Aos Guris, o Guru Jairo

 

There's a starman waiting in the sky
He'd like to come and meet us
But he thinks he'd blow our minds
There's a starman waiting in the sky
He told us not to blow it
'Cause he knows it's all worthwhile
He told me:
Let the children lose it
Let the children use it
Let all the children boogie

David Bowie – Starman


Jairo Ferreira em filmagem de O Guru e os Guris

Se Almeida Salles foi nosso escritor de cinema, Jairo Ferreira não deixa por menos e é o cinepoeta brasileiro – sua imaginação trabalha pensando em cinema (respiro cinema por todos os poros) e escrevendo numa linguagem com maravilhosa vocação concretista. Como diria o próprio: eu não separo a temática da forma utilizada: da forma nasce a idéia. É isso aí: IN/FORMAÇÃO que TRANSFORMA. Dito e feito por quem conhece o riscado de todos os lados – Jairo é de uma estirpe de críticos em flagrante extinção (ah!, a objetividade jornalística...), para os quais escrever é dirigir, ver é fazer, tudo é uma coisa só, transleitura do aqui e do agora liberada pelo inconsciente. Godard já dizia: entre fazer crítica (dependendo de como é feita) e fazer filmes, a diferença é quantitativa, jamais qualitativa. E Jairo completa a tabelinha: Nossos críticos falam muito em distanciamento crítico – o filme lá, ele bem longe dos problemas do nosso cinema e muito por dentro dos mexericos de Hollywood. Falta aproximação crítica, envolvimento direto do crítico na produção: só assim se cria um movimento novo, uma nova tendência, uma nova fase criativa. Não é por acaso que os melhores críticos foram sempre os que entenderam o lance: não dá para mergulhar de verdade no abismo do ribeirão cine sem querer se molhar – hoje, o máximo que nossa crítica (?) consegue é nadar no vinagre. Lição de casa do guru: crítico que tira o seu da reta não é crítico – é resenhista, colunista social ou fofoqueiro badalativo.

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A carreira de crítico do Jairo começou em 65, na Tribuna de Santos, mas passemos ao fundamental: foi nas páginas do nipo-jornal São Paulo Shimbun – sendo mais exato, na primeira página; explica-se: em japonês a leitura é do fim para o início – que o negócio engrenou de fato. Durante seis anos, todas as quintas-feiras, ele fez a melhor crônica do udigrudi bárbaro & nosso – esse material é fundamental para quem pretende entender qualquer coisa que seja do cinema-boca-do-lixo. Mas aí o bicho pega: onde encontrar esses textos, a não ser aqui e ali, nos arquivos das cinematecas? Tentando preencher essa lacuna grave, entre outros textos do guru Jairo segue também nesta edição de Contracampo uma pequena amostragem empírica da coluna Cinema no São Paulo Shimbun... para ver se ilumina um pouco a cabeça de algum editor inteligente que um dia vai compilar e lançar uma coletânea com os artigos. Até lá, o negócio é saborear (o importante é reler, também) Cinema de Invenção, o valioso inventário do experimental tropical assinado pelo Jairo que acaba de ser relançado (eis um fora-do-gibi que há muitos anos também estava fora dos catálogos: ver mais também nesta edição de Contracampo) em edição impecável e obrigatória.

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Não dá para querer apresentar o guru Jairo Ferreira sem citar Carlos Reichenbach (senão o recado ficava incompleto):

O Jairo é um irmão do universo e falar dele é falar também de mim. Sobre o Vampiro da Cinemateca, certa vez iniciei uma matéria intitulada O Vampiro de Glicério [rua onde Jairo morou por um bom tempo]. Em 1969, freqüentei o seu apartamento na Liberdade, discutindo e fazendo cinema, cinema e mais cinema. Num lance visionário Jairo esbarra o estômago contra as costelas pra fazer as melhores críticas de cinema do Brasil. Acho que todo cinema que ele faz está adiante de todos, filmando como ninguém filma os filmes que filmam filmes. É o único vampiro que assume a chupação e passa recibo. Não chupa por tabela: chupa direto da tela. Segue à risca a indicação de Welles sobre o Super 8 ("caderno de anotações do cineasta"), extraindo cinema das situações mais precárias.

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Dia desses conversei com Jairo pelo telefone, uma papo qualquer coisa de quase uma hora – e que vai valer cada centavo do interurbano Rio-São Paulo. Para quem imaginava que o colega recruta de profissão estava meio parado, as surpresas são muitas. Entre diversos assuntos, ele me conta porque há anos não escreve nos jornais com regularidade: não há mais espaço na imprensa oficial para qualquer tipo de reflexão fílmica mais séria. Eles querem que eu escreva comentário de 20 linhas sobre os filmes, isso eu não faço. Se eu resolver escrever um ensaio sobre o Cronenberg ninguém publica. Pois é, Jairo, o cinema brasileiro não exclui só os melhores diretores; eis aí a crítica de mercado: os resenhistas participando e se enredando, sem saber (claro!), do ritual de poder do cinema marqueteiro que pede um acompanhamento crítico (?) à altura – ou baixeza, segundo o gosto do freguês. Hoje o mercado (e sua grana por trás) serve para tudo, inclusive para justificar a crítica incompetente e fascista.

Em 73, nas páginas da revista Cinegrafia (o texto também segue nesta edição da Contracampo), ele já profetizava: A crítica de cinema, nesta paulicéia nada desvairada, nasceu com Paulo Emílio e poderá morrer comigo, gerações extremas de uma anarquia crítica. Mas enquanto a árvore frondosa da crítica nativa (a tradição existe) oferece sua sombra aos novatos, nos jornais quase só dá vegetação rasteira. O negócio de Jairo é outro: nessa genealogia, ele criou quase sozinho um ramo todo novo e cheio de frutos maravilhosos – e que algum dia a nova geração carioca (em São Paulo houve uma mostra em 97) vai poder conferir. Até lá, quando se falar nos filmes que Jairo dirigiu (O Vampiro da Cinemateca, Horror Palace Hotel, O Insigne Ficante), roteirizou (O Pornógrafo do Callegaro), atuou (Aopção, entre uns 30 títulos) e por aí vai, o ninguém-sabe-ninguém-viu infelizmente impera.

O assunto não para por aí: o colega Jairo faz elogios aos guris da Contracampo (ao saber de nossa pouca idade, o espanto foi grande), e diz que, se fazer crítica não dá pé, o jeito é partir para a literatura – já são dois os romances escritos nos últimos tempos: Hermes nas Estrelas e Só por Hoje. A conversa continua, o cinema digital entra na baila e ele me diz que adorou Babilônia 2000 do Eduardo Coutinho: é revolucionário! É preciso lembrar que com o super-8 Jairo criou uma verdadeira estética do suporte (filmes baratos e livres para criar) que deveria ser lição obrigatória para a maioria dos incompetentes possuidores de um DV (as semelhanças entre o super-8 e o digital estão aí para quem quiser ver) na mão e muito vento cabeça.

E de tão agradável o papo, quase me esqueço do fundamental: perguntar sobre o obrigatório Cinema de Invenção, inventário do experimental brasileiro escrito pelo Jairo, recém relançado numa edição ampliada e impecável. Mas o livro é assunto que rende um bocado, fica para outro dia, quem sabe outro texto – e o leitor pode esperar uma entrevista com Jairo para um dos próximos números da revista.

Juliano Tosi