Walter
Benjamin e o cinema na era da estetização da política "Manejar a técnica não como um fetiche do holocausto, mas como uma chave para a felicidade." Esta era a esperança que o filósofo frankfurtiano Walter Benjamin depositava em uma geração capaz de ver na guerra não mais um episódio mágico, mas sim a imagem do cotidiano. Com esta descoberta, os homens estariam aptos a superar tanto a guerra "eterna" invocada pelos novos alemães (fascistas) quanto a "última" guerra, com a qual se iludiam os pacifistas. E mais: poderiam transformá-la numa guerra civil – "mágica marxista, a única à altura de desfazer esse sinistro feitiço da guerra"1. A utopia benjaminiana2, expressa no ensaio Teorias do Fascismo Alemão, de 1930, mostrou-se inócua diante da crescente aceitação que a apologia da guerra ("misticismo bélico", dirá um sarcástico Benjamin) suscitava junto a sociedade germânica. O tipo de irracionalismo e idealismo que animava a publicação de Guerra e Guerreiros (1930), coletânea organizada por Ernst Jünger, representava um apelo imensamente maior do que a crítica militante de Walter Benjamin. Essa tendência não levaria apenas a mais uma "guerra de alcance planetário" (expressão entusiástica dos guerreiros-autores do livro): ela possibilitaria também o apoio irrestrito – por ação ou omissão – a um regime ditatorial insano e ao mais bárbaro projeto de extermínio massivo já registrado na história: o Holocausto judeu. É mais do que sugestivo que o célebre ensaio A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica (1935/1936) tenha o cinema, a rigor, como seu objeto de análise. Cinco anos antes, Benjamin dedicava sua crítica à obra literária fascista – a coletânea organizada por Jünger. Sua aguda percepção da natureza "estetizante" do fascismo alcançaria em A Obra de Arte sua mais contundente expressão. A auto-alienação da humanidade, diria o filósofo, chegara a um ponto capaz de levá-la a viver "sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem" (e o que fez a Alemanha hitlerista, senão abraçar este tipo de vivência?). "Eis a estetização da política, como a pratica o fascismo. O comunismo responde com a politização da arte"3 O comunismo - entre outras correntes políticas e ideológicas –, como sabemos, não respondeu à altura das exigências que os movimentos fascistas e o nazismo alemão exigiram de seus oponentes. O próprio Benjamim não deixou de ser uma vítima desta incapacidade. De uma forma ou de outra, os partidários da razão mostravam-se inaptos a perceber na sua totalidade a força e o alcance dos movimentos massivos engendrados pela direita em toda a Europa. Como observara Benjamin no texto que ainda hoje é um dos marcos da teoria do cinema, as metamorfoses no modo de exposição geradas pelas técnicas da reprodução tinham afetado também a política. Entrara em campo um novo processo de seleção – agora diante do aparelho técnico – do qual emergiam, "como vencedores, o campeão, o astro e o ditador"4. Pois este seria, de fato, o século dos astros e dos ditadores: e ambos se dirigiram às massas através do cinema. "Todos os esforços para estetizar a política convergem para um ponto. Esse ponto é a guerra", profetizara Walter Benjamin. A nova guerra mundial seria a oportunidade ideal para oferecer um objetivo aos grandes movimentos de massa, enquanto os meios técnicos de então fossem mobilizados em sua totalidade, "preservando as relações de produção existentes"5 Pois a guerra, já antecipada, não se fez demorar. Ela significou para a indústria do cinema o mais efetivo impulso em seu desenvolvimento. As grandes fábricas de sonhos nasceram sob o signo da guerra, florescendo ao longo dos dois conflitos mundiais, conforme mostrou Sigfried Kracauer no clássico De Caligari a Hitler. Uma História Psicológica do Cinema Alemão (1988). Mesmo o desenvolvimento estético do cinema – a especificidade de sua linguagem – nota Paul Virilio – deve sua maturidade às lições deixadas pelo uso da parafernália armamentista. "O cinema entra para a categoria das armas a partir do momento em que está apto a criar a surpresa técnica ou psicológica", já que não existe guerra sem representação ou arma sofisticada sem mistificação psicológica diz Virilio em Guerra e Cinema6, bela reflexão sobre a história da relação do medium por excelência do século XX com os avanços técnicos e científicos militares. O cinema esclareceria, assim, porque "abater o adversário é menos capturá-lo do que cativá-lo, é infligir, antes da morte, o pânico da morte" (idem)7. Com o que Goebbels concordaria plenamente ao proferir seu célebre discurso, no Congresso do Partido em Nuremberg, em 1934, imortalizado nas imagens de O Triunfo da Vontade (1936), pela cineasta Leni Riefenstahl: "O poder baseado em armas pode ser uma