Assim como nos leva à savana, para
ver um leão, o cinema pode nos levar ao Nordeste, para ver retirantes.
Nos dois casos, a proximidade é produto, construção
técnica. A indústria, que dispõe do mundo, dispõe
também de sua imagem, traz a savana e a seca à tela de
nossos bairros. Porque garante a distância real, entretanto, a
proximidade construída é uma prova de força: oferece
a intimidade sem o risco, vejo o leão, que não me vê.
E quanto mais próximo e convincente o leão estiver, maior
o milagre técnico, e maior o poder de nossa civilização.
A situação real, portanto, não é de confronto
vivo entre homens e fera. O espectador é membro protegido da
civilização industrial, e o leão, que é
de luz, esteve na mira da câmara como podia estar na mira de um
fuzil. No filme de bichos, ou de "selvagens", esta constelação
das forças é clara. Doutro modo, ninguém ficaria
no cinema. Por este prisma, a despeito de sua estupidez, resulta destas
fitas uma noção justa de nosso poder; o destino dos bichos
é de nossa responsabilidade. Noutros casos, entretanto, a evidência
tende a se apagar. A proximidade mistifica, estabelece um contínuo
psicológico onde não há contínuo real: o
sofrimento e a sede do flagelado nordestino, vistos de perto e de certa
maneira, são meus também. A simpatia humana, que sinto,
barra a minha compreensão, pois cancela a natureza política
do problema. Na identidade perde-se a relação, desaparece
o nexo entre o Nordeste e a poltrona em que estou. Conduzido pela imagem
sinto sede, odeio a injustiça, mas evaporou-se o principal; saio
do cinema arrasado, mas não saio responsável, vi sofrimento,
mas não sou culpado; não saio como beneficiário,
que sou, de uma constelação de forças, de um empreendimento
de exploração. Mesmo grandes fitas de intenção
cortante, como Deus e o Diabo e Vidas Secas, têm
falhas neste ponto, – causando, me parece, uma ponta de mal-estar. Estética
e politicamente a compaixão é uma resposta anacrônica;
quem o diz são os próprios elementos de que o cinema se
faz: máquina, laboratório e financiamento não se
compadecem, transformam. É preciso encontrar sentimentos à
altura do cinema, do estágio técnico de que ele é
sinal.
* * *
O filme de Rui Guerra, que é uma
obra prima, não procura "compreender" a miséria. Pelo
contrário, ele a filma como a uma aberração, e
dessa distância tira a sua força. À primeira vista
é como se de cena em cena alternassem duas fitas incompatíveis:
um documentário da seca e da pobreza, e um filme de enredo. A
diferença é nítida. Depois do boi santo, com seus
fiéis, depois da fala do cego e da gritaria mística, a
entrada dos soldados, motorizados e falantes, é uma ruptura de
estilo, — que não é defeito, como veremos. No documentário
há população local e miséria; no filme de
enredo o trabalho é de atores, as figuras são da esfera
que não é da fome, há fuzis e caminhões.
Na mobilidade facial dos que não passam fome, dos atores, há
desejo, medo, tédio, há propósito individual, há
a liberdade que não há no rosto opaco dos retirantes.
Quando o foco passa de uma a outra esfera, altera-se o próprio
alcance da imagem: a faces que têm dentro seguem-se outras que
não têm; os brutos são para ser olhados, e humanidade,
trama ou psicologia, é só nos rostos móveis que
se pode ler. Uns são para ver, e outros para compreender. Há
convergência, que resta interpretar, entre esta ruptura formal
e o tema do filme. O ator está para o figurante como o citadino
e a civilização técnica estão para o flagelado,
como a possibilidade está para a miséria pré-traçada,
como o enredo está para a inércia. É desta codificação
que resulta a eficácia visual d’Os Fuzis.
O olho do cinema é frio, é
uma operação técnica. Se for usado honestamente,
produz uma espécie de etnocentrismo da razão, diante do
qual, como ao contato da técnica moderna, o que for diverso não
se sustém. A eficácia violenta da colonização
capitalista, em que razão e prepotência estão combinadas,
transforma-se em padrão estético: imigrou para dentro
da sensibilidade, que se torna igualmente implacável, para bem
e para mal, — a menos que afrouxe, banalizada, perdendo o contato com
a realidade. "Dissolve-se tudo que é fixo e empedernido, mais
o séquito das tradições e concepções
vetustas., profana-se o que é santo, e os homens são forçados,
finalmente, a ver com vista sóbria as suas posições
e relações." Desde o início, n’Os Fuzis, miséria
e civilização técnica estão consteladas.
