O inferno e as boas intenções


Rodrigo Santoro em Bicho de Sete Cabeças de Laís Bodansky

De boas intenções o inferno está cheio. E o Festival de Recife se pautou muito pouco no que diz o ditado. Porque se o inferno dos cineastas está ainda mais cheio de boas intenções, então o Centro de Convenções, com seus 2500 lugares, foi o lugar ideal para caldeirão, tridente e diabo. Vejamos os temas dos longas-metragens: cultura canavieira, viagem pelo universo nordestino, intervenção na UnB em 1968, o sucesso do movimento dos sem-terra, a vida das empregadas domésticas, a denúncia contra os manicômios, a passagem de ano 1999-2000 num morro carioca, o preconceito racial nas telenovelas, a vida do escultor Aleijadinho. Todos se escorando no "nobre", no inefável, no inexprimível das boas intenções para fazer crer que, com suas obras, estão colaborando para nos tornarmos enfim uma nação com indivíduos melhores e mais abertos à visão do outro. Se alguns filmes de fato conseguiram o feito de nos darem uma outra visão do outro, a grande maioria esbarra no "próprio" e acaba deformando esse outro "outro" aparentemente tão filmado pelas novas gerações, no número de tentativas, e tão infilmável, do ponto de vista das realizações.

Comecemos com o documentário, e logo com o vencedor da categoria, A Vida em Cana. É simplesmente impossível imaginar o que passou na cabeça do júri ao dar esse prêmio ao filme. O que há tempos atrás seria um mero registro em vídeo, com fotografia sofrível e sem qualquer estrutura narrativa ou interesse maior, ganha graças ao vídeo digital e à kinescopagem uma visibilidade maior, a possibilidade de disputar um festival de cinema e, aproveitando-se sabe-se como de um deslize do júri, acaba ganhando um importante prêmio nacional. E o que é A Vida em Cana? Em sua concepção, um filme que tenta alertar para os prejuízos sociais da lei contra os trabalhos não-mecanizados nos canaviais. Mas é de fato isso o filme? Não, absolutamente. Primeiro por uma falta extrema de noção de narrativa: o filme vai andando sem eira nem beira quando, do nada, surgem umas letrinhas em escrita cursiva, dando às partes seguintes do filme um título que não havia no começo. Para quem não leu a sinopse no catálogo do festival – um catálogo tristemente eivado de erros –, o filme seria até seus últimos minutos apenas um relato superficial da vida dos canavieiros. Torna-se, de uma hora para outra e tentando aproveitar-se do drama da vida dos trabalhadores de cana, um filme de contestação a uma lei do governo federal que proíbe – com fins de preservação do solo – a utilização de mão humana no corte da cana. Segundo, porque é um filme que, sob uma suposta preocupação com a vida daquelas pessoas que ele registra, esconde um outro filme: um filme sem política, onde jamais vemos a relação com aqueles que pagam os salários dos cortadores de cana. Num dado momento, parece que a luta de classes entrará em cena: um entrevistado nos diz que esteve doente e não pôde trabalhar, e por isso só pôde faturar, digamos, 100 reais... quando pensamos que o filme depois irá questionar a relação de semi-escravidão que é a dos cortadores com os usineiros, o filme muda de assunto. Como assim?

