Cinderela Baiana, o filme que pretendeu
(ou nem tanto) lançar a dançarina (e depois apresentadora
de TV) Carla Perez como estrela de cinema, tem suscitado mais indignação
e desprezo do que talvez merecesse por parte não só da
crítica especializada e diletante, mas da opinião púbica
em geral. A jamais plenamente resolvida questão a respeito de
qual seria "o pior filme brasileiro de todos os tempos" foi
reaberta para permitir que a derradeira produção de Antônio
Polo Galante ocupasse o topo do ranking da ignomínia cinematográfica
nacional. A convicção quanto à inexorabilidade
deste fato se verifica já na cobertura da mídia à
produção do filme, perpassada, em algumas ocasiões,
por um tom de ironia e reprovação. No fim das contas,
a crônica do desastre anunciado credibilizou-se com o retumbante
fracasso comercial do filme. Numa outra linha de raciocínio,
observaria também que Cinderela Baiana nasceu predestinado
a ser tornar uma preciosidade no âmbito do que se conhece como
cinema "trash" ou "camp", descontadas a perversidade
e o sadismo que existem no culto a este modelo de cinema.
Na verdade, não vou me deter sobre
isto. Não entrarei em questões de mérito estético
e comercial, embora fosse interessante discutir de que modo filmes como
Cinderela Baiana, Xuxa Requebra e outros nesta linha se
justificam na engrenagem do mercado cinematográfico brasileiro
ou, para ser mais atual, do mercado audiovisual. Uma reflexão
rigorosa e isenta de premissas rígidas sobre a espinhosa questão
do "cinema popular" não pode ignorar estes filmes,
nem o espaço que eles ocupam no mercado ou no imaginário
popular que gravita em torno da idolatria de consumo engendrada pela
Televisão. (Fatimarlei Lunardelli parece ser uma das poucas pessoas
a considerar como objeto de estudo este cinema popular de orientação
infanto-juvenil, sem que isto represente uma tentativa de reabilitação
estética deste gênero de cinema). Deixando estas discussões
para outra ocasião, gostaria de expor aqui algumas considerações
sobre o filme de Carla Perez que me ocorreram desde que o assisti pela
primeira vez numa sessão semideserta num cinema carioca, em 1998,
e em subseqüentes apreciações da campeoníssima
versão em vídeo do filme (mais de 50 mil cópias
vendidas, segundo informação do pesquisador Artur Autran.).
Cinderela Baiana é um tipo
de filme muito comum no cinema americano, a cinebiografia relâmpago
de ídolos populares que ascendem meteoricamente ao estrelato.
O princípio é: não há tempo a perder, façamos
um filme para explorar a popularidade de um ídolo antes que a
onda passe. Talvez por conta de um êxito maior na constituição
de uma cultura letrada, existe nos Estados Unidos a peculiaridade de
que muitas cinebiografias são antecedidas por best-sellers
literários que fornecem a motivação e o argumento
para a produção cinematográfica subseqüente.
Aqui, freqüentemente o caminho é mais curto. Lembro que
outras celebridades instantâneas oriundas da televisão
(como Fausto Silva, Sérgio Mallandro, Angélica, a própria
Xuxa) foram apropriadas pelo cinema brasileiro, mas na década
de 90, como sabemos, este tipo de cinema popular esteve em baixa, em
parte porque a televisão deu conta sozinha de fornecer as atrações
para levar os ídolos ao grande público, em parte porque
o mercado de exibição deixou de absorver com a mesma naturalidade
este produto. Além disto, cumpre observar que Cinderela Baiana
é filme que se enquadra no gênero infantil, sendo, portanto,
endereçado não aos fãs adultos de Carla Perez,
colecionadores de suas aparições na revista "Playboy",
mas ao público infantil que ela e seus empresários começaram
a cortejar em 1998.
Por conta desta adequação
ao gênero cinebiografia, Cinderela Baiana pediu licença
à poesia e conta a história de Carla Perez de um jeito
mais interessante, mais romantizado ou, como disse malvadamente um crítico
cujo nome agora não me ocorre, mais "épico".
Assim, uma história conhecida, um conto de fadas universal é
atualizado para a Salvador multi-étnica e multi-rítmica
dos anos 90. Em resumo, a Cinderela Carla Perez é uma criança
paupérrima que supera as adversidades da vida (inclusive a fome,
a humilhação, o trauma infantil da dolorosa morte da mãe)
por causa de um talento natural e inssuprimível para dançar.
Para dançar os ritmos baianos, obviamente. (É ocioso a
meu ver tentar aprofundar demais este ponto, no sentido de se discutir
ou questionar a "tese" que o argumento do filme propõe:
a redenção da miséria pela arte, ou a superação
da pobreza pelo talento natural individual. O objeto – e vai aqui um
recado para os que gostam de forjar nos filmes correspondências
para suas premissas teóricas e ideológicas – não
sustenta estas interpretações.).
O que me chamou a atenção
de imediato é que o filme abre com uma curiosa pretensão
documental, não muito esperável num conto de fadas. Trata-se
de uma espécie de prólogo que tenta evitar certos estereótipos
do melodrama televisivo. Conrado Sanchez, um diretor mais do que típico
da Boca de Lixo paulistana, que acumulou para si as funções
de diretor e fotógrafo do filme, e parece ter sido dominado pela
vontade de fazer algo diferente do que sempre tinha feito na Boca. Bem,
na verdade, há um prólogo musical, digamos assim, extradiegético,
onde Carla Perez adulta aparece dançando ao lado de Alexandre
Pires ao som de axé music. Descontando este clipe musical
clichê, temos a seguir um outro clichê que é um plano
aéreo "cartão de visitas" de Salvador, promessa
de belas paisagens naturais e tipos humanos variados que aguça
os anseios turísticos dos espectadores (e justifica alguns patrocínios,
etc.).