A primeira é lerda, cheia de despropósito, um agregado
de gente indefesa, desqualificada pela mobilidade espiritual e real
— os caminhões — da segunda. Embora a miséria apareça
muito e com força, as suas razões não contam; está
em relação, e tem sinal negativo. Ao mostrá-la
de fora e de frente, o filme se recusa a ver nela mais que anacronismo
e inadequação. Essa distância é o contrário
da filantropia: aquém da transformação não
há humanidade possível; ou, a na perspectiva da trama:
aquém da transformação não há diferença
que importe. A massa dos miseráveis fermenta, mas não
explode. O que a câmara mostra nas faces abstrusas, ou melhor,
o que as torna abstrusas, é a ausência da explosão,
o salto que não foi dado. Não há, portanto, enredo.
Apenas o peso da presença, remotamente ameaçador. A estrutura
política traduziu-se em estrutura artística.
Já os soldados, por contraste, é
como se pudessem tudo. Em padrão citadino são homens quaisquer,
de classe baixa. No lugar, entretanto, fardados e ateus, vadiam pelas
ruas como se fossem deuses, — os homens que vieram de fora e de jipe.
Falam de mulheres, dão risadas, não dependem do boi santo,
é o que basta para que sejam, efetivamente, uma coisa nova. São
grandes cenas, em que a sua empáfia recupera, para a nossa experiência,
o privilégio de ser "moderno": ser citadino é ser admirável.
O mesmo vale para o comerciante e o chofer de caminhão. Os seus
atos importam; estão à altura da História, cujas
alavancas locais — armazém, fuzis, transporte — afetam. Nestas
figuras importa mesmo o que não passe de intenção;
a má-vontade dos soldados, por exemplo, faz ver soluções
alternativas para o conflito final. Noutras palavras, onde há
transformação de destinos conta tudo, e há enredo.
— Abriu-se um campo de liberdade, em que nos sentimos em casa. A natureza
da imagem se transformou. Há psicologia em cada rosto, há
senso de justiça e injustiça, destinos individuais e compreensíveis.
Os soldados são como nós. Mais, são os nossos emissários
no local, e, gostemos ou não, a sua prática é a
realização de nossa política. E nela que estamos
em jogo, muito mais que no sofrimento e na crendice dos flagelados.
Do ponto de vista romanesco, a solução
é magistral. Veta o sentimento anódino, obriga ao raciocínio
responsável. Concentrando-se nos soldados, que vieram da capital
a chamado, para defender um armazém, a trama força a identificação
antipática, o auto-conhecimento: entre os famintos e a polícia,
a compaixão vai para os primeiros, mas é na segunda que
estão os nossos semelhantes. Ao deslocar o centro dramático
do retirante para a autoridade, o filme ganha muito, pois torna mais
inteligível e articulada a sua matéria. Se na perspectiva
da miséria o mundo é uma calamidade homogênea, difusa,
em que sol, patrão, polícia e satanás tem parte
igual, na perspectiva dos soldados resulta um quadro preciso e transformável:
a distância entre os retirantes e a propriedade privada é
garantida pelos fuzis, que entretanto poderiam franqueá-la. A
imagem, como quer Brecht, é de um mundo modificável: em
lugar da injustiça frisam-se as suas condições
práticas, o seu fiador. Por força do contexto, os bons
sentimentos não se esgotam em simpatia. Onde nos identificamos,
desprezamos; de modo que a compaixão passa, necessariamente,
pela destruição de nossos emissários, e, neles,
de uma ordem de coisas.
Os soldados passeiam pela rua a sua superioridade,
mas para o olho citadino, que também é seu, são
gente modesta. São, simultaneamente, colunas da propriedade e
meros assalariados, montam guarda como poderiam trabalhar noutra coisa,
— o chofer de caminhão já foi militar. Mandam, mas são
mandados; se olham para baixo são autoridades, se olham para
cima são povo também. Resulta um sistema de contradições,
que será balisa para o enredo. A lógica deste conflito
aparece, pela primeira vez, na cena talvez mais forte do filme: quando
um soldado, diante de seus companheiros, explica aos caboclos o funcionamento
e a eficácia de um fuzil. O alcance do disparo é X,
vara tantos centímetros de pinho, tantos sacos de areia,
e fura seis corpos humanos. Até aqui, a informação
visa ameaçar. Em seguida, quando especifica pelo nome as peças
do fuzil, quer embasbacar. O vocabulário técnico, impessoal
e econômico por natureza, é apaixonadamente desfrutado
como superioridade pessoal, e talvez mesmo racial: nós somos
de outra espécie, a que convém não desobedecer.
Contrariamente à sua vocação de universalidade,
o saber explora e consolida a diferença. Esta contradição,
que em pequeno é um perfil de imperialismo, não vai sem
má-fé. Quando insiste na linguagem técnica, inacessível
ao caboclo, o soldado desperta animosidade entre os companheiros, que
deixam de rir. O esquema dramático é o seguinte: o vocabulário
de especialista, prestigioso para uns, é lugar-comum para outros:
para enaltecer-se, o soldado precisa da cumplicidade dos camaradas,
que em seguida precisam de seu tombo para reaver a liberdade. A insistência,
no caso, torna-se estúpida, logo aprisionada numa engrenagem:
a ignorância alheia já não prova a própria
superioridade, mas é preciso insistir nela, espezinhar o caboclo
mais e mais, afim de reter, por força da condição
comum, de opressores, a solidariedade fugitiva dos companheiros irritados.
