Nelson Pereira, Pompeu de Souza e Paulo Emilio debatem Vidas Secas

Último de uma série de quatro seminários realizados em novembro de 1964 no Centro de Extensão Cultural de São Paulo, com as presenças de Nelson Pereira dos Santos, Paulo Emílio Salles Gomes, Pompeu de Souza, Yulo Brandão e Rui Mourão.

Paulo Emílio: Durante os nosso trabalhos, houve alguns momentos dos debates em que depois de examinarmos um problema sobre vários ângulos, todos nós sentimos, assim, uma espécie de necessidade de apelar para o realizador deste filme a fim de que ele contribuísse com a sua experiência, com sua responsabilidade de autor do filme baseado no livro de Graciliano, para elucidar alguns pontos. De forma que eu sugeriria que ao iniciarmos nossos trabalhos hoje, nós nos lembrássemos daquelas perguntas, daqueles problemas que nós queríamos apresentar ao realizador do filme para fazê-las, neste momento, a Nelson Pereira dos Santos que se encontra conosco.

Inicialmente, eu pediria aos relatores que estão todos presentes aqui, nesta mesa, se eles tem problemas e perguntas a apresentar e, em seguida, naturalmente, qualquer um dos participantes do Seminário tembém será ouvido com muito prazer. Nelson está preparado para dialogar e responder ao que lhe for perguntado. De maneira que... O professor Yulo, por exemplo – Professor Yulo, na sua exposição surgiram alguns problemas que seria interessante apresentar a Nelson Pereira dos Santos.

Yulo Brandão: A minha pergunta está baseada justamente no ângulo sobre o qual eu interpretei e procurei, pelo menos, estudar o filme com relação ao livro. Ao contato com o filme nós todos nos demos conta que alguns momentos do livro, alguns aspectos do livro não foram, no filme, enfatizados. Por exemplo, eu me refiro em particular ao problema da bolandeira do Seu Tomás. Me parece que no filme não apareceu com a ênfase que merecia, pelo menos que mereceu no livro, do autor, dada às vinculações que este livro apresenta, que este tema apresenta com a vida completa, integral de Fabiano. Então eu gostaria de fazer ao senhor a mesma pergunta que eu fiz a Paulo Emilio, se a ausência deste tema resultou de dificuldades técnicas, de impossibilidades técnicas de trazê-lo a tela ou, ao contrário, resultou de uma eliminação consciente por parte do senhor. Está é a primeira pergunta.

Em segundo lugar, aquele momento em que o menino repete aquele termo "inferno" várias vezes. Repete muitas e muitas vezes inferno, inferno, inferno. Então temos a impressão que o senhor quis criar ali de fato uma espécie de ambigüidade com a palavra inferno, no sentido que ela poderia indicar a vida infernal que estavam levando ou apenas poderia referir-se mesmo ao inferno tal como a mãe havia sugerido à criança. Eu pergunto se o Senhor teve a intenção com a repetição constante da palavra inferno de manter esta ambigüidade que tem um interesse artístico e estético muito grande; esta ambigüidade de um termo nos define o caráter lírico da própria palavra e das evocações desta mesma palavra num plano altamente sugestionável do ponto de vista estético e do ponto de vista artístico.

E uma terceira pergunta que a mim me interessou em particular foi a ausência de musica no filme. Então minha pergunta é a seguinte: o Senhor eliminou a música do filme ou não pôs música porque encontrou dificuldade de achar alguém que fizesse uma música adequada ao conteúdo do filme ou o senhor não a colocou por convicção, por preferir filme sem musica. Estas são as perguntas que eu queria fazer. Muito obrigado.