Logo depois da sessão do filme, a revelação: não vemos os usineiros porque eles estão justamente por trás da câmera. Todos os cortadores de cana foram entrevistados em plena fazenda do patrãozinho Jorge Wolney Ayalla, que revelava feliz da vida que conseguiu extrair os depoimentos daquelas pessoas porque elas simplesmente não sabiam que ele era o filho do coroné. Mais grave do que isso: não contente em agir de má fé com seus entrevistados, defende claramente a permanência de um modelo agrário que até hoje jamais deixou de empregar menores de idade realizando trabalhos forçados, sem auxílio médico, adicional por insalubridade ou sequer licença médica. Fosse qualquer um, a contestação era problemática, pois de qualquer forma é preciso que se estude o que se fará dos trabalhadores de cana. Mas, vindo de quem vem, de filho de usineiro, a premiação no festival fede a vexame. Infâmia escravocrata. Pelo menos, mais do que nunca, Uma Vida em Cana exibe nitidamente o que é a partilha social do cinema brasileiro hoje, majoritariamente: os pobres entram com os temas, temas nobres, sérios, enquanto os ricos ficam por trás da câmera, seja nas filas do Unibanco seja nas filas do canavial, brincando de cinema desde que não incomode o papai. Duplo roubo: rouba-se no modo de captação primeiramente, e depois rouba-se não dinheiro, mas a própria imagem do povo, que vai para as mãos da perene aristocracia brasileira. Nada de novo para o país do forró universitário ou do samba chique.

O Sonho de Rose – 10 Anos Depois, 2000 Nordestes, Barra 68... todos eles se inscrevem no paradigma das boas intenções, mas obviamente um simancol maior impede o estupro imagético que é Uma Vida em Cana. Filmes bem sucedidos, então? Nem tanto. É inevitável que se fique contente por tudo que O Sonho de Rose mostra, sobretudo quando se trata de uma solução de fato para a reforma agrária, é comovente ver certos relatos de 2000 Nordestes, e é especialmente bonito rever e repensar em Barra 68 o projeto de Darcy Ribeiro para uma universidade, mas o que de fato se fez com esses filmes? O fato de serem por si só a afirmação de uma coisa bela faz deles necessariamente belos? Não conseguimos pensar assim, ou pelo menos não tão depressa.

A começar por 2000 Nordestes, de Vicente Amorim e David França Mendes. O filme tem um projeto inicial belo, agregador nacional: filmar o nordeste não enquanto localidade geográfica, mas enquanto uma cultura fragmentada pelas demais regiões brasileiras, notadamente o sudeste, para onde seguem os retirantes, pretendendo uma melhor sorte onde supostamente (e de fato) existe mais dinheiro (mas talvez não para eles). Como retrato de um momento, 2000 Nordestes acerta, pelo tom rápido e dinâmico, pela música e pelo fast-forward, que querem dizer que não farão um retrato em profundidade do país, mas uma espécie de "inventário 2000" do problema. Sob esse aspecto, o filme acerta mais do que erra, sobretudo quando invoca o tema sudeste-nordeste, misturando gente que deseja fazer o caminho de volta, gente que ainda crê na ida para a região mais rica e gente que afinal deu certo no lugar em que está e não o trocaria por qualquer outro. mas outras escolhas não são tão felizes. Pontuar a narrativa com cenas de Deus e o Diabo na Terra do Sol e Vidas Secas é absolutamente desproporcionado, sob qualquer ângulo que queiramos encará-lo. A ida ao Monte Santo (local de filmagem do clássico de Glauber Rocha) e a pergunta ao vigia do local se conhece o filme é incrivelmente invasora, e sem qualquer propósito. O mesmo se pode dizer do comerciante nordestino que fala um inglês mais que macarrônico: uma casualidade interessante, mas pelo tamanho que a mise-en-scène lhe dá no filme, se transforma numa exploração complicada.

O Sonho de Rose – 10 Anos Depois se cobre de todas as desculpas em sua feitura: é urgente, fala sobre um tema fundamental da vida corrente do país, e mostra ao contrário do que o Governo Federal tenta mostrar – ao chegarmos em Recife, as primeiras imagens que vemos são de uma propaganda institucional que tenta convencer a opinião pública de que é inútil invadir terras improdutivas, tendo como elemento estético principal o sol poente depois de um dia de trabalho árduo, por excelência "o" elemento estético dos totalitarismos do século passado – que o Movimento dos Sem-Terra dá, sim, certo. O filme mostra as felicidades, mas também as rusgas de quem não conseguiu se adaptar perfeitamente a esse modo comunitário de vida, e consegue apesar de tudo compor um bonito painel da vida dos principais personagens do primeiro Terra Para Rose.

