Último de uma série de quatro
seminários realizados em novembro de 1964 no Centro de Extensão
Cultural de São Paulo, com as presenças de Nelson Pereira
dos Santos, Paulo Emílio Salles Gomes, Pompeu de Souza, Yulo
Brandão e Rui Mourão.
Paulo Emílio: Durante os nosso trabalhos,
houve alguns momentos dos debates em que depois de examinarmos um problema
sobre vários ângulos, todos nós sentimos, assim,
uma espécie de necessidade de apelar para o realizador deste
filme a fim de que ele contribuísse com a sua experiência,
com sua responsabilidade de autor do filme baseado no livro de Graciliano,
para elucidar alguns pontos. De forma que eu sugeriria que ao iniciarmos
nossos trabalhos hoje, nós nos lembrássemos daquelas perguntas,
daqueles problemas que nós queríamos apresentar ao realizador
do filme para fazê-las, neste momento, a Nelson Pereira dos Santos
que se encontra conosco.
Inicialmente, eu pediria aos relatores
que estão todos presentes aqui, nesta mesa, se eles tem problemas
e perguntas a apresentar e, em seguida, naturalmente, qualquer um dos
participantes do Seminário tembém será ouvido com
muito prazer. Nelson está preparado para dialogar e responder
ao que lhe for perguntado. De maneira que... O professor Yulo, por exemplo
– Professor Yulo, na sua exposição surgiram alguns problemas
que seria interessante apresentar a Nelson Pereira dos Santos.
Yulo Brandão: A minha pergunta está
baseada justamente no ângulo sobre o qual eu interpretei e procurei,
pelo menos, estudar o filme com relação ao livro. Ao contato
com o filme nós todos nos demos conta que alguns momentos do
livro, alguns aspectos do livro não foram, no filme, enfatizados.
Por exemplo, eu me refiro em particular ao problema da bolandeira do
Seu Tomás. Me parece que no filme não apareceu com a ênfase
que merecia, pelo menos que mereceu no livro, do autor, dada às
vinculações que este livro apresenta, que este tema apresenta
com a vida completa, integral de Fabiano. Então eu gostaria de
fazer ao senhor a mesma pergunta que eu fiz a Paulo Emilio, se a ausência
deste tema resultou de dificuldades técnicas, de impossibilidades
técnicas de trazê-lo a tela ou, ao contrário, resultou
de uma eliminação consciente por parte do senhor. Está
é a primeira pergunta.
Em segundo lugar, aquele momento em que
o menino repete aquele termo "inferno" várias vezes. Repete muitas
e muitas vezes inferno, inferno, inferno. Então temos a impressão
que o senhor quis criar ali de fato uma espécie de ambigüidade
com a palavra inferno, no sentido que ela poderia indicar a vida infernal
que estavam levando ou apenas poderia referir-se mesmo ao inferno tal
como a mãe havia sugerido à criança. Eu pergunto
se o Senhor teve a intenção com a repetição
constante da palavra inferno de manter esta ambigüidade que tem
um interesse artístico e estético muito grande; esta ambigüidade
de um termo nos define o caráter lírico da própria
palavra e das evocações desta mesma palavra num plano
altamente sugestionável do ponto de vista estético e do
ponto de vista artístico.
E uma terceira pergunta que a mim me interessou
em particular foi a ausência de musica no filme. Então
minha pergunta é a seguinte: o Senhor eliminou a música
do filme ou não pôs música porque encontrou dificuldade
de achar alguém que fizesse uma música adequada ao conteúdo
do filme ou o senhor não a colocou por convicção,
por preferir filme sem musica. Estas são as perguntas que eu
queria fazer. Muito obrigado.
Nelson Pereira: É um pouco difícil,
depois de um filme pronto, depois de cumpridos os processos de elaboração
de roteiro, de filmagem, de montagem, etc., explicar determinados resultados
obtidos para o espectador ou o crítico, porque em qualquer trabalho
já realizado (de realização cinematográfica),
não se sabe em que ponto começou a criação,
onde surgiu a idéia, de tal maneira esse trabalho é integrado,
de tal maneira o pensamento e a prática caminham juntos. Então,
quando se faz uma pergunta desse tipo, é fácil ao realizador
inventar, a posteriori, uma desculpa qualquer e sair pela tangente,
de uma maneira honrosa para ele, mas pouco esclarecedora para quem pergunta.
