Depois de dedicar três filmes ao passado de Taiwan, Hou Hsiao-hsien volta à temática jovem do início. E nada mais normal do que, depois de um ciclo, repensar a carreira e colocá-la em outro eixo. Mas entre O Mestre das Marionetes e Adeus ao Sul não há uma simples diferença, mas uma verdadeira mutação, como se de uma hora para outra Hou tivesse resolvido desprender-se de toda a obrigação narrativa, abalar de uma vez só todos os postulados do cinema corrente (narrativos, de enquadramento, lógica, etc.). Se há algum filme com o qual Adeus ao Sul se pareça, é Acossado ou Hiroshima Mon Amour. Toda a relação de estranhamento causado por uma obra que em nada se assemelha a qualquer obra realizada no mesmo período, toda a sensação de que se está diante de uma obra absolutamente transgressora e de fato inovadora só pode remeter à revolução que foi o cinema francês em 1959-60. Poderíamos pensar que esse redirecionamento da obra deve-se à mudança de temática: deixa-se de fazer uma pesquisa sobre a memória de uma nação para trabalhar sobre a juventude contemporânea, os neons e os telefones celulares que invadem as grandes cidades (em 1996). Mas um retrato da juventude já não era uma novidade a esse ponto da carreira de Hou. A ponto de ele já ter feito um filme com esse mesmo tema (Os Garotos de Fengkuei) e ter tangenciado a problemática em outros (A Filha do Nilo ou seus três primeiros). O que há de diferente em Adeus ao Sul é uma mudança de disposição em relação ao cinema, o que implica na criação de novos métodos, novas maneiras de contar histórias para exprimir novas sensiblidades. Adeus ao Sul leva aos extremos tudo aquilo que Hou Hsiao-hsien já havia realizado, e expande. O número de planos diminui bruscamente, o plano seqüência passa a imperar como chave narrativa predominante, toda a abstração temporal e espacial de seus filmes anteriores alcança níveis assustadores, o espectador consegue "entender" a história cada vez menos (e igualmente há cada vez menos a "entender"), a câmera assume um papel mais discreto, passando a captar pouca coisa e deixando muita informação subentendida ou acontecendo em off. O que muda definitivamente em Adeus ao Sul é que Hou Hsiao-hsien transforma-se em artista abstrato: suas preocupações principais são o ritmo, a luz, a atmosfera que se cria. Não que isso não esteja antes em sua obra, mas é a partir de Adeus Ao Sul que a história contada permite um grau de liberdade maior ao autor. A ponto do crítico Emmanuel Burdeau poder dizer que haveria mais interesse, a partir do filme, "em descrever o diagrama luminoso do que em resumir o roteiro". Pois é a luz, mais do que qualquer outro fator narrativo, que controla o décimo terceiro filme de Hou Hsiao-hsien e o faz pulsar. É a luz que é captada em todos os seus momentos – dia, tarde, crepúsculo, noite, madrugada, aurora –, modulada – a partir de filtros verdes ou vermelhos – e capturada em suas mudanças – entrada e saída de túnel, uma cortina que se abre, uma lâmpada que muda de lugar... Uma primeira seqüência,
longa, antes dos créditos, já nos dá toda a chave
de decifração do filme (se bem que só o saberemos,
como sempre na obra de Hou, ao final): Jack Kao (Kao), Lim Giong (Cabeção)
e Annie Shizuka Inoh (Mimi) se movimentando (eles não vão
parar de fazer isso ao longo de todo o filme), num trem que passa num
túnel. Kao está ao telefone celular, mas a conexão
está muito ruim e ele não conseguirá falar. Essa
falta de comunicação é fundante no filme: entre uma
geração e outra, entre Kao e Cabeção, entre
Cabeção e seus familiares, entre Mimi e seus amigos... Logo
depois dos créditos, veremos uma cena que já trabalha com
a falta de comunicação de opostos que não se atraem:
quando, após uma negociação (mafiosa, intuiremos,
mas saberemos depois), os chefões locais sentam-se à mesa
com Kao e Cabeção para uma ritual mesa de chá; Cabeção
recusa o chá, diz que prefere beber cerveja; os anfitriões,
impressionados com a quebra de hospitalidade de Cabeção,
passam a brincar com ele chamando-o de Cabeça Chata, o que culmina
com uma explosão de Cabeção, que levanta-se e joga
ao chão tudo que está em cima da mesa e violentamente vai
para cima de seus convivas. A violência num filme de Hou Hsiao-hsien
sempre é inesperada, imediata, jamais preparada pela narrativa
ou pelo trabalho de câmera. Ela é o oposto extremo da neutralidade
e calma com as quais Hou filma seus personagens, do carinho que dedica
a eles. Da mesma forma como, na luz, o personagem de Kao pode acordar
com um telefonema e, para melhor ver o ambiente, puxa um pouco a cortina.