O que o filme não consegue é deixar de soar falso em inúmeras ocasiões que são claramente encenadas (um toc toc toc mais que rapidamente acompanhado de uma porta que se abre e, sem surpresas da anfitriã com a chegada de uma amiga longínqua ou a invasão de uma câmera) ou apoiar-se numa música de melodrama mexicano, cor-de-rosa demais para um tema tão polêmico. Constitui também um problema a presença eterna de Tetê Moraes em frente à câmera, na voz em off, sempre explicativa demais. Como filme, O Sonho de Rose incomoda em mais de um aspecto, e a construção de imagem é rala, não tem substância. Como registro, é um filme fundamental como nenhum outro em competição.

A Negação do Brasil se encaixa perfeitamente na categoria dos filmes aparentemente incriticáveis, tal a nobreza de suas intenções. De fato, seguindo a lógica do próprio filme, é impossível criticá-lo, pois se o faço é por trazer comigo incrustrada no peito a semente do racismo. Mas, de fato, sob a desculpa de diagnosticar nas telenovelas o fenômeno do racismo na sociedade brasileira, o filme comete uma série de equívocos imperdoáveis dada a sua ambição. O ponto de partida é duplamente empolgante: primeiro por considerar nas telenovelas um objeto de estudo válido da sociedade brasileira, algo mais do que necessário. Segundo, pela pesquisa de imagens e sua divulgação que o filme faz (esta é, de longe, a melhor coisa dele), colocando à disposição de mais pessoas num contexto completamente novo as imagens de telenovelas clássicas e contemporâneas.

No entanto, o filme cai vítima de dois pecados graves que o tornam simplesmente chato lá pela sua metade: primeiro, o complexo do sintoma. Para um filme narrado de forma tão pessoal, com a figura opinativa do diretor presente o tempo todo na narração, ele nunca ousa alçar vôos sobre as causas do que estamos vendo. Constatamos seguidamente o fenômeno da tipificação e do estereótipo, mas uma vez que eles estejam às claras, por que não ir mais fundo? Porque a pergunta que fica é: quem nunca teve dúvidas que o Brasil é racista não aprende nada com o filme. E quem ainda achava que não é porque provavelmente é racista, então não assistirá o filme. E aí, ele fala com quem, então? Nunca se analisa o fenômeno em suas causas, em sua História. Trata-se apenas de um sintoma tratado como "natural". Afinal se os negros aparecem quase sempre como empregados isso não é uma exclusividade das telenovelas, e falta ao filme a capacidade de dar este salto para fora da tela. O segundo pecado é menos grave, mas mais irritante, porque onipresente: uma vez que o filme tenha decidido que vai provar este racismo com cenas de novelas, a cruzada por esta argumentação torna-se algumas vezes ridícula. Lembrando a praga do politicamente correto, o filme inúmeras vezes apresenta cenas cuja interpretação na narração do diretor parece só fazer sentido com um olhar muito, mas muito parcial de quem deseja provar muito alguma coisa. Em alguns momentos, o constrangimento deste tipo de artifício consegue tirar de fato a força que as cenas por si só tinham. É a síndrome do "Nunca se pode repetir vezes demais algo", que de fato demonstra uma profunda descrença na capacidade do espectador de enxergar o que está nas cenas. Um dirigismo populista e diminuidor. O fato é que a estrutura do filme enfraquece completamente seu próprio discurso, que resulta vazio e repetitivo. Ao final o espectador sai do filme com uma revelação: somos racistas, nossas telenovelas também. Fascinante e surpreendente, não?

