O
Despertar da Besta
ou Questão de Crítica

"Isto não
me agrada" Por quê?
"Não estou à altura disso."
Algum homem já respondeu assim?
Nietzsche, Além do Bem e do Mal, 185
Experimentos
radicais têm disso: você ama
ou abomina. Quem estiver bufando e resmungando
"é uma besta"... vá ao cinema então. Bom
sono.
Jaime Biaggio in O Globo, 29 set 2000
É uma besta!
Mas antes que se vá além, é preciso primeiramente
delinear o perfil do argumento contra a crítica.
Que se fala mal da
crítica, não é nada novo, isso existe desde que a
crítica existe. Que se fale mal da nova crítica cinematográfica,
tampouco estaremos dizendo uma grande novidade. A mediocridade é
tão patente que poderíamos seguir o craque Romário
no dito popular: "Quem é ruim se destrói sozinho."
Ou então poderíamos igualmente nos desfazer do mau sentimento
esbravejando na rua ou no botequim a cada sandice que um jornalista mal
informado e pretensamente muito perspicaz perpetra. Ou até rirmos
até a goela reclamar. Todos esses procedimentos já foram
experimentados inúmeras vezes por qualquer leitor regular dos suplementos
de sexta-feira na grande imprensa. Mas a natureza da objeção
à crítica nos parece outra: não ficamos incomodados
pontualmente porque tal ou tal julgamento por parte de um crítico
não coincide com nossas opiniões; muito menos porque um
filme ruim reconhecido até mesmo pelo crítico
recebe duas páginas enquanto uma obra-prima merece apenas quinze
linhas (pois isso editorialmente significa 4 estrelas ao filme ruim e
bola preta à tal obra-prima). Incomoda, sim, o despreparo e o pouco
caso com que a matéria crítica é tratada semanalmente
nos jornais brasileiros (mais patentemente nos do Rio de Janeiro), cada
vez mais rebaixada a uma espécie de "vocabulário acessório"
que o crítico dispões caso precisa falar detidamente de
algum aspecto específico do filme. Mas o que mais incomoda não
é nem uma possível má vontade do jornalista que escreve
sobre cinema; é a absoluta falta de vontade de defender
qualquer interesse estético, qualquer peculiaridade temática,
qualquer visão de mundo. O crítico, aquele que assumia ares
de gourmand, sbendo degustar o prato que experimenta, sai de cena para
dar origem ao jornalista cultural de fast-food, menos por ser uma saída
prática e rápida aos desafios do dia-a-dia moderno (o que
seria legítimo) do que pela absoluta insipiência assumida
por um discurso que se quer crítico mas se revela cabalmente sem
tempero. Mais que uma prosa fast-food, uma escrita do regurgito: joga-se
para fora sem sequer haver-se aproveitado a proteína.
Sim, há aspectos
atenuantes: o mundo jornalístico vive desde os anos 80 (data do
nascimento da crítica regurgitada) uma profunda mutação
quanto à idéia de notícia. A "old news",
conteudística e literária, dá lugar à "new
news", icônica e imagética. Os textos passam a ficar
menores, a paginação vai progressivamente sendo o principal
fator de destaque do jornal que se observem as famosas "reformas
gráficas" dos jornais nos anos 90 , os gráficos
e as matérias paralelas (coordenadas) crescem esmagadoramente.
A essa avalanhce, a crítica não soube resistir: um filme
passava a precisar ser analisado em 10, 15 linhas, no que valia o pder
de síntese do escriba.
Mas o problema está
aí, apenas no tamanho do texto? Certamente que não. Se o
problema do pouco espaço é grande, o problema do "o
que fazer" com esse espaço é que é determinante
no caso. A maior parte dos jornalistas conta a história, informa
alguns dos cinemas que exibem o filme (mesmo que essa informação
já seja dada em outro lugar do jornal), menciona o diretor e os
atores e, por fim, faz um pequeno comentário onde finalmente o
filme será "avaliado". Ou então se faz de outra
forma: desde o começo o jornalista imprime um tom na maioria
das vezes jocoso que já permite de antemão que se
saiba a opinião sobre o filme. Aí pouco importa a análise,
importa o wit do redator: piadinhas, anedotas, sarcasmo e julgamento "despretensioso"
vêm a campo para ocultar erudição (que nem sempre
é sisuda), análise (nem sempre sem humor) e a capacidade
para realizar proposições fortes e arriscadas. A crítica
do regurgito não é apenas a anemia intelectual, mas também
e acima de tudo uma falta de apetite constitutiva, uma esterilidade genética.