Localizada frontalmente ao espectador, a janela entope de luz o plano,
com a mesma violência que uma briga ocorre no plano da narrativa. Mas se ficássemos restritos a contar a história do filme, esqueceríamos de contar o filme. Porque contá-lo não é aqui justamente seguir os passos dos personagens, mas antes aquilo que o filme nos mostra, que transcende em muito a mera história a ser contada. Assim, um balé de motocicletas nas florestas do Sul, a câmera frontal a eles e um piano tocando, com som ambiente ao fundo revela muito mais do filme do que toda a linha narrativa. Da mesma forma, um plano construído inteiramente em câmera subjetiva (supomos que seja a de Cabeção, pelo filtro vermelho que já havia sido utilizado anteriormente para mostrar uma visão sjubjetiva do personagem), onde a câmera entra num restaurante, passa pelo hall e chega a uma sala onde se festeja o sucesso de uma negociata. Uma música local emerge aos poucos e, quando se chega a essa sala, vê-se todo mundo comendo, bebendo e dançando. A câmera (Cabeção), no entanto, fica impassível, observando. O que parece acontecer a todas essas seqüências é a suspensão do tempo. Nunca sabemos exatamente o que se passa, quanto tempo tomam todas as coisas. Estamos absolutamente à mercê da direção de Hou Hsiao-hsien, extasiados pelo banquete visual oferecido, pelo chão que nos falta (a compreensão de um filme dele parece sempre nos faltar imediatamente quando o vemos pela primeira vez, e se estamos em público o sorriso amarelo é uma constante; mas que isso não nos engane: um filme de HHH sempre será decifrado a posteriori, sempre ganhará com o tempo, permanecendo cada vez melhor em nossa memória, como o vinho na adega). Em Adeus ao Sul, Hou Hsiao-hsien multiplica os artifícios de câmera, criando um estranho mosaico aparentemente criado por um caleidoscópio, e possivelmente tão à deriva do acaso quanto as imagens de um. Assim, uma cena quase mágica, em que Jack Kao dá de comer aos cachorros com seu hashi. A cena é longa, e os dois cachorros parecem fazer, como as motocicletas, um balé diante da câmera. Kao, da mesma forma, com uma serenidade de grande ator, trabalha com os palitos de forma a nunca dar de comer aos cachorros pela mesma extremidade que ele próprio come. O espectador fica tão atento a essa dança, tão absurda quanto a câmera de Hou nos faz crer que foi tudo minimamente ensaiado, que esquece que no fundo do plano se passa algo de importante para a narrativa (uma conversa de Cabeção com familiares). Metáfora da nova disposição de HHH: a história pode passar ao segundo plano, ela será compreendida de qualquer forma, mas o mais importante em cada plano é capturar uma atmosfera, a mágica de um momento, o ritmo interno de cada cena. Assim, parece que a história só serve de pretexto para cenas magníficas (o que todavia não é verdade: o roteiro de Chu Tien-wen tem uma contundência social e uma desesperança existencial muito muito fortes): presos no sul, os três amigos são liberados no fim da madrugada. Ainda está absolutamente escuro, e a cena em que eles são deixados na estrada só pode ser iluminada pela lanterna do carro e por lanternas de mão. Os capangas jogam na grama as chaves do carro que os levará de volta, e a câmera (tudo é filmado em apenas um plano) apenas registrará os pequenos registros luminosos em volta daquilo que as pequenas lanternas iluminam. O plano final, majestoso e imponente tanto quanto não parece nos deixar retirar uma única informação sobre os três personagens, consegue a proeza de registrar uma aurora, começando no absoluto breu para aos poucos começar a nos mostrar alguns traços, progressivamente. Hou Hsiao-hsien, o homem que filma os efeitos dos primeiros raios do sol. O cinema de HHH não se compara ao de nenhum cineasta, de hoje ou de ontem. Parece, ao contrário, o de um pintor impressionista em tom maior, empenhado em, seja qual for o retratado, filmar de fato todos os aspectos da luz. E assim como Monet filmava a mesma paisagem com apenas com a luminosidade diferente, nos fazendo perguntar sobre a natureza da pintura, HHH nos deixa perplexos diante do que a linguagem luminosa é capaz de fazer no cinema. Saímos absurdados do cinema, crendo que aquilo que acabamos de ver só pode ser feito por mágica. E que Hou Hsiao-hsien é um mago. O que certamente não está longe da verdade. Ruy Gardnier
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