O mesmo, de certa forma, acontece com Barra 68 – Sem Perder a Ternura, de Vladimir Carvalho. Nesse filme, o autor de O País de São Saruê e Conterrâneos Velhos de Guerra realizou um filme certamente menor em sua obra. Menor não porque sua temática seja menor – mas porque a condução do filme não consegue se achar em nenhum momento, não consegue dar importância àquilo que era o principal achado documental do filme: as imagens da Universidade de Brasília em 1968. Sem muita substância ou estrutura, apesar de contar uma história interessante, pas mal, Barra 68 segue sem muitos percalços até que Vladimir Carvalho erra tudo. Depois de uma entrevista em que o interventor da universidade tenta cobrir tudo com panos quentes e desconsidera o projeto de Darcy Ribeiro para a UnB como algo inexistente, sem importância, o próprio Vladimir, num rompante de ódio, num off obviamente guiado pela paixão de ex-militante e muito pouco pela necessidade de lidar com o espectador, chama o interventor de mentiroso e solta outras cobras e lagartos. O problemático é que na entrevista víamos o mesmo Vladimir rindo, sereno, quase o Antônio Pitanga tomando uísque em A Idade da Terra de Glauber Rocha. Sem tentar perspectivar a atitude covarde do interventor em mentir para não se considerar culpado de nada, a atitude de Vladimir Carvalho se revela mais covarde ainda, atacando com um off quando poderia tê-lo feito ao vivo. Cinema de estufa não dá, não é polido nem político.

Político e, sim, com muita elegância, muito polido, é Eduardo Coutinho, sempre. Em Babilônia 2000, único documentário que já tinha tido exibição pública no Sudeste à época do Festival, Coutinho repete o procedimento de Santo Forte, subindo o morro para passar a noite de 31 de dezembro de 1999, data mítica na cabeça do povo brasileiro pelo conteúdo simbólico da "passagem do milênio", como toda a mídia equivocadamente vendia a data. Quanto às pessoas entrevistadas, elas mesmas não dão muita atenção ao evento, preferindo comemorá-lo como sempre, o que de certa forma diminui a força do projeto em relação ao de Santo Forte. Mas Babilônia 2000 parte do mesmo processo-Coutinho, de dar voz aos personagens e depois construí-los como personagens, sempre respeitando o tempo e a expressão de cada entrevistado. Uma personagem: a que canta Janis Joplin, um hibridismo cultural e uma complexidade de significação (blues num morro do Rio, espaço imaginário da pobreza tanto no blues quanto no morro, cantados por duas brancas), além de uma bela voz e nenhum inglês. Um problema: a voz do jovem entrevistador, que em momentos age de uma forma um tanto paternal com seus entrevistados, sucumbindo naquilo que Coutinho sabe evitar desde Cabra Marcado Para Morrer. Mas, com tudo que ainda possamos objetar a Babilônia 2000 (não muita coisa, de fato), o filme de Eduardo Coutinho era disparado o melhor filme em competição, e talvez não só o de documentário... Sorte de Eduardo Coutinho, que não estava presente para ganhar apenas um prêmio técnico cala-boca, enquanto o nojento Uma Vida em Cana faturava diversos prêmios e agradecia a Deus. Tendo filmado a sua Propriedade, só faltava a família para compor a TFP. Enquanto isso, circulavam os rumores que Coutinho não teria vindo ao festival por ter pedido uma viagem com menos escalas do que a que recebera. Como o festival não respondia nem que sim nem que não, acabou ficando sem passagem. Rumor, nada confirmado, mas certamente algo que acabou impedindo o pior.

Na competição de longas de ficção, um filme mais do que os outros mereceu todas as atenções do público: Bicho de Sete Cabeças. Seja pela presença do ator-galã Rodrigo Santoro, seja pelo retrato das instituições manicomiais ou mesmo pela devida qualidade do filme, falou-se do filme de Laís Bodansky muito mais do que dos outros. Faturando a grande maioria dos prêmios (perdendo apenas fotografia e melhor atriz para Domésticas – O Filme), houve quem dissesse que o Bicho ganhou de W.O. (ausência do outro participante, no futebol). Mas a piada não procede, ou não procede totalmente: sim, era de fato o melhor participante da competição, o filme mais bem resolvido do ponto de vista da narração e o mais inteligente na maneira de entrelaçar uma história a ser contada com a expressividade do ponto de vista formal (ou seja, transformar um argumento num filme), mas outros filmes poderiam igualmente ter ganho prêmios, como Latitude Zero e O Casamento de Louise, com fotografia e ator (Claudio Jaborandy) para o primeiro e atriz (Dira Paes) para o segundo.

