo assim se sentir maravilhado por ela, pois há mil outros detalhes inebriantes que aparecem diante de nós. Inebriante é, quem sabe, a palavra para definir Flores de Xangai. Por cinco motivos, do mais óbvio ao mais improvável: a) no filme, quase sempre se fuma ópio ou se bebe sem parar; b) pela extraordinária música de Yoshihiro Hanno, feita unicamente com instrumentos da época e repetida à exaustão no filme, dando a impressão de que estamos definitivamente perdidos num tempo e num espaço imprecisos e imprevisíveis; c) porque a estrutura narrativa nos impede de prever qualquer movimento que o filme tomará, escondendo ou mostrando apenas pedaços da vida dos personagens e preferindo apenas dar pequenos sinais daquilo que acontece. Como em Adeus ao Sul, o foco da narrativa fica muitas vezes em segundo plano, enquanto outras coisas se passam em primeiro plano; d) inebriante também porque, ao contrário da narrativa tradicional, onde se pede uma identificação a algum personagem, o filme coloca todos que aparecem diante da câmera em pé de igualdade, sem preferir um ao outro. O espectador se encontra numa armadilha preparada para ele: sem um personagem, sem um tempo cronológico muito bem demarcado (há um quase velado flashback no filme), sem grandes certezas quanto à relação dos mestres com suas flores, ele se vê impassível diante de um mundo repleto de beleza, absolutamente absurdado por um mundo ao qual ele dedica muita atenção e pouquíssima compreensão retorna. Flores de Xangai é um filme opaco; e e) pelos intrincados movimentos no filme: movimentos da câmera, sobretudo, todos muito lentos e ritmados, realizando uma dança inolvidada em toda a história do cinema e reenquadrando uma mesma seqüência com uma força só encontrada antes no melhor Mizoguchi (lembramo-nos do Conto dos Crisântemos Tardios). Mas também movimento dos atores: eles, que se movimentam pouquíssimo, como que respeitando ao ritual de embriaguez do filme, também sabem ser capazes de gestos absurdos e imprevisíveis, como Mestre Wang quando descobre que sua flor não lhe é exclusiva ou Jade quando seu mestre não quer morrer com ela.

O que é a câmera em Flores de Xangai? De um primeiro ímpeto, a falência da análise: nós não saberíamos dizê-lo. Ao mesmo tempo, surge a necessidade de falar. A câmera ocupa nesse filme um lugar que ela não ocupou em nenhum dos outros milhões de filmes realizados até hoje. A única metáfora possível seria uma criança antes de seus dez anos, impedida de se mexer muito, e que com seus olhos apenas escrutasse, impassível, aquilo que vai se passando diante de seus olhos. Assim no primeiro plano, que beira os dez minutos, quando, sem explicar ou apresentar os personagens (ele apenas revela – ou deixa transparecer, como seria mais apropriado – alguns detalhes sem muita importância acerca da vida dos personagens, mais interessados em jogar majong). Assim no último, quando Mestre Wang termina de comer e vai postar-se à frente de Carmim, que prepara o ópio, sem dedicar um olhar sequer a ele.

Mas o que a câmera consegue fazer é mais do que isso. Em pouquíssimos movimentos (travellings e zooms, sempre muito lentos, ensaiados milimetricamente), o que Flores de Xangai consegue é dar uma nova definição do quadro no cinema. Pois aquilo que está no quadro é apenas uma etapa do quadro inteiro. Vozes em off se muliplicam, os personagens abandonam o plano ou adentram nele, ou é a câmera que vai embora e os joga fora do plano. Mas ao contrário do plano-seqüência de Mizoguchi, onde um movimento reenquadra sempre para dar a melhor dimensão da cena, em Flores de Xangai o máximo que a câmera consegue é um balbucio, uma reles tentativa de capturar um mundo que a ultrapassa. Cada plano do filme é magistralmente realizado e ao mesmo tempo insuficiente: o plano se aproveita dessa insuficiência em seu projeto, e alarga a dimensão do plano como nunca nenhum filme antes conseguiu. Hou Hsiao-hsien esvazia o significado, tira o pleno-do-plano de seu fetiche e o transforma em eterno-incompleto.

O recurso do plano-seqüência não colhe seus resultados unicamente no andamento do filme. No nível da performance dos atores, ele desempenha um papel fundamental. Todos os atores encontram uma naturalidade e uma liberdade de movimentos só encontrável nos melhores Renoir, numa gestualidade mínima (pode-se falar num minimalismo do ator?) ou, antes de tudo, numa impassibilidade significativa, como no plano em que todos os atores se desolcam para ver o que acontece na rua enquanto Mestre Wang, interpretado por Tony Leung (em atuação digna de antologia), permanece fixo, sem mover um músculo da face, porque sofre pela infidelidade de Carmim. E, mesmo assim, nas cenas em que irrompe uma violência inesperada (tanto mais inesperada quanto destoa do tom geral do filme, lento), HHH é igualmente bem sucedido, e a não-interferência sentimental da câmera só torna a violência mais absurda e estúpida.

Mas falar num dos mais recentes filmes de Hou Hsiao-hsien é falar antes de tudo da luz. Se a luz em Adeus ao Sul era o motivo essencial do filme, e a história era apenas um pretexto para filmar todas as luminosidades da natureza, Flores de Xangai é o exato oposto. Quase todas as luzes do filme são fornecidas pelas lindas luminárias, e o ambiente que se constrói é prenchido por uma luz completamente artificial, apoiada sobretudo no vermelho e no laranja, à exceção do enclave Shangren, onde o tema dominante é verde. A iluminação do filme se torna um tanto mais forte quando vamos percebendo que todos os planos do filme são separados por fusões com o negro, transformando cada plano do filme em uma espécie de ilha, de um enclave, sem que nunca saibamos exatamente quanto tempo decorreu entre o plano anterior e o seguinte (pode ser desde um segundo a semanas inteiras). Numa fusão em negro, aquilo que por último desaparece de um plano e que primeiro aparece em um novo plano é a luz, a fonte de vida da impressão na película e, portanto, mãe do cinema. Mas a luz de Flores de Xangai nada conota. Ela serve apenas para compor o ambiente, sendo realizada a partir dos objetos e não da movimentação dos personagens. A luz é simplesmente poética; ela, segundo o lema de Fabrice Revault d'Allonnes, denota um "insensato do mundo".

Hou Hsiao-hsien parece com Flores de Xangai ter desejado fazer mais do que um filme. Fez uma experiência, um filme-monstro em que parecemos que estamos pela primeira vez pisando num cinema e experimentando o tempo. Flores de Xangai é um filme sobre o tempo. Mas também pelo espaço. Aproveitando-se do espaço e do tempo, Hou consegue recriá-los e transformá-los em coisas que nunca pensaríamos que eles pudessem sê-lo. Hou faz um cinema-instalação. E, para retomar a frase de um artista que certamente tem afinidades com Hou, Hélio Oiticica, o cinema desse chinês, celerado mas sereno, quer simplesmente propor propor.

Ruy Gardnier