(Texto publicado no Suplemento Literário
do Estado de São Paulo e assinado)
Felizmente o que importa
hoje é realizar um filme como se escreve um livro ou se pinta
um quadro. Esta liberdade de criação em face do cinema
tem seus pioneiros, e ocorrem-nos logo os nomes de Chaplin, de Stroheim,
de Eisenstein, de Cocteau, e evocamos obras do vanguardismo francês
e do expressionismo alemão.
Mas, hoje, as linhas mais vivas do cinema
moderno são marcadas, de maneira sistemática, pelo signo
da autoria. O cinema, arte cara, criação de fábrica,
pôde emancipar-se em alto grau das imposições predominantes
da indústria, e um Antonioni, um Fellini, um Bufiuel e tantos
outros, inserem nos filmes as suas preocupações, modelam-nos
com seu estilo pessoal, e o peso maciço da produção
dobra-se, docilmente, à sensibilidade do seu autor. Não
é impunemente que um crítico inglês chamou a fase
atual do cinema de idade de ouro do cinema.
Mas quando isso acontece no Brasil, o nosso
entusiasmo é ainda maior. E esse entusiasmo diante da modernidade
do nosso cinema e da facilidade com que aprendemos o novo compasso aberto
à sétima arte — como se aguardássemos o sinal dos
tempos para usá-lo como sempre o desejamos fazer mais se estimula
quando a experiência de criação que nos é
oferecida tem como autor um jovem artista da nossa convivência
e, como tema, a própria circunstância em que vivemos.
Em louvor de Person quero tecer meus ditirambos
críticos, e em louvor da minha cidade quero assinalar que, pela
primeira vez, a vejo captada, apesar da sua difícil recusa ao
registro. Temo, apenas, que o que há de paulistano neste filme
não seja prontamente assimilado pelas audiências estrangeiras.
Mas, de qualquer forma, eis uma obra de
autor, a primeira obra de autor no plano do cinema urbano paulista.
Começamos, recentemente, a enfrentar a face do país, com
uma severidade e uma emoção que deu ao nosso cinema moderno
categoria internacional válida. Nada se ocultou, porque não
se fazia obra de exportação, mas de participação
e de conhecimento. De súbito um Nelson Pereira dos Santos, um
Glauber Rocha, um Paulo Cezar Saraceni, um Joaquim Pedro, um Roberto
Farias, um Leon Hirszman, um Roberto Santos, para só citar alguns,
levando as premissas propostas por um clássico da participação
como Humberto Mauro e por um intuicionista de talento como Lima Barreto,
começaram a olhar não o público, mas a realidade
circundante, e fizeram cinema com o que viam e com o que testemunhavam.
Não podiam fazer de outra maneira,
porque o que lhes interessava não era a bilheteria, mas a própria
coerência, não era a indústria, mas o autêntico
depoimento. Que interesse teria, para eles, jovens, dotados de consciência
e de fidelidade aos problemas de sua geração e de seu
país, utilizar o instrumento cinematográfico para reescrever
frases feitas, narrar histórias sem data e brincar com a realidade
da sua época?
E o que veio dessa aventura foi, ao mesmo
tempo, a redescoberta do país, nas suas linhas fortes de crise
— como a miséria do Nordeste, o sincretismo religioso das populações
entregues à própria sorte, o afã de dedicação
e de imolação seguindo na esteira dos taumaturgos e dos
revoltados, as deformações impostas pelo progresso industrial
atropelando estágios econômicos — e a descoberta, também,
do poder de redenção contido no próprio testemunho.
Não era possível, tinham
razão os jovens, nos limitarmos a um cinema de deleite, de fruição
meramente estética, de divertimento superficial do público.
Aqueles que não compreenderam que o grande acontecimento do cinema
moderno foi a sua emancipação da categoria de espetáculo
aprazível, para se impor como forma de conhecimento da realidade
humana e social, ficaram à margem da esplêndida revolução
e insistiram no cinema inautêntico, de fabricação
de dramazinhos alienados, à maneira deste ou daquele paradigma
consagrado.
No caso do Brasil, os novos diretores que
surgiram nos últimos anos traziam, unanimemente, esse desejo
de comprometer os filmes com as suas próprias idéias e
suas próprias experiências. E, a tal ponto, que traíram
uma certa repugnância pela caligrafia cinematográfica caprichada,
que lhes parecia uma forma de impostura e de concessão. Colocavam
mal os pronomes para conjugar melhor os verbos, dispensavam os adjetivos
para dar relevo aos substantivos.