Nelson Pereira: É um pouco difícil, depois de um filme pronto, depois de cumpridos os processos de elaboração de roteiro, de filmagem, de montagem, etc., explicar determinados resultados obtidos para o espectador ou o crítico, porque em qualquer trabalho já realizado (de realização cinematográfica), não se sabe em que ponto começou a criação, onde surgiu a idéia, de tal maneira esse trabalho é integrado, de tal maneira o pensamento e a prática caminham juntos. Então, quando se faz uma pergunta desse tipo, é fácil ao realizador inventar, a posteriori, uma desculpa qualquer e sair pela tangente, de uma maneira honrosa para ele, mas pouco esclarecedora para quem pergunta. Neste momento diante de observações precisas, resultado de estudo apurado do filme e do livro, eu me sinto obrigado a recordar com toda honestidade como foi elaborado o filme. Feita essa ressalva, eu vou explicar o caso da bolandeira. O Seu Tomás e consequentemente, a bolandeira dele me preocuparam muito durante a adaptação do romance. Tinha necessidade de compor Seu Tomás na sua imaginação e no passado dos personagens, estabelecer suas relações com Sinhá Vitória e com Fabiano. Mas eu não tinha as informações diretas do Seu Tomás, apenas as reminiscências do Fabiano e da Sinhá Vitória sobre o Seu Tomás. Tratava-se de um personagem que sempre aparecia somente na imaginação dos outros personagens. E me perguntava sempre: terá sido verdadeiro o Seu Tomás ? O Seu Tomás seria mais ou menos o herói cultural daquela família ? O Seu Tomás para Fabiano é o homem que sabe ler, é o homem que conhece além da realidade imediata ? Para Sinhá Vitória, é o representante de uma situação social melhor, é o homem que tem a cama de couro, que representa o estágio imediatamente acima ao da Sinhá Vitória e a posição que ela mais deseja. Há também uma outra implicação de uma possível relação – uma relação humana natural e direta – entre Seu Tomás e Sinhá Vitória.

De maneira que são todas indagações resultantes do que havia na imaginação, nas reminiscências do Fabiano e Sinhá Vitória, que não me permitiram construir esse personagem fisicamente. Eu não sei como Seu Tomás vivia, velho, moço, velho pela sabedoria, pelo conhecimento das coisas, moço enquanto amante de Sinhá Vitória. Eu não tinha condições de criar o Seu Tomás como gente. E por outro lado, no plano da linguagem cinematográfica, eu teria que utilizar flash-back: em determinados momentos, seria obrigado a interromper a ação do presente para colocar o Seu Tomás na existência anterior dos personagens, numa outra fazenda, com a bolandeira, etc. Mas essa linguagem se chocaria totalmente com a linguagem que eu pretendia dar ao filme: a linguagem a mais direta. O flash-back é sempre muito falso; é o passado mas não o é; é a interrupção do presente para voltar a outro presente, porque o tempo cinematográfico está sempre na perspectiva do futuro. Por outro lado, eu comparei a bolandeira com o berço de Intolerância, de Griffith.

Pompeu de Souza: Vimos aqui mesmo...lembramos sim.

Nelson Pereira: A bolandeira no romance já é uma imagem cinematográfica de uma vida circular, uma vida que não começa e não acaba, como um ciclo da natureza. É o verão e o inverno, e não há avanço. É a monotonia de uma vida dentro de uma sociedade estagnada. Graciliano foi um pouco homem de cinema, na medida que usou a bolandeira para reforçar esta vida circular, monótona. É por isso que eu decidi fazer no filme o que estava no livro: Seu Tomás da bolandeira apareceria apenas na manifestação oral dos personagens. Num determinado momento, no primeiro repouso, o que fazem Sinhá Vitória e Fabiano ? Fazem um pequeno balanço do que aconteceu a eles, antes, e aparece o Seu Tomás naquele balanço. Aparece de uma amneira para o Fabiano e aparece de outra maneira para Sinhá Vitória ( eu não fui totalmente feliz na realização daquele diálogo cruzado. Tecnicamente há um problema de som (está muito alto) e o ator também falou muito alto. O diálogo é muito forte. Deveria ser um som mais íntimo. Não consegui realmente fazer o que eu queria fazer.) Mas era um balanço que também reforçaria um outro dado, que era a incomunicabilidade dos personagens. Quando eles começam a dialogar, não estão dialogando, cada um fala de acordo com a sua visão e dentro do seu mundo. Eles são casados, têm filhos, mas a mesma realidade anterior – o Seu Tomás – é vista de maneira diferente por cada um. O Fabiano o vê com uma certa ponta de inveja, porque Seu Tomás sabe ler, etc., e Sinhá Vitória está falando no Seu Tomás porque ele tinha a cama de couro. E em certos momentos aparece o Seu Tomás – por exemplo, no diálogo final – sendo superado por Fabiano, quando este chega a afirmar que o Seu Tomás não andaria nem seis léguas. Não achei necessário mudar a solução que encontrei, colocar Seu Tomás da bolandeira como está no livro: na memória e nos fiapos de diálogo dos personagens.