Uns nos outros, os soldados vêem
o mecanismo da opressão de que são agentes. Porque não
são soldados só, recusam-se à confirmação
recíproca, necessária à raça superior: e
porque são soldados também, não vão até
o desmascaramento radical. Daí a vacilação na postura,
entre o peito inflado e a canalhice. E daí, também, as
duas tentações permanentes: a destruição
arbitrária dos retirantes, e a desagregação violenta
da tropa. Os conflitos ulteriores serão desdobramento deste padrão.
Assim o assassinato do caboclo, a briga deflagrada entre os soldados,
e a cena de amor, que em sua brutalidade tem muito de estupro.
A série culmina com a violentíssima
perseguição e morte do chofer de caminhão. O episódio
é o seguinte. Os alimentos devem ser transportados para fora
da cidade, para longe dos retirantes, que assistem a tudo sem piscar.
Os soldados montam guarda, apavorados com a massa dos famintos, mas
exasperados também, pela passividade que estes demonstram. O
chofer, que está passando fome e já foi militar, faz o
que também para os soldados estava à mão; tenta
impedir o transporte dos mantimentos. Caçado pelo destacamento
inteiro, é apanhado finalmente, pelas costas, e varado por uma
carga completa de fuzil. O excesso frenético dos tiros, assim
como a sinistra alegria da perseguição, deixam claro o
exorcismo: no ex-soldado os soldados fuzilam a sua própria liberdade,
a vertigem de virar a bandeira.
Refratada no grupo dos soldados, a questão
real, da propriedade, acaba por reduzir-se a um conflito psicológico.
O embate das consciências, que tem movimento próprio, se
esboça e acirra por várias vezes, e vai ao cabo no tiroteio
final. Deflagrou-se uma dialética parcial, moral apenas, de medo,
vergonha e fúria, restrita ao campo dos militares, ainda que
devida à presença dos retirantes. Trata-se de unia
dialética inócua, por sangrenta que seja a luta, pois
não empolga a massa faminta, que seria o seu sujeito verdadeiro.
É como se, em face do conflito central, o desenvolvimento
dramático estivesse fora de centro1. Em termos técnicos,
o climax é falso, pois não resolve a fita, que por sua
vez não caminha em direção dele: embora o tiroteio
seja a culminação de um conflito, não governa a
seqüência dos episódios, em que se alternam, sempre
separados, o mundo do enredo e o mundo da inércia. A primeira
vista, esta construção descentrada é defeito; de
que serve a sua crise, se é versão deslocada e distorcida
do antagonismo principal? Se a crise é moral e o antagonismo
é político, de que serva a sua aproximação?
Serve, n’Os Fuzis, para marcar a descontinuidade. Noutras
palavras, serve à critica do moralismo, pois acentua tanto a
responsabilidade moral quanto a sua insuficiência. O nexo importante,
no caso, está na ausência de um nexo direto.
Mesmo nas cenas finais, quando há
paralelismo entre o campo dos soldados e o campo dos famintos, o hiato
entre os dois é cuidadosamente preservado. A devoração
do boi-santo não decorre da morte do chofer. Ë um eco seu,
como que uma resposta degradada. A perseguição e o tiroteio,
embora tenham substrato político, não transmitem consciência
aos retirantes, nem organização; mas transmitem excitação
e movimento, uma vaga impaciência. O profeta barbudo ameaça
o seu boi-jesus: "se não chover logo, você vai deixar de
ser santo, e vai deixar de ser boi." Ato continuo, o sacro comestível,
que fora preservado, é transformado, como diria Joyce, em Christeak.
Os retirantes, inertes até agora, neste minuto final são
como piranhas. — O grupo dos retirantes é explosivo, e a posição
moral dos soldados é insustentável. A crise moral, entretanto,
não alimenta os famintos, nem pode ser curada pelo que estes
fizerem. A relação entre as duas violências não
é de continuidade ou proporção, mas não
é também de indiferença; é aleatória
e altamente inflamável, como sente o espectador. No filme de
enredo, que é de nosso mundo, presenciamos a opressão
e o seu custo moral; o close-up é da má-fé. No
filme da miséria, pressentimos a conflagração e
a sua afinidade com a lucidez. O close-up é abstruso, e não
fosse assim seria terrível. No "defeito" desta construção,
cujos elementos não se misturam, está fixada uma fatalidade
histórica: o nosso ocidente civilizado entrevê com medo,
e horror de si mesmo, o eventual acesso dos esbulhados à razão.
(1966)
- Roberto Schwarz