A Bahia e o Rio de Janeiro lideraram o
que se denominou cinema novo brasileiro. Mas a identidade de pontos
de vista foi quase total entre os jovens cineastas do país.
Agora Luís Sérgio Person
dá a contribuição última de São Paulo
a esse surto fecundo do nosso cinema atual, com o seu São
Paulo S.A., reunindo uma equipe excelente onde, desde o produtor
Renato Magalhães Gouvêa, até o fotógrafo
Ricardo Aranovich, o montador Glauco Mirko Laurelli, o músico
Cláudio Petraglia e os atores Ana Esmeralda, Eva Wilma, Walmor
Chagas, Otello Zeloni, Darlene Glória, para só citar os
de maior relevo, todos se empenharam para alcançar o resultado
obtido.
O importante no filme de Person, além
do fato de se constituir na primeira e ampla experiência de captação
de problemas humanos da maior concentração urbana do país,
é a circunstância de ser um depoimento pessoal. Person
fala do que conhece e traduz em personagens e situações
o seu sentimento da cidade onde nasceu e viveu. Este seu primeiro depoimento
não é uma homilia. Isto não lhe interessaria. Só
a decisão de debruçar-se sobre a humanidade paulistana
confirma a sua profunda identificação com a cidade.
A atitude que assume tem semelhança
com a dos outros novos do cinema brasileiro, buscando o ponto de crise,
a linha de conflito, de onde nasce o drama, e não a exaltação
superficial ou o documento neutro. Fazendo cinema na cidade ou nos sertões
do Nordeste, o que procura hoje o nosso cinema não é o
pitoresco nem o exotismo, mas a verdade. E a verdade registrada pela
sensibilidade, portanto, interpretada.
Testemunho e interpretação,
de tal forma que o testemunho venha marcado pela autenticidade da visão
pessoal, eis o que dá a esta auspiciosa estréia de Luís
Sérgio Person na longa-metragem a sua significação
e indiscutível valor.
O herói de São Paulo S.A.
é um anti-herói. Como o personagem da Tragédia
Americana, de Theodore Dreiser, gerado pela filosofia do êxito
norte-americano, o angustiado Carlos deste filme procura explicar-se
e justificar-se pelo meio. É um fraco, um pusilânime, de
certa forma cínico, por ausência de equilíbrio moral
e de formação. É uma vítima do complexo
econômico-social da urbe. Quer afirmar-se e, para tanto,
não hesita em pactuar com a desonestidade no negócio e
nas relações com as mulheres. Só encontra saída
no amor, mas está comprometido, para cultivá-lo pela sua
oscilante natureza.
O desespero do personagem sensibiliza o
filme inteiro, e a cidade, ao fundo, comparece como ré do drama.
Em nenhum momento Person distrai-se com a cidade como realidade autônoma.
E isto me parece decisivo. A presença catalítica da metrópole
existe para dar sentido ao drama, como grades de uma prisão na
qual a criatura se debate, pensando libertar-se.
O filme se desenvolve em linhas paralelas,
concorrentes e confluentes, armando um tecido rico de colocações
humanas reveladoras. Apesar da complicada estrutura, não incide
Person, ajudado pela mão segura do montador Glauco Laurelli,
em formalismos exteriores. Para traduzir o máximo do corpo e
do espírito da cidade, como núcleo do drama, precisava
orquestrar a aventura do personagem com todo o universo urbano envolvente.
Nada mais paulistano — e é lamentável
que a percepção dessa peculiaridade não possa ser
fácil a platéias estrangeiras — do que a fuga desesperada
de Carlos ao longo da vida noturna de São Paulo, ao mesmo tempo
em que se processa a corrida de São Silvestre. Nada mais paulistano
do que a pequena rua de bairro onde habita Luciana, na lívida
madrugada em que Carlos proclama, ébrio, o seu amor.
Os pormenores locais, que plantam a história
na realidade específica paulista, a verdade dos tipos femininos
bem diversos, a figura admirável de Arturo, compõem um
quadro que nos toca profundamente, pelo que representa como aproximação
real e, ao mesmo tempo, condensada, do amálgama social e humano
de São Paulo.
Person consegue jogar no filme, ao salientar
um personagem-chave, a atmosfera, difícil de ser apreendida,
da sua cidade, a São Paulo áspera e impiedosa da competição
econômica, imenso centro de trabalho que cria a riqueza, mas sacrifica
os mais frágeis na combustão do drama.
9 out. 1965
- Francisco de Almeida
Salles