A respeito da palavra "inferno": se a ambigüidade apontada existe, eu acho que ficou bom, ótimo, para o filme. Mas a intenção, eu penso que está evidente na seqüência inclusive "chateia" um pouco, porque está longa; a intenção é tão clara, pela própria repetição. É o momento da pesquisa. O garoto quer saber o que é o inferno e está preocupado não só pela palavra em si, pelo som da palavra – ele fala inferno, inferno, inferno – a palavra tem som, apenas som. Mas também ele quer saber o que é inferno e está, ao mesmo tempo, em conflito com a mãe, que não lhe deu a explicação completa e, além disso, o castigou. Assim, ele repete a palavra por várias vezes e ao mesmo tempo, enquanto são colocadas diante dele imagens (pelo menos do meu ponto de vista) imagens bonitas. É uma galinha em cima do telhado, são umas vacas ao longe, um urubu num vôo harmonioso, sensual até; um muro, o pote de barro esperando água. De maneira que não houve a intenção de fazer com que o menino atribuisse as qualidades do inferno à realidade que o circundava. É apenas o momento da indagação – inferno.... Coloquei esse episódio como a abertura das seqüências da seca. É o primeiro episódio em que a vegetação já está se desfolhando, já começam a aparecer os sintomas do verão forte: a árvore sob a qual o menino está sentado, com a cachorra, já não tem mais folhas. Seria a preparação de todo o desenlace da história da família.

O não emprego de música, está muito ligado àquela preocupação de não utilizar flash-back. Nós já fizemos ( eu só fiz um antes, mas o cinema brasileiro já fez vários) filmes no Nordeste e sempre a utilização da música foi, ao meu ver, equivocada em dois sentidos: o simples emprego da música tal como ela é produzida lá, tal como ela é executada, ou a música orquestrada – ambas falsas. Eu praticamente não tinha solução porque procurava não exercer nenhuma interferência cultural, porque queria me aproximar o máximo possível da realidade cultural do Nordeste. Nós, do Sul, imaginamos o nordeste como um Nordeste musical, com muita musiquinha e violeiros. Mas, na realidade, no dia-a-dia, especialmente na região do gado, é a solidão e o ruído – o ruído da natureza e o ruído dos instrumentos de trabalho do homem. E o ruído que mais se aproximava do circular, quer dizer, do sem fim, era o ruído do carro de boi que não tem nem começo nem fim.

Pompeu de Souza: Vou fazer apenas uma pergunta a NPS. Eu tinha pensado também naquele problema do inferno, mas o assunto foi amplamente tratado pelo Prof. Yulo e amplamente respondido por NPS. Quem conhece a obra e arte de NPS verifica, no contato com o autor, o quanto o criador é elucidado pelo espírito crítico, pela lucidez crítica, pela vigilância crítica e pela informação cultural. De forma que eu me dispenso de tratar do assunto do inferno porque coincido inteiramente com o ponto de vista de NPS e acho que nesse ponto ele seguiu rigorosamente Graciliano, inclusive nas tomadas de câmera, que ilustrou a repetição da palavra inferno pelo menino mais velho. A câmera mostra que ele volta a falar na palavra que aprendeu, que a repete, à espera que se transforme em coisas. A pobreza de vocabulário das personagens de Vidas Secas é tão completa que elas não conhecem nenhuma palavra destituída de sentido prático e imediato, de nenhum conhecimento físico. Então, ele esperava, convocava o inferno para que ele existisse, já que o depoimento da mãe fora insatisfatório do ponto de vista da realidade física do inferno. Então, a pergunta que quero formular a NPS é outra. A seguinte: Por que ele explorou tanto, tão demasiadamente, a dor física de Fabiano espancado pelo Soldado Amarelo ? Ali me pareceu que havia uma certa contradição entre o tipo bruto, o tipo grosso, o homem maltratado de todas as maneiras pela vida, pela natureza, e o sofrimento tremendo só porque levou algumas pancadas de sabre ! Por que geme tanto ? Não haverá um certo exagero, uma certa demagogia da dor física ? Acho, em suma, que a cena é uma pouco alongada demais e em contradição com o tipo e os antecedentes de Fabiano. Acho – e já o disse em reunião anterior deste seminário, quando, nós conversamos sobre o assunto – que ele extrai um belíssimo rendimento plástico de certas tomadas dessa cena e que nela o Fabiano lembra algumas vezes certos Cristos, certos quadros do Cristo flagelado. Há uma certa semelhança da flagelação de Fabiano com a flagelação de cristo. Não sei se foi intencional. Mas, de qualquer forma, o que acho é o seguinte: a cena constitui uma pequena traição – e a única que observo – de NPS a Graciliano Ramos, que é muito parcimonioso na dor física de Fabiano, mas traição sobretudo ao próprio NPS, tão fiel sempre a Graciliano Ramos e tão fiel a si mesmo, em todo o filme.