A saída encontrada por Bicho de Sete Cabeças foi misturar a história real de um simples skatista que, entre outras coisas, fumava maconha e fora internado por seus pais e sedado por seus médicos como grande viciado, com a música de sonoridade incomum e de experimentação literária (poder-se-ia dizer literal, mesmo) de Arnaldo Antunes. A aposta é ganha na maioria das vezes, ousando como poucas obras no cinema brasileiro dar um espaço à criatividade e à poesia da câmera. Câmera que sabe também, nos momentos narrativos, estar sempre de perto demais, estar centrada na história não como o elemento onisciente, a câmera contemplativa do pior e menos criativo cinema hollywoodiano do mundo, mas como um olhar subjetivo que, na medida possível, não tenta compreender aquilo por que passa o personagem principal, mas tenta expressar. E de fato, se o cinema moderno é aquele cujo próprio manejo de câmera atesta a impossibilidade de uma totalização da idéia de mundo, apenas os filmes de Bodansky e Tata Amaral no Brasil são modernos.

O que poderia ser o elogio dos elogios, caso Bicho de Sete Cabeças não caísse em diversas ciladas no decurso da narrativa. OK, é preciso revelar todos os maus tratos pelos quais passam os doentes psiquiátricos, é preciso mostrar que a instituição asilo é um negócio como qualquer outro, e que despende todos os protocolos que puder para manter seus internos lá para sempre, mas é preciso pintar o médico-chefe do asilo da forma que foi feita? Numa cena absolutamente gratuita (é a única que foge do ponto de vista do personagem principal), o grande malvado conversa em telefone celular sobre os maquiavélicos planos para forçar a entrada de mais internos. A cena desagrada pelo seu maniqueísmo, sim, mas é o disparate de um momento de onisciência do roteiro que de fato estupra a sensibilidade do resto do filme. Além disso, o tratamento estético do filme, tentando tirar momentos "dramáticos" da desrazão dos personagens loucos (principalmente a cena em que Rodrigo Santoro desespera-se enquanto seu melhor amigo canta o clássico do duplo-sentido "Ela Deu o Rádio", de Genival Lacerda) acaba tipificando em demasia os internos do filme, minando aos poucos a paciência dos mais exigentes e trabalhando com a mão pesada demais. Mas mesmo com todos os senões ao filme, Bicho de Sete Cabeças é certamente um dos filmes mais interessantes surgidos nos últimos anos.

Em termos de objetivos, apenas um filme poderia de fato ser comparado ao Bicho como compreensão do cinema como meio de expressão de idéias: Latitude Zero. De fato, talvez a maior falha do filme esteja justamente neste excesso de ambições. Ele parece querer significar mais do que simplesmente ser. Há no filme um excesso de preocupação com o "sublime", ou seja, com o "artístico". No próprio discurso do diretor, nas matérias que saíram na imprensa desde o início do projeto, se percebia esta obsessão em mostrar o filme como uma proposta de cinema como "algo mais do que apenas uma diversão". A insistência neste ponto é cansativa, porque não atesta nada de fato de novo, nada que não se esteja vivendo desde, pelo menos, os anos 20. E escapa aos realizadores que quem deve criar estes significados e interpretações são, antes de mais nada, o filme, e depois o seu público, e até mesmo a crítica. Ao diretor devia caber simplesmente fazer o filme que sentisse necessidade. Este desejo de ser "arte" leva inúmeros filmes a uma inanição de vitalidade que resulta muitas vezes em filmes que são "menos" do que mera diversão, porque esta muitas vezes é muito mais por si só.