Peço licença (e perdão,
conforme o caso) para discorrer um pouco sobre a narrativa de Cinderela
Baiana, pois acho necessário descrever algumas características
do enredo que me parecem interessantes. Após o clipe musical
e os planos aéreos de Salvador, o filme começa para valer.
De repente, surge uma casa pobre, e percebemos que não estamos
mais em Salvador. Somos transportados para uma cidade pobre na periferia
da cidade, de vegetação rasteira, meio desértica.
Raimundo, o pai, abre a porta e ouvimos a tosse seca da esposa, Maria,
doente do pulmão. Raimundo vê uma enorme cobra sobre a
cama onde dormem Maria e a menina Carla e corajosamente consegue imobilizá-la
antes que o pior aconteça. Isto desperta a revolta nele, que
exclama com expressão amargurada: "Não dá
mais para viver nesta casa".
Sanchez mostra depois o quadro completo
desta família miserável: Maria avisa que não há
nada para se comer, Carla se consola com uma boneca nua e mutilada e
Raimundo justifica a falta de comida pelo fato de estar estudando à
noite para melhorar de vida e sair daquela situação. Em
meio a este quadro verdadeiramente desolador, a pequena Carla dança
no ritmo da axé music. Sanchez filma isto de uma forma,
me permitam dizer, realista, sem música piegas ao fundo e sem
closes sobre lágrimas deslizantes nem olhares perdidos. Acende-se
no âmago dos espectadores mais exigentes (para os quais o filme
não se endereça, diga-se de passagem) a esperança
de que algo inteligente poderá ocorrer dali para frente.
Este naturalismo, este tom até certo
ponto comedido com que é mostrada (e filmada) a dura realidade
de uma família miserável na periferia de Salvador, é
o que há de deslocado no filme. Claro, não existe nenhum
sentido de denúncia ou de retrato social nisto e seria estranho
se fosse o contrário. Sanches me parece que se esforçou
para "emular" um estilo de narração que não
era o dele, não era o jeito usual como ele fotografava e decupava.
Algo que talvez estivesse no ar nos anos 90, que ele conseguiu captar
de alguma forma: o modo documental.
Esta maneira de filmar se manifesta também
na seqüência seguinte, quando Maria leva Carla para uma estrada
de grande movimento de caminhões para conseguir algum dinheiro
para a comida. Crianças pobres escolhem um ponto da estrada e
tapam os muitos buracos existentes com terra, pedindo ajuda aos motoristas
que passam como retribuição ao trabalho que deveria ser
da Prefeitura local. Maria é única adulta. Ela leva a
filha, mas é ela que trabalha. Carla fica ao fundo, assistindo
sem interferir. Ela é figura decorativa nestas cenas por razão
muito simples: ela nasceu para dançar, não para trabalhar.
Enquanto a mãe e os meninos disputam os trocados atirados pelos
caminhoneiros, ela dança num plano mais afastado, segurando a
sua boneca.
A mãe tenta a cura espiritual para
sua doença, mas acabando morrendo e deixando marido e filha desconsolados.
Raimundo decide partir para Salvador, onde se emprega como jardineiro,
consegue uma bolsa de estudos para estudar contabilidade. Termina um
filme, começa outro. Sem mais nem menos, os anos se passam e
Carla já é adulta, bem diferente da menina do começo
do filme (a única coisa em comum é que continua dançando
e continua descalça, e este último detalhe é para
que não esqueçamos a sua condição de Cinderela).
Em pouco tempo, seu talento para dançar é descoberto e
ela consegue a fama e a prosperidade. Tudo muito ligeiro, porque logo
se percebe que o filme (o diretor, na realidade) quer se desvencilhar
o mais rápido possível do tom "documental" do
início para assumir seu compromisso com o conto de fadas prometido
aos espectadores. Se havia alguma plausibilidade na atuação
dos atores no início, ela é expulsa inapelavelmente pela
escalação de não-atores viscerais que soletram
suas falas e, sobretudo, pela canastrice autocaricata de Perry Sales,
o empresário que conduz Carla Perez aos píncaros do estrelato.
Sem levar em consideração
se Cinderela Baiana é um exemplo significativo do cinema
popular da década de 90, é curioso perceber como se manifesta
num filme explicitamente "oportunista", no sentido positivo
(se houver) da palavra, o que eu chamaria de "emulações
do documental". Não vou discutir a "sinceridade"
desta representação nem questione a existência de
uma assintonia total entre a atitude documental consciente e sua mera
emulação utilitarista. Quero chamar a atenção
para a existência de uma certa ética documental em retratar
certas realidades sociais e geográficas do país que contamina
o cinema de ficção nos anos 1990. O inusitado é
verificar como nem o cinema mais popular, desprovido de quaisquer ambições
estéticas ou sociais, feito rápida e improvisadamente
para tirar proveito de uma demanda específica, de que é
exemplo Cinderela Baiana, escapou a esta emanação.
Lécio Augusto Ramos