Nelson Pereira: Essa cena do Fabiano na cadeia quase provocou uma surra no diretor, lá no Nordeste. O Prof. Pompeu também está reclamando contra ela, querendo dizer : – Nordestino não chora ! é por isso que tenho interesse em responder a essa pergunta ! O que aconteceu foi o seguinte: eu fiquei preocupado mais com a cantoria do reisado ( são desses equívocos que o diretor comete e só vai perceber quando o filme é exibido). Toda a letra do reisado reproduz a situação a as relações entre o Fabiano e os fazendeiros. Há toda uma submissão. Tudo se faz em função dos donos da terra, principalmente quando se divide o boi, que é a riqueza da região. As melhores partes vão para o senhor prefeito e para dona Sinhá ... Somente as vísceras, as partes menos nobres do boi, vão para os outros. Eu quis (o momento em que a gente quer ser apenas cineasta é o momento em que se fracassa) aproveitar toda essa parte do reisado a fim de mostrar a posição do fazendeiro, no poleiro dele, e a do Fabiano, ao mesmo tempo, na cadeia, preso. E para dar uma ação a Fabiano, fui obrigado a fazê-lo sofrer. No livro, ele tem pesadelos: acorda de repente, xinga, revira-se no chão duro, etc. Mas não podia fotografar o pesadelo de Fabiano. Então, resolvi fazê-lo chorar, com dores, passando a noite inteira acordado. Eu me esqueci realmente do Fabiano porque estava preocupado com o reisado que havia descoberto. Quer dizer, eu descobri o reisado, descobri a relação que muita gente já descobriu antes de mim, que está escrita numa porção de livros, mas eu, naquele momento, me sentia assim um pesquisador , que vê uma realidade pela primeira vez e quis mostrar isso a todo mundo ! E abusei do reisado. Por outro lado, a gravação da música é muito fraca, é muito falha. Pouca gente entendeu a não ser depois de muitas exibições, o que diziam os versos do reisado, a não ser quem já conhecia o Bumba-meu-boi. Mas essa parte, depois, foi devidamente tesourada. Falta mais de um quilo de filme aí. Limpei bem a seqüência.

Paulo Emílio: Agora eu vou fazer a minha pergunta. Nós aqui quando estudamos o livro, o roteiro e o filme, falamos um pouco a respeito de uma seqüência que me interessa particularmente. Eu penso que dela não falamos suficiente, naquela ocasião – já era bastante tarde – de forma que vou revê-la um pouco antes de colocar a questão. É a seqüência do acerto de contas, quando Fabiano vai acertar as contas com o fazendeiro, com o patrão. Notamos que no roteiro havia sido acrescentado um contador que cuidava dos negócios, das contas do fazendeiro. Pompeu observou que este contador não teria sentido, a situação local não justificava absolutamente a existência de um contador. Seria, nas palavras de Pompeu, um luxo excessivo... Mas de qualquer forma, havia o problema para o Nelson de nos indicar, de uma maneira mais clara, o estatuto social do fazendeiro, que não é brilhante, como vimos, mas que, em todo caso, em relação a Fabiano, era muito mais alto. Isso foi mostrado de várias maneiras: a casa mais apresentável do vilarejo; tem o seu alpendre; na festa, no reisado, o fazendeiro está com terno de linho branco engomado e, na ocasião, uma coisa que não observamos aqui mas que é muito importante, é que se o contador desapareceu, há outra personagem que apareceu e que é importantíssima: é o professor de violino, além da filha do fazendeiro. Aquele pormenor da lição de violino, do professor de violino, da contemplação de Fabiano quando ele vai buscar os cadernos, quando ele olha para aquilo, me parece importantíssimo, me parece um momento de criação. É muito importante e por isso eu gostaria de saber ( como todo que não é criador, tenho uma curiosidade invejosa de saber como as coisas acontecem para o criador!) eu gostaria que Nelson nos explicasse, se ele ainda se lembra, como ainda surgiu a lição de violino!