Trata-se de uma vez
da derrocada do argumento em nome da opinião. Mas não que
aqui a opinião tenha algum valor nobre de luta contra a verdade
absoluta, de uma briga por uma minoridade contra uma maioridade totalizante
e simplificadora. Não. Essa opinião é assentada em
idiossincrasias e veleidades e, como todo medíocre é preguiçoso,
nas idéias feitas e no clichê. Não à toa, um
desses novos gênios recorreu ao clichê para falar de uma reprise
televisiva de Edward Mãos de Tesoura, de Tim Burton. Antes
de tudo, reconheceu que era clichê dizer que os presonagens de Burton
eram "esquisitões". Como a tarefa do pensamento é
sempre eliminar idéias prontas, o leitor atento imagina que o jornalista
vai desqualificar o clichê. E qual não é sua surpresa
quando lê: "mas não é só porque é
clichê que iremos deixar de dizer".
Assim, tudo que a
crítica carioca herdou dos anos 80/90, a nova crítica copia
deslavadamente, sem o menor senso... ...crítico!!! O amor a Woody
Allen, a Almodóvar, o elogio de uma espécie de "meio
termo cinematográfico", um ideal de cinema nem muito popular
nem muito erudito... tudo isso a nova geração engoliu como
se isso fosse a pura verdade cinematográfica. E dá-lhe meio
termo: nunca Manoel de Oliveira ou Quem Vai Ficar Com Mary?, mas
Terra e Liberdade; nunca O Viajante ou Navalha na Carne,
mas Guerra de Canudos. Se quisermos voltar à já clássica
definição highbrow/midbrow/low-brow, ou seja, alta/média/baixa
cultura, a nova crítica prefere a média não por convicção,
mas por pura incapacidade de ser alta cultura e nojo de ser laia
aliás, sob esse último aspecto, eles parecem ter razão:
não fosse esse comportamento, eles seriam plenamente confundíveis.
E antes que se esqueça: o exemplo já batido de uma obra
midbrow é uma batida dance acompanhando uma melodia de Mozart
a idéia de um sublime "aguado".
Mas é na estupidez
que a nova crítica sabe se superar. Quando menos se espera, mais
eles nos surpreendem. Por isso escolhemos um texto particularmente burro
e particularmente curto (leiam bem, curto!) para evidenciar tudo
que tentamos dizer. Falo do texto intitulado "A Quem interessar possa",
escrito pelo jornalista Jaime Biaggio a propósito do filme Gente
da Sicília, de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, no dia
29 de setembro de 2000. Ele começa assim: "É chato
ser estraga-prazeres da festa de inauguração do bem-vindo
Espaço Rio Design. Mas Gente da Sicília é
10 vezes mais chato.". Uma piadinha. E continua: "O filme de
Danièle Huillet e Jean-Marie Straub levou o prêmio da crítica
na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 1999. Pois é:
só crítico de cinema para gostar." Outra piadinha.
Lá se vai a primeira coluna de texto e o sr. Biaggio só
nos informou que o filme ganhou um prêmio de crítica e que
um cinema abriu (mesmo que essa informação já tenha
sido dada em outra matéria na mesma página). Ele continua:
"A receita: o enredo sobre um sicliano que volta à terra natal
após anos distante; preto e branco estourado; os não-atores
típicos do neo-realismo em interpretações neo-artificiais,
declamadas; uma câmera que chama atenção para si pela
imobilidade; longos instantes de silêncio; 66 minutos que parecem
o dobro." Por fim, o último parágrafo: "Experimentos
radicais têm disso: você ama ou abomina. Quem estiver bufando
ou resmungando 'é uma besta...', vá ao cinema então.