No caso de Latitude, ainda bem, nem é o caso. O filme possui elementos suficientes por si mesmo que deveriam deixar seus idealizadores mais relaxados, sem tanta preocupação em vender o peixe. Deixe que o peixe venda-se a si mesmo. Embora a fotografia e a encenação em alguns momentos sejam de fato excessivas na busca de "significados" maiores, simbolismos óbvios, há na interpretação dos atores, no jogo proposto uma força que escapa até mesmo às amarras deste "cinema de arte", algo de mais essencial. Há escolhas claramente felizes, como a locação que diz muito mais sobre o filme que qualquer discurso, como a opção de utilizar dois personagens centrais do filme apenas como presenças fora de quadro. No jogo entre masculino e feminino, nos caminhos rumo ao instintivo, ao animalesco, há suficiente pulsão para segurar o filme. Que é, inegavelmente, bem filmado, com uma fotografia impressionante, e uma direção precisa tanto na decupagem quanto na mise-en-scène. Um filme que, se não chega a cumprir tanto quanto o discurso promete, se sustenta o suficiente sem ele.

A grande surpresa do Festival nos longas de ficção foi, sem dúvida, O Casamento de Louise. Dada a carreira anterior de sua diretora, Betse de Paula, que realizou sem nenhuma dúvida, alguns dos piores curtas dos anos 90, não se poderia esperar nada do filme, especialmente com as implicações sociológicas que sua sinopse prometia. Mas, é uma enorme surpresa. Embora o filme possua sim cenas absolutamente constrangedoras (como os números musicais, que alguém precisava ter a sapiência de cortar fora do filme), e alguns diálogos que chegam a chocar pela inadequação, o que fica mesmo ao final da projeção é a sensação de uma retomada da linguagem da chanchada como possibilidade cômica válida e sutilmente crítica e atual. Claro que a chanchada hoje é, além de auto-referente, muito mais "inteligente", ou seja, cheia de jogos de roteiro e de linguagem cinematográfica digamos, "pós-modernos", que antes não eram parte do seu repertório. A cena da feijoada talvez seja a mais representativa e bem sucedida, neste sentido.

A primeira grande força do filme está na capacidade do roteirista José Roberto Torero escrever diálogos que são, inegavelmente e sob qualquer ponto de vista, hilários. Além disso, Torero consegue tornar um caminho que é óbvio desde o início (como em qualquer chanchada) em algo agradável, como deve ser numa comédia. Existe no filme este desejo de retomar a comédia de erros, misturando-a com a de costumes, e principalmente fazendo tudo isso num cinema de baixíssimo orçamento, que é adorável. Os créditos que mostram a equipe têm um pouco este clima de festa (especialmente porque mostram até os assistentes de produção). A segunda força do filme tem nome: Dira Paes. Se mesmo com atores que estão fraquíssimos como Silvia Buarque, Murilo Grossi, Mark Hopkins e as crianças, o filme ainda possui esta vitalidade, é simplesmente pela atuação de exuberante "timing" cômico e graça que Dira consegue dar. Ela consegue escapar incólume até dos tais números musicais, constrangedores sob qualquer olhar. Na verdade, o filme não escapa de uma grande irregularidade que vem do elenco (quando Dira não está em cena, o filme cai), mas também das cenas onde tenta "falar sério" ou fazer piada com coisa séria (como a cena com as irmãs da personagem de Dira), e aí é difícil defender a postura absolutamente redutora do roteiro. Inclusive por ser absolutamente desnecessária esta ambição "sociológica" do filme. Se assumisse mais a sua força cômica, podia ser um belo filme. Como está é um filme muito agradável com uma beça atriz e belos momentos.