Nelson Pereira: Eu temo que minha explicação tire o mistério do filme ! Deve ser muito simples. Primeiro eu vou explicar o contador. Antes de fazer Vidas Secas, há muitos anos atrás, eu tentei uma adaptação de São Bernardo e no São Bernardo há um contador, que é amigo da Madalena. De maneira que, quando fiz a adaptação de Vidas Secas, eu desconhecia, embora já tivesse estado lá, mas não tinha intimidade com as várias regiões do Nordeste, eu desconhecia a diferença que existe entre a zona da mata, que é a região de São Bernardo e a zona do gado, o sertão. De maneira que quando cheguei e fui procurar e ver exemplos de fazendeiros, senti que o contador era um personagem inteiramente esdrúxulo na vida do fazendeiro, porque o fazendeiro leva praticamente a mesma vida do vaqueiro. Ainda hoje em alguns lugares é a mesma coisa. O que os diferencia é a ordem jurídica: o fazendeiro é o proprietário e o vaqueiro não é o proprietário. E quando a situação se torna crítica, com a seca, etc., o mais fraco é engolido. Da mesma maneira que o Fabiano come o papagaio, o fazendeiro expulsa Fabiano, com a mesma tranqüilidade, com a mesma frieza. O importante é sobreviver e, quando os meios faltam, sobrevive o mais forte. De modo que não podia colocar o contador. Vi lá todos os fazendeiros e grande parte deles ainda vivendo numa situação de antes da guerra. O fazendeiro também cuida do gado, vai freqüentemente junto com o vaqueiro cuidar da situação do bezerro tal, da vaca tal, ver se já curou a bicheira, etc. Mas ao mesmo tempo, havia assim a necessidade ( agora eu estou raciocinando, mas talvez eu tivesse essa impressão na época ) de mais alguma coisa, além da situação do fazendeiro no reisado, o problema daquele preso, o padre etc. Precisava de mais alguma coisa para dar o tom à posição dele. Isso foi realmente improvisado. Havia um professor de violino ambulante – aquele homem que aparece no filme. Ele vai ensinar violino numa porção de lugares, toma um ônibus, vai para um lugar, depois pega um cavalo com o violino dele. É uma coisa muito curiosa, no meio do sertão, ele tocando. E aquela é realmente a música que ele executa. Foi gravada diretamente. E assim que poderia colocar o professor de violino junto com aquele fazendeiro para alcançar o tom procurado. Creio que isso reforçou mais a situação social do fazendeiro do que, por exemplo, a seqüência da cadeia. Mas foi totalmente improvisada a colocação do professor de violino, graças à própria existência do professor de violino, que não é inventaria!

Pompeu de Souza: Além disso, parece-me que há uma tendência natural de acentuar a distância social entre o escravo do trabalho, que não faz outra coisa senão ter que trabalhar, e aquela moça que é ao mesmo tempo, vamos dizer, o eterno feminino inatingível para ele, a beleza feminina que está fisicamente próxima mas socialmente a uma distancia infinita. É um dos raros momentos de contemplação que se permita ao pobre do Fabiano em relação à mulher, à beleza, à música, à arte. É, ainda mais, aquele momento de ócio, aquela criatura que pode ouvir música em vez de estar na cozinha como Sinhá Vitória ou na beira do rio lavando roupa... Mas esse é um ponto curioso: reparar como Sinhá Vitória está sempre na cozinha mas jamais lava roupa. Não há uma só lavagem de roupa no filme, e não há no livro! Aqueles seres são tão desgraçados que a roupa é um pedaço da pele deles... que vai se sujando, vai se acabando e vai sendo substituída quando já não tem mais nada. De forma que não há o que lavar ! Claro que isto é simbólico e que aquelas mulheres lavam roupa na beira do rio. Mas o fato é que não há lavagem de roupa nem no filme nem no livro.

Rui Mourão: Eu queria fazer uma pergunta apenas relativamente à seriação que há dentro do livro, de tipos e de capítulos – e que você alterou dentro do filme. Você deu uma nova ordem aos capítulos. Eu acredito que o pouco de seriação existente no livro esteja relacionado com o propósito expressivo pretendido no livro por Graciliano. Ele, de certa forma, quebra o desenvolvimento progressivo da história. Ele isola dentro de cada capítulo um personagem, frisando a solidão destes personagens. Qual o motivo que o levou a alterar isso ?