Neste momento diante de observações precisas, resultado
de estudo apurado do filme e do livro, eu me sinto obrigado a recordar
com toda honestidade como foi elaborado o filme. Feita essa ressalva,
eu vou explicar o caso da bolandeira. O Seu Tomás e consequentemente,
a bolandeira dele me preocuparam muito durante a adaptação
do romance. Tinha necessidade de compor Seu Tomás na sua imaginação
e no passado dos personagens, estabelecer suas relações
com Sinhá Vitória e com Fabiano. Mas eu não tinha
as informações diretas do Seu Tomás, apenas as
reminiscências do Fabiano e da Sinhá Vitória sobre
o Seu Tomás. Tratava-se de um personagem que sempre aparecia
somente na imaginação dos outros personagens. E me perguntava
sempre: terá sido verdadeiro o Seu Tomás ? O Seu Tomás
seria mais ou menos o herói cultural daquela família ?
O Seu Tomás para Fabiano é o homem que sabe ler, é
o homem que conhece além da realidade imediata ? Para Sinhá
Vitória, é o representante de uma situação
social melhor, é o homem que tem a cama de couro, que representa
o estágio imediatamente acima ao da Sinhá Vitória
e a posição que ela mais deseja. Há também
uma outra implicação de uma possível relação
– uma relação humana natural e direta – entre Seu Tomás
e Sinhá Vitória.
De maneira que são todas indagações
resultantes do que havia na imaginação, nas reminiscências
do Fabiano e Sinhá Vitória, que não me permitiram
construir esse personagem fisicamente. Eu não sei como Seu Tomás
vivia, velho, moço, velho pela sabedoria, pelo conhecimento das
coisas, moço enquanto amante de Sinhá Vitória.
Eu não tinha condições de criar o Seu Tomás
como gente. E por outro lado, no plano da linguagem cinematográfica,
eu teria que utilizar flash-back: em determinados momentos, seria obrigado
a interromper a ação do presente para colocar o Seu Tomás
na existência anterior dos personagens, numa outra fazenda, com
a bolandeira, etc. Mas essa linguagem se chocaria totalmente com a linguagem
que eu pretendia dar ao filme: a linguagem a mais direta. O flash-back
é sempre muito falso; é o passado mas não o é;
é a interrupção do presente para voltar a outro
presente, porque o tempo cinematográfico está sempre na
perspectiva do futuro. Por outro lado, eu comparei a bolandeira com
o berço de Intolerância, de Griffith.
Pompeu de Souza: Vimos aqui mesmo...lembramos
sim.
Nelson Pereira: A bolandeira no romance
já é uma imagem cinematográfica de uma vida circular,
uma vida que não começa e não acaba, como um ciclo
da natureza. É o verão e o inverno, e não há
avanço. É a monotonia de uma vida dentro de uma sociedade
estagnada. Graciliano foi um pouco homem de cinema, na medida que usou
a bolandeira para reforçar esta vida circular, monótona.
É por isso que eu decidi fazer no filme o que estava no livro:
Seu Tomás da bolandeira apareceria apenas na manifestação
oral dos personagens. Num determinado momento, no primeiro repouso,
o que fazem Sinhá Vitória e Fabiano ? Fazem um pequeno
balanço do que aconteceu a eles, antes, e aparece o Seu Tomás
naquele balanço. Aparece de uma amneira para o Fabiano e aparece
de outra maneira para Sinhá Vitória ( eu não fui
totalmente feliz na realização daquele diálogo
cruzado. Tecnicamente há um problema de som (está muito
alto) e o ator também falou muito alto. O diálogo é
muito forte. Deveria ser um som mais íntimo. Não consegui
realmente fazer o que eu queria fazer.) Mas era um balanço que
também reforçaria um outro dado, que era a incomunicabilidade
dos personagens. Quando eles começam a dialogar, não estão
dialogando, cada um fala de acordo com a sua visão e dentro do
seu mundo. Eles são casados, têm filhos, mas a mesma realidade
anterior – o Seu Tomás – é vista de maneira diferente
por cada um. O Fabiano o vê com uma certa ponta de inveja, porque
Seu Tomás sabe ler, etc., e Sinhá Vitória está
falando no Seu Tomás porque ele tinha a cama de couro. E em certos
momentos aparece o Seu Tomás – por exemplo, no diálogo
final – sendo superado por Fabiano, quando este chega a afirmar que
o Seu Tomás não andaria nem seis léguas. Não
achei necessário mudar a solução que encontrei,
colocar Seu Tomás da bolandeira como está no livro: na
memória e nos fiapos de diálogo dos personagens.
A respeito da palavra "inferno": se a ambigüidade
apontada existe, eu acho que ficou bom, ótimo, para o filme.