Na parte dos filmes que adoraríamos esquecer que existem, estão Domésticas – O Filme, O Aleijadinho e Os Cristais Debaixo do Trono. Todos por motivos diferentes, mas com uma veemência quase igual mereceriam ser esquecidos pela memória cinematográfica nacional, como a vergonha da nação. O Aleijadinho menos: não se trata evidentemente de um filme repugnante, mal realizado tecnicamente ou de intenções socio-políticas complicadas. Trata-se mormente de uma obra anacrônica, absolutamente deslocada no espaço e no tempo. Em tempos de Nova História, onde se discute o grau de relevância enfim dos grandes nomes e a importância dos pequenos movimentos sutis, o meio em que os grandes nomes são criados e de onde afinal surgem os gênios, O Aleijadinho retorna com aquela velha ladainha do temos-que-contar-gravemente-as-grandes-histórias-dos-nossos-grandes-homens. Mas até aí não se vai a seu limite. Quando vemos obras como O Viajante (Paulo Cezar Saraceni) ou Palavra e Utopia (Manoel de Oliveira), vemos que os filmes são anacrônicos porque não pertencem a tempo nenhum, são obras que refulgem de eternidade. Ao passo que O Aleijadinho é apenas velho, pertence a outro tempo (e possivelmente nem nesse tempo, há 50 anos, seria considerado um filme bom). Trabalhando com os mesmos elementos (grandes nomes do passado, luz naturalista extrema, cenários reais), Oliveira conseguiu, com a figura do Padre Vieira, fazer uma verdadeira ode à palavra, ao gesto poético da língua. Ora, é justamente isso o que falta em todo o filme de Renato Santos Pereira. Em nenhum momento paramos para ver as obras do mestre. O filme simpesmente nos conta que ele é mestre e nós acreditamos. Vemos a sua dor diante da doença que lhe tira os movimentos do corpo, vemos as desavenças amorosas, vemos a deformação no rosto do herói (que começa impecável e termina no ridículo – não o rosto mas a maquiagem!), mas não vemos por um momento aquilo que diferencia o Aleijadinho de qualquer outro escultor daquele momento. Nem mesmo as obras têm muito valor no filme, só aparecendo quando seu autor as está terminando ou as dá por terminadas (ou seja, ainda o autor é mais importante que sua obra, elas só aparecem para denotar o estado do autor, e não o contrário). A única coisa que se pode salvar no filme é o estilo da fotografia, captando nas externas a beleza da luz natural, sem efeitos muito pronunciados e nem a marca do gênio de nossos fotógrafos recentes, moldados na publicidade e sempre em busca da "genialidade" óbvia demais.

Bom, e falando em "genialidades" e publicidade, não dá para escapar de Domésticas – O Filme. Se achávamos com os equívocos rodrigueanos da Conspiração (Traição e Gêmeas) que já tínhamos visto tudo em matéria de como os publicitários são capazes de fazer mau cinema, a O2 de São Paulo soube superar os marqueteiros cariocas. Nenhum problema com o simples fato de fazer publicidade, pois dois dos mais interessantes cineastas surgidos nos últimos quinze anos, Ugo Giorgetti e Beto Brant, são de publicidade. Mas não se pode dizer a mesma coisa de Nando Olival e Fernando Meirelles. Pois não bastasse o projeto de realizar um filme sobre empregadas domésticas – o que se revela ambicioso pelo fato de se tratar de um tema que é estranho à classe social dos diretores –, ainda trata-se de realizar uma "comédia leve" sobre o assunto. E não deu outra: da mesma forma que os filmes do cinema mudo utilizavam a ignorância das classes inferiores – e particularmente dos atores negros, quando não brancos pintados – para fazer humor "leve", Domésticas explora a classe das empregadas domésticas para retirar risos cheios de leveza dos patrõezinhos que vão ao cinema hoje. Sim, um filme de toque sutil pode fazer piadas sobre o grau de escolaridade ou a lógica um pouco obtusa de algumas delas, mas jamais mostrar a relação das empregadas com seus patrões. Rir do outro sim, luta de classes jamais: parece ser esse o lema de uma comédia leve. Mas não se creia ser Domésticas um filme mal intencionado em seus princípios: trata-se antes daquela boa intenção paternalista de relação patronal, secular no Brasil, indo de Gilberto Freyre a Humberto Mauro, que tenta observar como alguém que se depara com alienígenas e diz: "olha, eles existem!" Domésticas não é um filme de ficção sobre empregadas domésticas, mas um documentário não-intencional sobre a alienação social de uma classe que não consegue enxergar o outro lado daquilo que explora, que jamais passou em frente do quartinho de empregada, excrescência social ainda presente nas mais esquerdistas das famílias ricas brasileiras.