Nelson Pereira: Em primeiro lugar, para não ser redundante. Na literatura é possível fazer isso. É possível num capítulo isolar o Fabiano e colocá-lo em xeque, quer dizer mostrar o que é Fabiano, de que ele é constituído, etc., e a relação dele com os filhos, quer dizer uma relação subjetiva, partindo do Fabiano para os filhos. Agora, no cinema, eu teria que, à medida que o Fabiano se relaciona com os filhos, apresentar também os filhos. De maneira que eu fiz o seguinte: na adaptação eu procurei dar uma ordem dentro da realidade. O filme se passa em dois anos: começa num verão forte, numa seca, vêm as chuvas, o inverno prolongado, depois um verão bom e um novo ano sem chuva, sem inverno, o verão crescendo até o fim. Procurei dar, dentro desse tempo de dois anos, uma ordem que obedecesse a uma determinada linha de construção dramática. Por exemplo, a colocação do episódio da Baleia no final do filme e antes da partida, a fim de motivar a liquidação da Baleia com o fato de não poder acompanhar a família, que estava sendo obrigada a fugir. Outra coisa que eu fiz para evitar aquela redundância foi juntar numa mesma seqüência vários capítulos, como é o caso da festa. Entre a primeira ida dele à festa, a cadeia, há vários episódios diferentes. E esses episódios sobre os personagens, eu usei como fonte para construir a conduta de cada um deles. Aquele episódio sobre a Sinhá Vitória onde ela está resmungando, brigando com o mundo, etc. está em todo o filme a partir do momento em que ela sente que as coisas não melhorarão, que o Fabiano jogou fora o dinheiro no jogo, que o sol está cada vez mais quente, que poderá vir a seca, etc. E isto permanece nela demonstrando sempre esta preocupação. Em vez de construir um episódio tão somente, aquele tipo de preocupação dela está colocado ao mesmo tempo que o garoto está indagando a respeito do inferno.

Por outro lado há uma outra coisa: creio que o Graciliano não teve esta preocupação de construir o livro. Pessoas de sua família, como o Ricardo Ramos e a própria viúva de Graciliano Ramos, Heloise, me contaram o seguinte: ele escreveu primeiro o conto da Baleia. Em virtude do sucesso, continuou a escrever, mas queria fazer um livro de contos.

Agora, outra coisa, o episódio do inferno não é bem uma repetição é uma reelaboração de um capítulo do livro "Infância" do Graciliano. É autobiográfico. Em determinado momento o Graciliano garoto, com oito anos de idade, sofre aquele castigo porque perguntou à mãe o que era inferno e se a mãe já tinha estado lá, e então sofreu castigo e veio a preocupação metafísica a respeito do inferno, do destino do homem, o que é pecado, o que não é pecado.

Rui Mourão: E no conto... mas eu acho que nós não podemos cogitar de procurar descobrir quais as intenções de Graciliano. Nós precisamos analisar a obra como ela se encontra, acabada e publicada!

Nelson Pereira: Não ofendi a intenção de Graciliano Ramos. Não tinha essa intenção.

Pompeu de Souza: A propósito, uma outra observação que fiz foi a da preocupação de assinalar a passagem do tempo, a preocupação cronológica, que levou o Nelson a datar o filme: 1940, 1941, 1942. Acho que essa datação é meio espúria, além de desnecessária. Em primeiro lugar, ofenderia a verdade histórica porque o livro é anterior a estes anos. Em segundo lugar, é desnecessária porque a narrativa dá tão bem a idéia desta passagem de tempo... Acho que o Nelson subestimou a sua expressividade cinematográfica e quis acrescentar umas muletas desnecessárias... Seria o caso de retirar aquilo do filme...

Nelson Pereira: Tem razão, mas havia também uma preocupação de informação. Há muitos equívocos. Talvez eu tivesse generalizado este mesmo equívoco. Mas há muitos equívocos em relação ao nordeste. Eu queria mostrar de uma maneira bem clara em quanto tempo se passava aquela história e recorri sem nenhum pudor à data, colocando a data no começo, no meio e no fim do filme. Depois de pronto, evidentemente que eu senti que era desnecessário ! Realmente se não houvesse aquelas datas o filme não sofreria nenhum problema de falta de compreensão. Mas, inicialmente, eu tinha determinação de mostrar exatamente em quanto tempo se passava a história!