Mas a intenção, eu penso que está evidente na seqüência
inclusive "chateia" um pouco, porque está longa; a intenção
é tão clara, pela própria repetição.
É o momento da pesquisa. O garoto quer saber o que é o
inferno e está preocupado não só pela palavra em
si, pelo som da palavra – ele fala inferno, inferno, inferno – a palavra
tem som, apenas som. Mas também ele quer saber o que é
inferno e está, ao mesmo tempo, em conflito com a mãe,
que não lhe deu a explicação completa e, além
disso, o castigou. Assim, ele repete a palavra por várias vezes
e ao mesmo tempo, enquanto são colocadas diante dele imagens
(pelo menos do meu ponto de vista) imagens bonitas. É uma galinha
em cima do telhado, são umas vacas ao longe, um urubu num vôo
harmonioso, sensual até; um muro, o pote de barro esperando água.
De maneira que não houve a intenção de fazer com
que o menino atribuisse as qualidades do inferno à realidade
que o circundava. É apenas o momento da indagação
– inferno.... Coloquei esse episódio como a abertura das seqüências
da seca. É o primeiro episódio em que a vegetação
já está se desfolhando, já começam a aparecer
os sintomas do verão forte: a árvore sob a qual o menino
está sentado, com a cachorra, já não tem mais folhas.
Seria a preparação de todo o desenlace da história
da família.
O não emprego de música,
está muito ligado àquela preocupação de
não utilizar flash-back. Nós já fizemos ( eu só
fiz um antes, mas o cinema brasileiro já fez vários) filmes
no Nordeste e sempre a utilização da música foi,
ao meu ver, equivocada em dois sentidos: o simples emprego da música
tal como ela é produzida lá, tal como ela é executada,
ou a música orquestrada – ambas falsas. Eu praticamente não
tinha solução porque procurava não exercer nenhuma
interferência cultural, porque queria me aproximar o máximo
possível da realidade cultural do Nordeste. Nós, do Sul,
imaginamos o nordeste como um Nordeste musical, com muita musiquinha
e violeiros. Mas, na realidade, no dia-a-dia, especialmente na região
do gado, é a solidão e o ruído – o ruído
da natureza e o ruído dos instrumentos de trabalho do homem.
E o ruído que mais se aproximava do circular, quer dizer, do
sem fim, era o ruído do carro de boi que não tem nem começo
nem fim.
Pompeu de Souza: Vou fazer apenas uma pergunta
a NPS. Eu tinha pensado também naquele problema do inferno, mas
o assunto foi amplamente tratado pelo Prof. Yulo e amplamente respondido
por NPS. Quem conhece a obra e arte de NPS verifica, no contato com
o autor, o quanto o criador é elucidado pelo espírito
crítico, pela lucidez crítica, pela vigilância crítica
e pela informação cultural. De forma que eu me dispenso
de tratar do assunto do inferno porque coincido inteiramente com o ponto
de vista de NPS e acho que nesse ponto ele seguiu rigorosamente Graciliano,
inclusive nas tomadas de câmera, que ilustrou a repetição
da palavra inferno pelo menino mais velho. A câmera mostra que
ele volta a falar na palavra que aprendeu, que a repete, à espera
que se transforme em coisas. A pobreza de vocabulário das personagens
de Vidas Secas é tão completa que elas não
conhecem nenhuma palavra destituída de sentido prático
e imediato, de nenhum conhecimento físico. Então, ele
esperava, convocava o inferno para que ele existisse, já que
o depoimento da mãe fora insatisfatório do ponto de vista
da realidade física do inferno. Então, a pergunta que
quero formular a NPS é outra. A seguinte: Por que ele explorou
tanto, tão demasiadamente, a dor física de Fabiano espancado
pelo Soldado Amarelo ? Ali me pareceu que havia uma certa contradição
entre o tipo bruto, o tipo grosso, o homem maltratado de todas as maneiras
pela vida, pela natureza, e o sofrimento tremendo só porque levou
algumas pancadas de sabre ! Por que geme tanto ? Não haverá
um certo exagero, uma certa demagogia da dor física ? Acho, em
suma, que a cena é uma pouco alongada demais e em contradição
com o tipo e os antecedentes de Fabiano. Acho – e já o disse
em reunião anterior deste seminário, quando, nós
conversamos sobre o assunto – que ele extrai um belíssimo rendimento
plástico de certas tomadas dessa cena e que nela o Fabiano lembra
algumas vezes certos Cristos, certos quadros do Cristo flagelado. Há
uma certa semelhança da flagelação de Fabiano com
a flagelação de cristo. Não sei se foi intencional.