Bom sono." Fim.
É uma besta,
sem sombra de dúvida, e isso sem precisar sequer dignar-se a ver
o filme. A começar por uma pulga atrás da orelha. Se "só
crítico de cinema para gostar", por que o crítico de
cinema não gostou? Sem querer, le se entrega aí. Depois,
o sr. não-crítico trata de elencar a "receita"
do filme. Sim, é o procedimento de um jegue: elencando, sabemos
que uma pessoa é alta, magra, usa óculos, é manca,
tem nariz grande, gosta de basquete, etc., mas jamais saberemos se é
boa de papo ou confiável. E no meio da descrição,
o s jornalista ainda fornece uma obra-prima da parvoíce: ao ver
os atores falando italiano com imagem em preto e branco, o sr. Biaggio
faz questão de escrever que são os mesmos "não-atores
do neo-realismo". Sabemos que é difícil ser inteligente
e culto hoje em dia. Tem tanto seriado da Sony e revista hype pra ler
que nem dá pra abrir um livro. Mas o sr. não-crítico
poderia ter-nos poupado dessa. Não é difícil citar
autores que trabalharam com interpretação não-realista:
Bresson, Artaud, Beckett, Godard, Syberberg, só para citar os mais
notórios. Associar Straub com De Sica e Rossellini é tão
imbecil e brutal quanto associar Schönberg e Zumbi do Mato simplesmente
porque os dois fogem da música tonal. Ignorância, falta de
leitura. E o que dizer de "neo-artificial"? Tudo bem que é
mais uma gracinha da parte do jornalista, mas dessa vez a completa falta
de referências pesa: a interpretação dos atores nos
filmes de Straub pode ser artificial, mas jamais "neo". Desde
o começo dos anos 60, o diretor de Gente da Sicília já
praticava esse mesmo tipo de cinema, como o sr. não-crítico
mesmo diz, "declamado". Sobre o último parágrafo
poderíamos ainda tecer comentários acerca de palavras problemáticas
como "experimento" ou "radical", mas para quem não
chegou a ser alfabetizado, não dá para ensinar matéria
de faculdade.
Esse texto, tomado
aqui como exemplo, não se trata todavia de um mero "caso limite"
de uma nova crítica que seria, na média, passável.
Não. Ela não é ruim simplesmente porque é
burra, mal-informada, despreparada, impertinente, engraçadinha
ou preguiçosa: ela é ruim porque carrega em si própria
um pressuposto estético muito claro: o entretenimento tal como
essa palavra vem significando nos últimos tempos distração.
Se eles precisam desse pressuposto paar escrever, é óbvio
que julgarão os filmes à luz desse pressuposto. E continuarão
dando bonequinhos e estrelas infames para David Lynch, Cronenberg, Straub,
Hou Hsiao-hsien, Brian de Palma... mas para quem escreve num jornal que
há 45 anos considerava Hitchcock como um autor de interesse reduzido,
os novos críticos ainda têm que penar se esperam fazer história
no anedotário da crítica brasileira.Quem saber com o próximo
filme de Godard?
É preciso defender
o argumento. Não porque ele exprime a verdade incontestável,
mas porque ele cria verdades, ele cria itnierários, ele carrega
o leitor numa viagem que pode nem ser a do filme. Uma crítica não
é uma composição que, sob pena de perder a obra de
vista, instaura uma crise acerca do que se viu e se sentiu, coloca
um ponto de interrogação gigantesco em cima de sua obra
de predileção para tentar responder logo após. Da
mesma forma que os que falam inglês sabem distinguir entre "critic"
e "reviewer", é preciso que esses novos postulantes a
críticos sejam chamados de resenheiros, porque não são
nada além disso. Eles mesmos parecem comprovar no que escrevem.
Uma crítica, para dizer como a Suzy de Inquietude, "c'est
une autre chose". Se a ascensão dos novos "críticos"
fosse um filme, certamente não seria Nasce uma Estrela.
Seria antes O Despertar da Besta. E se hoje vivemos O Dia da
Besta, não podemos fazer nada além de ter a esperança
de que Dias Melhores Virão.
Ruy Gardnier
|
|