Paulo Emílio: O problema levantado pelo professor Rui Mourão me fez lembrar Antônio Cândido, no ensaio sobre Graciliano. Ele cita uma expressão muito boa de Rubem Braga sobre Vidas Secas dizendo que é um "romance desmontável"... uma espécie de autonomia... uma facilidade para desmontar e remontar Os relatores já fizeram as suas perguntas. Agora a palavra está aberta aos outros participantes de seminário.

Um participante do seminário: Considerando as dificuldades do cinema nacional, eu pergunto se: Em Vidas Secas houve modificações devidas a razões econômicas ? Poderia nos contar algo mais sobre Baleia. Temos todos uma curiosidade especial e queríamos saber como você conseguiu o show de Baleia. Paulo Emilio explicou que você trabalhou com atores locais. Considera você esta idéia feliz e como recrutou eles?

Nelson Pereira: À primeira pergunta sobre modificações do roteiro, se foram motivadas por razões de ordem econômica ou por dificuldades de realização, vou responder o seguinte: uma parte, sim, mas muito pouco. Agora, a grande parte em função da falta de intimidade com aquela realidade que só fui conhecer mesmo no local de filmagem. Por outro lado, o roteiro é muito indicativo. Não é um roteiro, vamos dizer assim, bem elaborado no ponto de vista profissional-industrial. São apenas indicações de cena... o que deve ser imagem, mais uma indicação de diálogo. De maneira que eu já previa modificações dessa ordem e elas foram feitas, em grande número, na hora do trabalho. Aliás, não foi propriamente na hora do trabalho. Eu tenho um sistema de fazer um trabalho de preparação antes da filmagem. Já no ambiente e em pleno trabalho de organização de produção, eu faço a planta baixa de todo o filme. Explico à equipe e aos atores cada seqüência, o que eu pretendo, porque tem que ser daquela maneira, como os atores devem se comportar, etc... E nesse trabalho há a possibilidade de muita modificação porque é mais ou menos a discussão crítica de filme em função do conhecimento real, imediato da região, dos cenários e de gente com quem vamos trabalhar...

Vamos agora ao caso da Baleia. Muitas modificações no roteiro também foram determinadas pelo comportamento da Baleia. Eu não poderia nunca fazer um roteiro de ferro para as cenas das quais participasse a Baleia. Eu fui obrigado, por causa disso, a fazer a câmera também. Eu rodava o filme, acompanhando na câmera, toda vez que começávamos com Baleia. No começo, o operador recebia instruções: "ela tem de sair da direita e ir para a esquerda ". Mas no meio do caminho decidia outra coisa, e voltava para a direita. Cortava-se. Repetição. E é nesta altura que surgem as dificuldades econômicas, as limitações materiais do cinema brasileiro. Não tinha muito filme pra gastar. A solução imediata foi eu mesmo fazer câmera e improvisar a continuidade, de acordo com o comportamento da Baleia. Se ela saísse para a direita e saísse bem, do ponto de vista da enquadração e composição, eu, imediatamente após, teria que compor o filme de acordo com a saída dela. O plano seguinte se fazia em função do movimento da Baleia. De maneira que a Baleia é co-roteirista do filme em várias seqüências. A cena da morte da Baleia foi realizada com muita paciência, muito filme e algumas injeções de anestesia local – coitadinha. Nós, enquanto filmávamos naquele lugar, em frente da casa de Fabiano, todo fim de tarde, com a luz adequada à seqüência da morte da Baleia, realizávamos planos da Baleia morrendo, da Baleia gemendo, da Baleia capengando, etc. Aquela seqüência foi rodada assim, durante uns vinte dias, mais ou menos. Primeiro a Baleia tinha que sofrer a maquilagem, o sangue feito de óleo, graxa de automóvel, um pouco de baton e não sei mais o que... também óleo de Dendê ! Recebeu injeções de anestesia local para levantar a perninha. Mas o decisivo era colocar a máquina na melhor posição e filmar. Depois, não achava satisfatória a cena, eu precisava estar à altura do romance: era uma espécie de desafio. Eu acho que o filme podia ser ruim em qualquer ponto, menos na seqüência da morte da Baleia. Antes de fazer o filme, quando anunciava sua realização, muita gente dizia : - mas você vai fazer a morte da Baleia? Olhe lá ! Cuidado! O Prof. Pompeu foi um daqueles que me advertiram. De maneira que eu tinha este compromisso com a morte da Baleia. Tinha de fazer realmente a Baleia morrer como uma primadona de ópera... Toda a agonia da Baleia era a minha preocupação mais importante durante a realização do filme. Mas eu acho que saímos bem, tanto eu quanto a Baleia!