Mas, de qualquer forma, o que acho é o seguinte: a cena constitui
uma pequena traição – e a única que observo – de
NPS a Graciliano Ramos, que é muito parcimonioso na dor física
de Fabiano, mas traição sobretudo ao próprio NPS,
tão fiel sempre a Graciliano Ramos e tão fiel a si mesmo,
em todo o filme.
Nelson Pereira: Essa cena do Fabiano na
cadeia quase provocou uma surra no diretor, lá no Nordeste. O
Prof. Pompeu também está reclamando contra ela, querendo
dizer : – Nordestino não chora ! é por isso que tenho
interesse em responder a essa pergunta ! O que aconteceu foi o seguinte:
eu fiquei preocupado mais com a cantoria do reisado ( são desses
equívocos que o diretor comete e só vai perceber quando
o filme é exibido). Toda a letra do reisado reproduz a situação
a as relações entre o Fabiano e os fazendeiros. Há
toda uma submissão. Tudo se faz em função dos donos
da terra, principalmente quando se divide o boi, que é a riqueza
da região. As melhores partes vão para o senhor prefeito
e para dona Sinhá ... Somente as vísceras, as partes menos
nobres do boi, vão para os outros. Eu quis (o momento em que
a gente quer ser apenas cineasta é o momento em que se fracassa)
aproveitar toda essa parte do reisado a fim de mostrar a posição
do fazendeiro, no poleiro dele, e a do Fabiano, ao mesmo tempo, na cadeia,
preso. E para dar uma ação a Fabiano, fui obrigado a fazê-lo
sofrer. No livro, ele tem pesadelos: acorda de repente, xinga, revira-se
no chão duro, etc. Mas não podia fotografar o pesadelo
de Fabiano. Então, resolvi fazê-lo chorar, com dores, passando
a noite inteira acordado. Eu me esqueci realmente do Fabiano porque
estava preocupado com o reisado que havia descoberto. Quer dizer, eu
descobri o reisado, descobri a relação que muita gente
já descobriu antes de mim, que está escrita numa porção
de livros, mas eu, naquele momento, me sentia assim um pesquisador ,
que vê uma realidade pela primeira vez e quis mostrar isso a todo
mundo ! E abusei do reisado. Por outro lado, a gravação
da música é muito fraca, é muito falha. Pouca gente
entendeu a não ser depois de muitas exibições,
o que diziam os versos do reisado, a não ser quem já conhecia
o Bumba-meu-boi. Mas essa parte, depois, foi devidamente tesourada.
Falta mais de um quilo de filme aí. Limpei bem a seqüência.
Paulo Emílio: Agora eu vou fazer
a minha pergunta. Nós aqui quando estudamos o livro, o roteiro
e o filme, falamos um pouco a respeito de uma seqüência que
me interessa particularmente. Eu penso que dela não falamos suficiente,
naquela ocasião – já era bastante tarde – de forma que
vou revê-la um pouco antes de colocar a questão. É
a seqüência do acerto de contas, quando Fabiano vai acertar
as contas com o fazendeiro, com o patrão. Notamos que no roteiro
havia sido acrescentado um contador que cuidava dos negócios,
das contas do fazendeiro. Pompeu observou que este contador não
teria sentido, a situação local não justificava
absolutamente a existência de um contador. Seria, nas palavras
de Pompeu, um luxo excessivo... Mas de qualquer forma, havia o problema
para o Nelson de nos indicar, de uma maneira mais clara, o estatuto
social do fazendeiro, que não é brilhante, como vimos,
mas que, em todo caso, em relação a Fabiano, era muito
mais alto. Isso foi mostrado de várias maneiras: a casa mais
apresentável do vilarejo; tem o seu alpendre; na festa, no reisado,
o fazendeiro está com terno de linho branco engomado e, na ocasião,
uma coisa que não observamos aqui mas que é muito importante,
é que se o contador desapareceu, há outra personagem que
apareceu e que é importantíssima: é o professor
de violino, além da filha do fazendeiro. Aquele pormenor da lição
de violino, do professor de violino, da contemplação de
Fabiano quando ele vai buscar os cadernos, quando ele olha para aquilo,
me parece importantíssimo, me parece um momento de criação.
É muito importante e por isso eu gostaria de saber ( como todo
que não é criador, tenho uma curiosidade invejosa de saber
como as coisas acontecem para o criador!) eu gostaria que Nelson nos
explicasse, se ele ainda se lembra, como ainda surgiu a lição
de violino!