coisa boa; é porém, melhor e mais gratificante conquistar o coração de um povo e mantê-lo"8 Nem mesmo o chamado "Programa de Eutanásia" – bem como o Holocausto judeu – prescindiu das imagens em movimento. Mesmo obras-primas expressionistas promoveram bem mais do que familiaridade com o que Kracauer chamou de "procissão de déspotas": elas já expressavam o típico preconceito contra as massas, de forma geral, e contra os judeus, em particular, como em O Golem, Como Ele Veio ao Mundo (1920), de Paul Wegener. Documentários abomináveis de contrapropaganda, como O Führer Doa uma Cidade aos Judeus (1944), procuravam confundir a opinião pública a respeito do genocídio, enquanto Vítimas do Passado (1937) invocava o mais rasteiro darwinismo como justificativa para estancar a propagação dos "imbecis". Obras ficcionais como O Judeu Süss e "documentários" como O Eterno Judeu repisavam, em 1940, a acusação quanto à natureza intrinsecamente pervertida do povo judeu, preparando a aceitação pública para a deportação em massa, o confinamento e a matança. Pode ser irônico que uma das últimas providências de Goebbels, à frente de um Terceiro Reich já moribundo, tenha sido a realização de um grandioso espetáculo cinematográfico, Kolberg – um drama histórico sobre a resistência dos bravos soldados alemães, numericamente inferiores, ao exército de Napoleão. Em abril de 1945, Kolberg é finalmente exibido para um seleto grupo de funcionários do ministério. O filme não seria exibido ao público alemão pois Berlim ardia sob incessante bombardeio aliado. Conta a lenda que, ao final da projeção, Goebbels faria uma insólita espécie de "previsão": em 100 anos, uma obra semelhante a Kolberg seria realizada, enfocando os feitos "heróicos" do Nacional-Socialismo. "Cavalheiros, vocês não querem fazer parte desse filme? Posso assegurar-lhes que será belo e edificante". O fechamento não deixa de ser surpreendente. Estaria o Ministro da Propaganda imaginando-se em um papel que – posteriormente – seria interpretado nas telas? É o que sugere sua afirmação final: "E a partir desta perspectiva é que vale a pena resistir. Resistam! E daqui a cem anos, o público não irá assobiar e vaiar quando vocês aparecerem na tela". "Em plena derrota militar, Goebbels queria fazer deste filme o maior de todos os tempos, uma epopéia que ultrapasse, por seu fausto, as mais suntuosas produções americanas". Assim, mais uma vez, a Alemanha cedia à obsessão pelo "arsenal de percepção americano"9 – o cinema hollywoodiano que tanto fascinava o Führer e seu todo poderoso Ministro da Propaganda e da "Ilustração do Povo" ("patrono" do cinema sob o Terceiro Reich). Ao contrário do que sonhara Benjamin, a técnica do cinema, como evidenciou a história, seria manejada sobretudo como um fetiche do holocausto. Também as pretensões e/ou esperanças do Ministro da Propaganda de Adolf Hitler mostrar-se-iam fantasiosas. Para as gerações nascidas após a II Grande Guerra e a Shoah (com maior força à medida que estas mesmas gerações se distanciavam, temporalmente, dos fatos ocorridos) a história seria – em grande parte – narrada sob a ótica dos vencedores: milhões de pessoas em todo o mundo testemunharam – como espectadores – os terríveis acontecimentos do século dos astros e ditadores, sob a ótica da indústria do cinema. Adriana Kurtz |
1 Walter Benjamin, Obras escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, p. 72 2 Contra o projeto histórico e a ideologia representada pela obra de Jünger, diz Willi Bolle, o filósofo teria apostado em três alternativas. Em Teorias do Fascismo (1930), uma ilusória guerra civil; no clássico A Obra de Arte (1935/36), a visão de uma massa emancipada e solidária, organizando-se segundo sua consciência de classe; no derradeiro Sobre o Conceito de História (1940), os oprimidos, "sujeitos do conhecimento histórico" (1994:237). "Nota-se nesse intelectual preocupado com o tempo de trevas no século XX, uma constante necessidade de utopias políticas, que não são senão a versão intelectual das necessidades comuns de ficção" (idem). 3 Benjamin, op.cit., p.196 4 idem, p.183 5 idem, p.195 6 Paul Virilio, Guerra e Cinema. São Paulo: Página Aberta, 1993. 7 As armas, antes de serem instrumentos de destruição, são instrumentos de percepção. Daí que a guerra "não pode jamais ser separada deste espetáculo mágico porque sua principal finalidade é, justamente, a produção deste espetáculo" (Virilio, op.cit). A frase de Ortega y Gasset, usada como epígrafe no jornal chileno de extrema direita Orden Nuevo, completa esta idéia: "A força das armas não é uma força brutal, mas uma força espiritual" (apud Virilio). 8 Goebbels apud Siegfried Kracauer, De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p.191 9 Virilio, op.cit., p.16 |