Em relação aos atores não profissionais, hoje vão ver que desde Rio 40º eu tenho utilizado atores não profissionais bem à vontade. "Rio 40º " tem um elenco de 103 pessoas, e eu acho que apenas 20 são profissionais.

Pompeu de Souza: Ainda não eram, tornaram-se profissionais depois.

Nelson Pereira: Sim... mas isso não foi somente cultivado por razões financeiras, pelas limitações do cinema brasileiro, mas, fundamentalmente, pelo tipo de filme que eu queira fazer. No elenco dos atores profissionais, principalmente na época de Rio 40º, não havia um grande número de atores que pudesse representar personagens daquelas camadas sociais sobre as quais o filme se volta. Nós sempre tivemos atores mais de "peles finas" e quando fui obrigado a fazer filmes onde tinha urgência e necessidade de colocar um elenco enorme, dentro do morro, garotos que vendem amendoim, a única solução era utilizar os próprios personagens da vida real. E no caso do Nordeste de Vidas Secas, a grande maioria daqueles personagens, mesmo acidentais, não poderia ser vivida por atores que eu conhecia no rio, etc... O caso de Sinhá Vitória: Maria Ribeiro mora no Rio, mas viveu sua infância e sua juventude na beira do rio São Francisco, onde pegou a água, de verdade, para beber, para a família, daquele jeito, compreende ?... E eu tinha muita preocupação pela interpretação física, pela maneira de carregar o pote na cabeça, a maneira de carregar a criança, a maneira de carregar o baú e andar. Eu dificilmente acharia uma atriz que tivesse o tipo físico de Sinhá Vitória e que pudesse viver a personagem com realismo. Por isso eu prefiro lançar mão de atores não profissionais. No Vidas Secas há um outro personagem, o menino preso com Fabiano. Ele não conhece cinema, nem de assistir! Nunca foi ao cinema! E havia necessidade também da criação, de viver exatamente como aquela gente vive e não somente uma vontade de representar. Um dos grandes problemas do cinema brasileiro atualmente é o da formação de atores. Temos de livrar os atores de um excesso de erros e deformações originados pelo mau teatro e o mau cinema. E a solução para quem está com urgência de fazer um filme é empregar o homem comum para atingir o homem verdadeiro.

Um dos seminaristas faz uma pergunta sobre o que o cineasta acrescentou ao livro – o companheiro cangaceiro – e também porque não idealizou nenhum diálogo na prisão entre este cangaceiro e Fabiano.

Nelson Pereira: No livro de Graciliano há uma pequena referência ao cangaço, durante a prisão de Fabiano. Ele pensa em matar o soldado, o juiz de direito, o delegado, em matar todo mundo e tornar-se cangaceiro. Naquela situação, naquela época, no Nordeste era uma das obsessões do nordestino: a revolta individual, o cangaço como perspectiva de superação de todos aqueles problemas. Não achei que eu poderia inventar ( e foi o único momento em que inventei no filme ). Acrescentei alguma coisa ao livro de Graciliano. Escrevi as seqüências do jovem cangaceiro preso, e do grupo (que não é bem de cangaceiros, mas apenas um grupo armado que faz a própria lei, ou na forma do cangaço, ou na forma dos jagunços. Não procurei fantasiar aqeual gente de cangaceiros cinematográficos, com chapéu de couro, estrelas, etc. Apenas um grupo armado que tem o poder de chegar num lugar e exigir a libertação de um companheiro, em função de uma realidade, de uma situação de fato.) Não coloquei diálogos porque achei que não havia necessidade de qualquer diálogo ali dentro da cadeia. Apenas uma demonstração do jovem, através de gestos, oferecendo-se para ajudar Fabiano, numa posição de solidariedade.

Pompeu de Souza: A pergunta, se tivesse sido combinada, conosco, comigo e Paulo Emilio, não seria mais perfeita para atestar a perspicácia crítica do nosso professor e crítico, porque quando nós conversamos sobre seu filme, eu fiz uma observação exatamente no mesmo sentido. E disse a Paulo Emilio: " Vamos ver se a resposta do Nelson corresponde à sua". Correspondeu.