Nelson Pereira: Eu temo que minha explicação
tire o mistério do filme ! Deve ser muito simples. Primeiro eu
vou explicar o contador. Antes de fazer Vidas Secas, há
muitos anos atrás, eu tentei uma adaptação de São
Bernardo e no São Bernardo há um contador, que é
amigo da Madalena. De maneira que, quando fiz a adaptação
de Vidas Secas, eu desconhecia, embora já tivesse estado
lá, mas não tinha intimidade com as várias regiões
do Nordeste, eu desconhecia a diferença que existe entre a zona
da mata, que é a região de São Bernardo e a zona
do gado, o sertão. De maneira que quando cheguei e fui procurar
e ver exemplos de fazendeiros, senti que o contador era um personagem
inteiramente esdrúxulo na vida do fazendeiro, porque o fazendeiro
leva praticamente a mesma vida do vaqueiro. Ainda hoje em alguns lugares
é a mesma coisa. O que os diferencia é a ordem jurídica:
o fazendeiro é o proprietário e o vaqueiro não
é o proprietário. E quando a situação se
torna crítica, com a seca, etc., o mais fraco é engolido.
Da mesma maneira que o Fabiano come o papagaio, o fazendeiro expulsa
Fabiano, com a mesma tranqüilidade, com a mesma frieza. O importante
é sobreviver e, quando os meios faltam, sobrevive o mais forte.
De modo que não podia colocar o contador. Vi lá todos
os fazendeiros e grande parte deles ainda vivendo numa situação
de antes da guerra. O fazendeiro também cuida do gado, vai freqüentemente
junto com o vaqueiro cuidar da situação do bezerro tal,
da vaca tal, ver se já curou a bicheira, etc. Mas ao mesmo tempo,
havia assim a necessidade ( agora eu estou raciocinando, mas talvez
eu tivesse essa impressão na época ) de mais alguma coisa,
além da situação do fazendeiro no reisado, o problema
daquele preso, o padre etc. Precisava de mais alguma coisa para dar
o tom à posição dele. Isso foi realmente improvisado.
Havia um professor de violino ambulante – aquele homem que aparece no
filme. Ele vai ensinar violino numa porção de lugares,
toma um ônibus, vai para um lugar, depois pega um cavalo com o
violino dele. É uma coisa muito curiosa, no meio do sertão,
ele tocando. E aquela é realmente a música que ele executa.
Foi gravada diretamente. E assim que poderia colocar o professor de
violino junto com aquele fazendeiro para alcançar o tom procurado.
Creio que isso reforçou mais a situação social
do fazendeiro do que, por exemplo, a seqüência da cadeia.
Mas foi totalmente improvisada a colocação do professor
de violino, graças à própria existência do
professor de violino, que não é inventaria!
Pompeu de Souza: Além disso, parece-me
que há uma tendência natural de acentuar a distância
social entre o escravo do trabalho, que não faz outra coisa senão
ter que trabalhar, e aquela moça que é ao mesmo tempo,
vamos dizer, o eterno feminino inatingível para ele, a beleza
feminina que está fisicamente próxima mas socialmente
a uma distancia infinita. É um dos raros momentos de contemplação
que se permita ao pobre do Fabiano em relação à
mulher, à beleza, à música, à arte. É,
ainda mais, aquele momento de ócio, aquela criatura que pode
ouvir música em vez de estar na cozinha como Sinhá Vitória
ou na beira do rio lavando roupa... Mas esse é um ponto curioso:
reparar como Sinhá Vitória está sempre na cozinha
mas jamais lava roupa. Não há uma só lavagem de
roupa no filme, e não há no livro! Aqueles seres são
tão desgraçados que a roupa é um pedaço
da pele deles... que vai se sujando, vai se acabando e vai sendo substituída
quando já não tem mais nada. De forma que não há
o que lavar ! Claro que isto é simbólico e que aquelas
mulheres lavam roupa na beira do rio. Mas o fato é que não
há lavagem de roupa nem no filme nem no livro.
Rui Mourão: Eu queria fazer uma
pergunta apenas relativamente à seriação que há
dentro do livro, de tipos e de capítulos – e que você alterou
dentro do filme. Você deu uma nova ordem aos capítulos.
Eu acredito que o pouco de seriação existente no livro
esteja relacionado com o propósito expressivo pretendido no livro
por Graciliano. Ele, de certa forma, quebra o desenvolvimento progressivo
da história. Ele isola dentro de cada capítulo um personagem,
frisando a solidão destes personagens. Qual o motivo que o levou
a alterar isso ?
