Milionário e José Rico na estrada da vida



Estrada da Vida de Nelson Pereira dos Santos

Hoje, ano 2001, o fenômeno da música curiosamente denominada "caipira" ou "sertaneja" parece ter chegado a um nível de produção e alcance razoavelmente estável, parece estar encontrando enfim seu potencial de apelo e acesso às pessoas, além de apresentar produção constante.

Em 1979 a coisa ainda não era assim. Quando Romeu "Milionário" e José Rico estavam alcançando seu auge de vendas e popularidade, o público de música "sertaneja" crescia sem parar, e ainda estava bem distante do grande estouro de vendas que viria a ocorrer a partir do final dos anos oitenta. Mas a tradição desse gênero de canções já era considerável, desde as primeiras gravações de modas de viola, podendo-se chegar até a Catulo da Paixão Cearense, até Pena Branca e Xavantinho o sucesso de Tonico e Tinoco. Os arranjos pesados alternando-se com modas tradicionais já tinham grande receptividade e venda e atraíam milhares de admiradores, ainda antes da influência decisiva da música "country" americana e da conquista de maiores espaços na Tv e rádios e muito antes do que agora uns chamam de "breganejo".

No entanto, como ainda acontece, para a grande classe média-alta isso era apenas a música ruim de seus porteiros, empregadas e operários.

Decerto opinião é direito de todo mundo, mas aí, nesse caso e não só nele, a opinião varia incrivelmente dependendo da origem social de quem opina. Quando partiu para o mundo dos sambistas de seu Rio Zona Norte, Nelson Pereira dos Santos tratou de mostrar a admiração vaga da elite por estes artistas populares, admiração que raramente resulta em qualquer coisa além de alguns apertos de mão. Ao topar fazer este Estrada da Vida, sobre o início de uma dupla sertaneja, mais de vinte anos já haviam se passado, e nossa elite mais do que nunca estava se distanciando do que acontecia com o populacho.

Mas as coisas haviam mudado. Não há o reconhecimento da elite aos artistas no filme, como acontecia parcialmente no Rio Zona Norte, mas basta a eles o sucesso que vem pelo reconhecimento das multidões. Ainda parte da fase em que os artistas populares precisavam ter a noção básica de técnica para produzir (ao contrário da estrutura de colagens e reproduções que o funk e hip-hop atuais vêm experimentando), Milionário e José Rico fazem um filme defendendo suas origens desfavorecidas e interioranas, e sua ascensão graças ao talento e simplicidade de sua música. É a versão deles, e é muito bonita.

O filme foi um risco que eles correram, topando se enxergar com lentes bem-humoradas e destacando as durezas financeiras do início de carreira. São realmente incríveis as composições deles mesmos como personagens, engraçados e nunca posando de galãs ou super-homens, porque aquela não era a deles. Vivem duros, precisam arrumar trabalhos duros para garantir algum, têm dificuldade em arrumar tempo para dar início à carreira artística, e ainda vão agi feito crianças bobas pela vergonha de ver seu disco exposto na loja que os contratou para pintar paredes. Nelson Pereira nos apresenta o mundo dessa dupla com carinho, bom-humor e interesse pelo que, assim como as platéias que aparecem em seu filme, ele mesmo estava descobrindo.

Seria fácil justificar o filme como uma maneira eficiente de ganhar dinheiro para se dedicar a um projeto complexo, como o que viria a ser o seguinte na carreira de Nelson Pereira, Memórias do Cárcere. Pode-se, sim, assistir ao filme com o mero prazer de ver um grande cineasta exercitar-se, de continuar a fazer cinema.

Mas isso seria a suprema injustiça, considerar que foi feito um filme "pro povão" para ser seguido por um filme "sério".

Não, não. Estrada da Vida descobre uma gente que quer crescer a partir do que acha que tem de melhor, gente que quer crer que alegra os outros. Acaba por ter o espírito dessa gente, gentil e encantador.

Daniel Caetano