Deus
é o diabo no mito de Glauber?
Glauber
Rocha dirige Lídio Silva em Deus e o Diabo na
Terra do Sol
Deus e o Diabo na Terra do Sol foi
considerado o melhor filme brasileiro por 110 votantes. Isso que dizer
que, dentre um universo considerável do cinema brasileiro, o que
inclui pesquisadores, críticos, realizadores, montadores, fotógrafos,
compositores, etc., Deus e o Diabo é o filme brasileiro
que mais penetração tem nas mentes dos votantes. Mas o que
há, então, de Deus e o Diabo na Terra do Sol «nos»
filmes brasileiros? E, mais que isso, «qual» Deus e o Diabo
na Terra do Sol penetrou no coração da comunidade cinematográfica
brasileira?
O filme por si só revela inúmeros
aspectos diferentes, diferentes maneiras de interpretação,
e por vezes discursos que mais de um poderia chamar contraditórios.
"A culpa não é do povo", "Mais fortes são
os poderes do povo"... Que povo é esse que Glauber conclama?
Esses ditos saem da boca dos personagens, mas em que medida eles existem
na cabeça de Glauber Rocha. Ou então o discurso de Antônio
das Mortes, que mata o cangaceiro Corisco e testemunha a morte do beato
Sebastião para que haja uma grande guerra no sertão, que
quer ele dizer com isso? E por fim, a frase que se repete infinitamente
no filme, "O sertão vai virar mar, o mar virar sertão",
que quer ela dizer quando sai da boca de Corisco, de Sebastião
e do coro final do filme? Sim, o poder, a auto-afirmação
do povo, as desigualdades sociais e a miséria permeiam a obra inteira
de Glauber Rocha, mas exatamente onde entra Glauber «no» filme?
Ele é o vaqueiro Manoel? A esposa Rosa? Antônio das Mortes,
caçador de cangaceiros?
Já se disse, e não sem razão,
que Glauber estava longe de ser um iconoclasta; que, ao contrário,
era um grande iconômano. Mas que mania por ícones é
a iconomania específica de Glauber Rocha? A mesma iconomania dos
líderes totalitários dos anos 30? A pergunta faz sentido,
porque o conteúdo profundo de todos os filmes do realizador de
Barravento é a representabilidade de um ideal numa pessoa;
a encarnação de um líder no seio de uma nação;
em outras palavras, o populismo. O herói glauberiano está
sempre diante de uma liderança política, seja ela ancorada
no poder religioso, latifundiário, ou mesmo no poder das milícias
populares do cangaço. A estratégia geral de seus filmes
é crença-descrença, apego/desapego aos ídolos,
aos ícones.
Glauber Rocha ficou famoso por filmar o populismo
em Terra em Transe, mas o projeto básico glauberiano já
estava em gestação em Barravento (mesmo que o filme ainda
flerte com a mistificação, já é a questão
da liderança sendo colocada), e é implantado pela primeira
vex em Deus e o Diabo na Terra do Sol. Pois por trás do
texto humanista, que revelam os versos finais cantados por Sérgio
Ricardo (compostos por Glauber) e o discurso final de Corisco, reside
um subtexto mais forte, mais patente na forma do filme (montagem principalmente)
e, enfim, no trajeto final do personagem de Manoel.
Há uma poderosa dissonância
entre texto e imagem ao fim do filme. De um lado, no som, Sérgio
Ricardo nos diz que "a terra é do Homem / não é
de Deus nem do diabo". Humanista, sim, racionalista e materialista
também. Só que do outro lado, na tela, vemos um homem correndo
desvairadamente em direção a lugar nenhum, até que
o mar vire sertão, e este mar. A terra, que é do homem,
não se encontra em momento algum ocupada por ele. O homem é
do diabo (Corisco, o diabo louro) ou de Deus (o Deus negro, Sebastião),
mas jamais autodeterminado. Posição nada humanista, mas
irracionalista, trágica. Materialista, mais ainda, pois todo racionalismo
é no fundo um idealismo. O subtexto formal, turbulento, dado pela
montagem não coincide com o texto literal, falado na toada que
comenta o filme. Glauber é traído por si mesmo, e o revolucionário
iluminista transforma-se em poeta trágico.
Quanto à outra grande questão
do filme, a de saber «onde» reside Glauber no filme, saberemos
nos esquivar do problema? Não. Há duas maneiras de respondê-lo.
Uma insistiria em dizer que Glauber está em tudo, está na
problematização de todas essas questões mas sem uma
resposta que vá de uma vez por todas. Uma resposta prudente. Mas
há também uma resposta imprudente, parcial, delirante, militante.
Sabemos de Glauber que sempre foi considerado crente demais para ser sério,
descrente demais para subscrever um programa político. Como não
ver no filme a problematização de seus dois mais fortes
aspectos políticos na personificação das duas figuras
mais opostas do filme, Manoel e Antônio das Mortes? Manoel, o crente,
o que vai em busca da efetivação política, e Antônio,
o descrente, que chuta tudo para que algum novo painel possa se desenhar?
Cremos que sim.
Para terminar, nada como voltar ao começo.
O cinema brasileiro de hoje é trágico? Poético? Aceita
cenas poéticas e antropológicas, como a cena do começo
em que Manoel e Rosa extraem comida? E o que dizer de um roteiro impressionista,
mais preocupado com a criação de uma ambiência do
que com joguinhos psicológicos? É muito curioso que no estado
atual do cinema brasileiro Deus e o Diabo na Terra do Sol ainda
seja o filme mais citado. Em tempos de Videofilmes e Conspiração,
a impressão é que O Cangaceiro tem mais a ver com
essa produção mais recente. E entretanto esse era o filme
mais votado quando o cinema brasileiro era mais político. Hoje,
quando ele é o menos político possível (quantos filmes
tentam refletir o presente? quantos filmes falam de Collor, de FHC, de
internet, de nova democracia? conte nos dedos), Deus e o Diabo
ainda resiste como título mais influente do cinema brasileiro.
Por um lado, isso não é surpresa. O cinema brasileiro não
é apenas feito de "profissionais" e talentos aguados;
é feito também pelos hereges, pelos malditos, e esses são
largamente prestigiados na votação que Contracampo fez.
Mas há também uma surpresa, dessa vez não tão
positiva. Será que Glauber Rocha, o iconômano que destitui
os ícones, virou ele mesmo um mito? Será que o próprio
autor que em toda sua carreira fugiu da mitificação agora
tornou-se um mito, uma figura, logo algo muito mais do que o simples significado
de sua obra? A resposta positiva a essa pergunta significaria que Glauber
Rocha foi assistido meramente, mas jamais compreendido.
Ruy Gardnier
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