Nelson Pereira: Em primeiro lugar, para
não ser redundante. Na literatura é possível fazer
isso. É possível num capítulo isolar o Fabiano
e colocá-lo em xeque, quer dizer mostrar o que é Fabiano,
de que ele é constituído, etc., e a relação
dele com os filhos, quer dizer uma relação subjetiva,
partindo do Fabiano para os filhos. Agora, no cinema, eu teria que,
à medida que o Fabiano se relaciona com os filhos, apresentar
também os filhos. De maneira que eu fiz o seguinte: na adaptação
eu procurei dar uma ordem dentro da realidade. O filme se passa em dois
anos: começa num verão forte, numa seca, vêm as
chuvas, o inverno prolongado, depois um verão bom e um novo ano
sem chuva, sem inverno, o verão crescendo até o fim. Procurei
dar, dentro desse tempo de dois anos, uma ordem que obedecesse a uma
determinada linha de construção dramática. Por
exemplo, a colocação do episódio da Baleia no final
do filme e antes da partida, a fim de motivar a liquidação
da Baleia com o fato de não poder acompanhar a família,
que estava sendo obrigada a fugir. Outra coisa que eu fiz para evitar
aquela redundância foi juntar numa mesma seqüência
vários capítulos, como é o caso da festa. Entre
a primeira ida dele à festa, a cadeia, há vários
episódios diferentes. E esses episódios sobre os personagens,
eu usei como fonte para construir a conduta de cada um deles. Aquele
episódio sobre a Sinhá Vitória onde ela está
resmungando, brigando com o mundo, etc. está em todo o filme
a partir do momento em que ela sente que as coisas não melhorarão,
que o Fabiano jogou fora o dinheiro no jogo, que o sol está cada
vez mais quente, que poderá vir a seca, etc. E isto permanece
nela demonstrando sempre esta preocupação. Em vez de construir
um episódio tão somente, aquele tipo de preocupação
dela está colocado ao mesmo tempo que o garoto está indagando
a respeito do inferno.
Por outro lado há uma outra coisa:
creio que o Graciliano não teve esta preocupação
de construir o livro. Pessoas de sua família, como o Ricardo
Ramos e a própria viúva de Graciliano Ramos, Heloise,
me contaram o seguinte: ele escreveu primeiro o conto da Baleia. Em
virtude do sucesso, continuou a escrever, mas queria fazer um livro
de contos.
Agora, outra coisa, o episódio do
inferno não é bem uma repetição é
uma reelaboração de um capítulo do livro "Infância"
do Graciliano. É autobiográfico. Em determinado momento
o Graciliano garoto, com oito anos de idade, sofre aquele castigo porque
perguntou à mãe o que era inferno e se a mãe já
tinha estado lá, e então sofreu castigo e veio a preocupação
metafísica a respeito do inferno, do destino do homem, o que
é pecado, o que não é pecado.
Rui Mourão: E no conto... mas eu
acho que nós não podemos cogitar de procurar descobrir
quais as intenções de Graciliano. Nós precisamos
analisar a obra como ela se encontra, acabada e publicada!
Nelson Pereira: Não ofendi a intenção
de Graciliano Ramos. Não tinha essa intenção.
Pompeu de Souza: A propósito, uma
outra observação que fiz foi a da preocupação
de assinalar a passagem do tempo, a preocupação cronológica,
que levou o Nelson a datar o filme: 1940, 1941, 1942. Acho que essa
datação é meio espúria, além de desnecessária.
Em primeiro lugar, ofenderia a verdade histórica porque o livro
é anterior a estes anos. Em segundo lugar, é desnecessária
porque a narrativa dá tão bem a idéia desta passagem
de tempo... Acho que o Nelson subestimou a sua expressividade cinematográfica
e quis acrescentar umas muletas desnecessárias... Seria o caso
de retirar aquilo do filme...
Nelson Pereira: Tem razão, mas havia
também uma preocupação de informação.
Há muitos equívocos. Talvez eu tivesse generalizado este
mesmo equívoco. Mas há muitos equívocos em relação
ao nordeste. Eu queria mostrar de uma maneira bem clara em quanto tempo
se passava aquela história e recorri sem nenhum pudor à
data, colocando a data no começo, no meio e no fim do filme.
Depois de pronto, evidentemente que eu senti que era desnecessário
! Realmente se não houvesse aquelas datas o filme não
sofreria nenhum problema de falta de compreensão. Mas, inicialmente,
eu tinha determinação de mostrar exatamente em quanto
tempo se passava a história!