E é tanto pior ressaltar a "qualidade estética" do filme. Qualidade estética pode existir como um conceito "em si" na publicidade, mas jamais em cinema. Em cinema, o que vale é a adequação da estética ao enredo que se está contando. No caso de Domésticas, a escolha dos diretores foi enjaular as empregadas em paredes clean, com uma direção de arte elaboradíssima e uma fotografia altamente virtuosa. Ora, se filmamos e fazemos piada com a ignorância dos personagens principais, qualquer virtuosismo técnico se transforma automaticamente no mais descarado escárnio; a técnica cinematográfica, diante da bobagem que cada personagem comete, mostra-se inadequada para retratar o personagem em sua singularidade, tornando-se unicamente exploratória e profundamente desagradável. E lembremos que não são apenas personagens, em sua individualidade; são domésticas, o gênero inteiro, como nos informa o título do filme... Domésticas é A Vida em Cana em forma de ficção "despretensiosa". Patrões – A Visão Deles.

Não há muito como definir Os Cristais Debaixo do Trono. Se apenas uma palavra fosse necessária: patético. Infelizmente, por mais que se busque, não se encontrará mais nada. O filme faz ver todo o mal que representam obras como a de Antonioni ou Khoury, quando nas mãos de realizadores completamente incapacitados de realizar obras que consigam um contato com a "alma humana". O filme é uma sucessão de cenas ridículas, com diálogos que só podem ser vistos como piada, de tão impostados, auto-importantes, "sérios", quando são apenas o óbvio do óbvio, parecem escritos pela Silvia Popovic. Um tratamento visual e de luz "artístico", cheio de abajures e contra luzes completamente inadequados. Os atores se arrastam perdidos em cena, sem qualquer nexo, sem qualquer possibilidade de construção de nada. A música, meu Deus, a música... é indescritível. E a trama, que se reveste de uma aura de mistério, é simplesmente absurda na sua mal trabalhada forma. É como se fossem todos personagens com 3 anos de idade mental, requerindo da platéia o mesmo esforço para crer neles de alguma forma. No final a única pergunta que fica do filme é: em nenhum momento (seja no roteiro, filmagem ou montagem) será que ninguém teve a coragem de dizer para o diretor: "Olha, não!"????

Com esses novos acréscimos à nossa cinematografia já tão combalida, seria o caso de perguntar: para que serve esse cinema? Será que enquanto deixarmos a escolha dos filmes a serem feitos nas mãos dos diretores de marketing das grandes empresas, fazendo realizadores sem o menor tato fingirem-se de cineastas e pedirem 2, 3 milhões de empresa e empresa e conseguindo dinheiro para fazer filmes porcos em detrimento de diretores talentosos e/ou iniciantes, que se dispõem a trabalhar com pouco dinheiro e com muito tesão, só teremos esses filmes péssimos em todos os sentidos, que não realizam a contrapartida social do investimento feito (ou seja, não são exibidos por muito tempo nem discutidos pela opinião pública), não retornam o dinheiro investido e só empregam os técnicos que já seriam empregados em outros terrenos do audiovisual? Enquanto essa lógica persistir, só faz cinema quem titio mandar. Ou seja, estamos presos naqueles três ou quatro para quem vai todo o dinheiro, mais uns dez que recebem prêmios cala-boca, ou seja, fatias menores. Se o Festival do Recife conseguiu nos dar uns poucos momentos de beleza cinematográfica, entretanto resta-nos perguntar, em meio a tanta miséria de idéias e de inteligência: que cinema brasileiro é esse?

Eduardo Valente e Ruy Gardnier