Paulo Emílio: O problema levantado
pelo professor Rui Mourão me fez lembrar Antônio Cândido,
no ensaio sobre Graciliano. Ele cita uma expressão muito boa
de Rubem Braga sobre Vidas Secas dizendo que é um "romance
desmontável"... uma espécie de autonomia... uma facilidade
para desmontar e remontar Os relatores já fizeram as suas perguntas.
Agora a palavra está aberta aos outros participantes de seminário.
Um participante do seminário: Considerando
as dificuldades do cinema nacional, eu pergunto se: Em Vidas Secas
houve modificações devidas a razões econômicas
? Poderia nos contar algo mais sobre Baleia. Temos todos uma curiosidade
especial e queríamos saber como você conseguiu o show de
Baleia. Paulo Emilio explicou que você trabalhou com atores locais.
Considera você esta idéia feliz e como recrutou eles?
Nelson Pereira: À primeira pergunta
sobre modificações do roteiro, se foram motivadas por
razões de ordem econômica ou por dificuldades de realização,
vou responder o seguinte: uma parte, sim, mas muito pouco. Agora, a
grande parte em função da falta de intimidade com aquela
realidade que só fui conhecer mesmo no local de filmagem. Por
outro lado, o roteiro é muito indicativo. Não é
um roteiro, vamos dizer assim, bem elaborado no ponto de vista profissional-industrial.
São apenas indicações de cena... o que deve ser
imagem, mais uma indicação de diálogo. De maneira
que eu já previa modificações dessa ordem e elas
foram feitas, em grande número, na hora do trabalho. Aliás,
não foi propriamente na hora do trabalho. Eu tenho um sistema
de fazer um trabalho de preparação antes da filmagem.
Já no ambiente e em pleno trabalho de organização
de produção, eu faço a planta baixa de todo o filme.
Explico à equipe e aos atores cada seqüência, o que
eu pretendo, porque tem que ser daquela maneira, como os atores devem
se comportar, etc... E nesse trabalho há a possibilidade de muita
modificação porque é mais ou menos a discussão
crítica de filme em função do conhecimento real,
imediato da região, dos cenários e de gente com quem vamos
trabalhar...
Vamos agora ao caso da Baleia. Muitas modificações
no roteiro também foram determinadas pelo comportamento da Baleia.
Eu não poderia nunca fazer um roteiro de ferro para as cenas
das quais participasse a Baleia. Eu fui obrigado, por causa disso, a
fazer a câmera também. Eu rodava o filme, acompanhando
na câmera, toda vez que começávamos com Baleia.
No começo, o operador recebia instruções: "ela
tem de sair da direita e ir para a esquerda ". Mas no meio do caminho
decidia outra coisa, e voltava para a direita. Cortava-se. Repetição.
E é nesta altura que surgem as dificuldades econômicas,
as limitações materiais do cinema brasileiro. Não
tinha muito filme pra gastar. A solução imediata foi eu
mesmo fazer câmera e improvisar a continuidade, de acordo com
o comportamento da Baleia. Se ela saísse para a direita e saísse
bem, do ponto de vista da enquadração e composição,
eu, imediatamente após, teria que compor o filme de acordo com
a saída dela. O plano seguinte se fazia em função
do movimento da Baleia. De maneira que a Baleia é co-roteirista
do filme em várias seqüências. A cena da morte da
Baleia foi realizada com muita paciência, muito filme e algumas
injeções de anestesia local – coitadinha. Nós,
enquanto filmávamos naquele lugar, em frente da casa de Fabiano,
todo fim de tarde, com a luz adequada à seqüência
da morte da Baleia, realizávamos planos da Baleia morrendo, da
Baleia gemendo, da Baleia capengando, etc. Aquela seqüência
foi rodada assim, durante uns vinte dias, mais ou menos. Primeiro a
Baleia tinha que sofrer a maquilagem, o sangue feito de óleo,
graxa de automóvel, um pouco de baton e não sei mais o
que... também óleo de Dendê ! Recebeu injeções
de anestesia local para levantar a perninha. Mas o decisivo era colocar
a máquina na melhor posição e filmar. Depois, não
achava satisfatória a cena, eu precisava estar à altura
do romance: era uma espécie de desafio. Eu acho que o filme podia
ser ruim em qualquer ponto, menos na seqüência da morte da
Baleia. Antes de fazer o filme, quando anunciava sua realização,
muita gente dizia : - mas você vai fazer a morte da Baleia? Olhe
lá ! Cuidado! O Prof. Pompeu foi um daqueles que me advertiram.
De maneira que eu tinha este compromisso com a morte da Baleia. Tinha
de fazer realmente a Baleia morrer como uma primadona de ópera...
Toda a agonia da Baleia era a minha preocupação mais importante
durante a realização do filme. Mas eu acho que saímos
bem, tanto eu quanto a Baleia!
Em relação aos atores não
profissionais, hoje vão ver que desde Rio 40º eu tenho utilizado
atores não profissionais bem à vontade. "Rio 40º " tem
um elenco de 103 pessoas, e eu acho que apenas 20 são profissionais.
Pompeu de Souza: Ainda não eram,
tornaram-se profissionais depois.
Nelson Pereira: Sim... mas isso não
foi somente cultivado por razões financeiras, pelas limitações
do cinema brasileiro, mas, fundamentalmente, pelo tipo de filme que
eu queira fazer. No elenco dos atores profissionais, principalmente
na época de Rio 40º, não havia um grande número
de atores que pudesse representar personagens daquelas camadas sociais
sobre as quais o filme se volta. Nós sempre tivemos atores mais
de "peles finas" e quando fui obrigado a fazer filmes onde tinha urgência
e necessidade de colocar um elenco enorme, dentro do morro, garotos
que vendem amendoim, a única solução era utilizar
os próprios personagens da vida real. E no caso do Nordeste de
Vidas Secas, a grande maioria daqueles personagens, mesmo acidentais,
não poderia ser vivida por atores que eu conhecia no rio, etc...
O caso de Sinhá Vitória: Maria Ribeiro mora no Rio, mas
viveu sua infância e sua juventude na beira do rio São
Francisco, onde pegou a água, de verdade, para beber, para a
família, daquele jeito, compreende ?... E eu tinha muita preocupação
pela interpretação física, pela maneira de carregar
o pote na cabeça, a maneira de carregar a criança, a maneira
de carregar o baú e andar. Eu dificilmente acharia uma atriz
que tivesse o tipo físico de Sinhá Vitória e que
pudesse viver a personagem com realismo. Por isso eu prefiro lançar
mão de atores não profissionais. No Vidas Secas
há um outro personagem, o menino preso com Fabiano. Ele não
conhece cinema, nem de assistir! Nunca foi ao cinema! E havia necessidade
também da criação, de viver exatamente como aquela
gente vive e não somente uma vontade de representar. Um dos grandes
problemas do cinema brasileiro atualmente é o da formação
de atores. Temos de livrar os atores de um excesso de erros e deformações
originados pelo mau teatro e o mau cinema. E a solução
para quem está com urgência de fazer um filme é
empregar o homem comum para atingir o homem verdadeiro.
Um dos seminaristas faz uma pergunta sobre
o que o cineasta acrescentou ao livro – o companheiro cangaceiro – e
também porque não idealizou nenhum diálogo na prisão
entre este cangaceiro e Fabiano.
Nelson Pereira: No livro de Graciliano
há uma pequena referência ao cangaço, durante a
prisão de Fabiano. Ele pensa em matar o soldado, o juiz de direito,
o delegado, em matar todo mundo e tornar-se cangaceiro. Naquela situação,
naquela época, no Nordeste era uma das obsessões do nordestino:
a revolta individual, o cangaço como perspectiva de superação
de todos aqueles problemas. Não achei que eu poderia inventar
( e foi o único momento em que inventei no filme ). Acrescentei
alguma coisa ao livro de Graciliano. Escrevi as seqüências
do jovem cangaceiro preso, e do grupo (que não é bem de
cangaceiros, mas apenas um grupo armado que faz a própria lei,
ou na forma do cangaço, ou na forma dos jagunços. Não
procurei fantasiar aqeual gente de cangaceiros cinematográficos,
com chapéu de couro, estrelas, etc. Apenas um grupo armado que
tem o poder de chegar num lugar e exigir a libertação
de um companheiro, em função de uma realidade, de uma
situação de fato.) Não coloquei diálogos
porque achei que não havia necessidade de qualquer diálogo
ali dentro da cadeia. Apenas uma demonstração do jovem,
através de gestos, oferecendo-se para ajudar Fabiano, numa posição
de solidariedade.
Pompeu de Souza: A pergunta, se tivesse
sido combinada, conosco, comigo e Paulo Emilio, não seria mais
perfeita para atestar a perspicácia crítica do nosso professor
e crítico, porque quando nós conversamos sobre seu filme,
eu fiz uma observação exatamente no mesmo sentido. E disse
a Paulo Emilio: " Vamos ver se a resposta do Nelson corresponde à
sua". Correspondeu.