Um Papo com Walter Lima Jr.

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Sentar para conversar sobre cinema com Walter Lima Jr., como qualquer pessoa que já tenha feito isso, seja como crítico, jornalista, colaborador ou amigo, pode atestar, é um prazer. Cineclubista de primeira hora, crítico precoce de cinema (inclusive, o material produzido para o Correio da Manhã está a disposição no site www.geocities.com/walterlimajr

) Walter sempre pensou a sua própria realização com o olhar educado de um espectador privilegiado. Entrevistá-lo é inevitavelmente aprender com uma das poucas pessoas que tem a experiência do realizador com a percepção atenta do crítico. Quando sentamos nesta tarde de dezembro para falar com ele, encontramos um realizador num momento especial: recém homenageado com uma retrospectiva (ou balanço, como ele prefere) completa de seu trabalho no CCBB, e prestes a entrar no set de filmagem em janeiro, para realizar um projeto "de encomenda" para a TV italiana (na entrevista inclusive falamos das diferenças e pontos de conexão entre os chamados projetos de encomenda e os pessoais). E mais, planejando ainda para 2001 seu próximo filme "pessoal", Os Desafinados, um filme sobre a época da Bossa Nova. Portanto, um realizador num momento especial, que vive intensamente seu presente, passado e futuro.

Neste papo falou-se de impressões sobre seus filmes, sobre processo de trabalho, sobre cinema brasileiro (seja dos anos 70 ou dos anos 90), sobre colaboradores, sobre a retrospectiva, sobre os planos futuros. O mais importante num momento destes é tentar não repetir tudo que já foi dito sobre a obra e sobre o cineasta, especialmente com o grande número de matérias por conta da retrospectiva. Também há uma deliciosa entrevista no livro O Processo do Cinema Novo, de Alex Viany (p. 351-371), na qual ele explora bastante a fase cineclubista, a entrada no cinema, o trabalho com Gláuber como assistente em Deus e o Diabo, e de muito do processo de Walter até o ano da entrevista (1983), motivo pelo qual tentamos evitar nos alongar nestes assuntos. Até porque Viany tinha uma capacidade como entrevistador que não pretendemos igualar, e como Walter é um entrevistado ideal (pelo tanto que gosta de falar), aquela entrevista praticamente esgota quase completamente os tópicos. Vamos à entrevista:

Contracampo: Como você se sente vendo sua carreira, sua obra, sua vida, sendo reunida num só lugar para as pessoas verem? Outro dia, no lançamento da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, o Nelson Pereira foi tratado, de corpo presente na mesa, como uma estátua, uma figura longínqua, elogiado pelo seu "unânime passado de serviços ao cinema brasileiro". Estas retrospectivas muitas vezes têm este caráter, então fico pensando que deve ser estranho ver sua obra exibida assim como um conjunto, quando ela ainda está em curso, em movimento, é viva...

Walter Lima: Se eu puder resumir, porque eu não vi todos os filmes ali, em relação ao público, mas um deles, mesmo não tendo visto, eu fiquei do lado de fora e vi a reação das pessoas. E foi, para mim, mas ou menos uma síntese do que eu poderia sentir de melhor em relação a tudo isso, que era o caso da Lira do Delírio. Eu achei que o filme, ao contrário do que parecia era um filme, e eu nunca senti isso em relação ao filme porque eu achei que o filme nunca tinha sido visto, e a alegria para mim foi sentir que o filme foi visto. E o filme era simplesmente mais do que aquilo que as pessoas, aqui no Rio, tinham sentido antes. Porque ele foi exibido aqui logo após um trauma extremamente forte, da morte de Anecy (Anecy Rocha, protagonista do filme, e esposa de Walter então, que faleceu num acidente), então as pessoas não viam o filme. As pessoas sentiam referências de tudo que tinha acontecido, dentro do filme. Mas, o filme era o filme, existia como filme, e foi feito assim, com uma vontade muito grande de tragar a vida para dentro dele, e ele estava vivo! Mas mais do que uma obra acabada, ele é uma obra em curso, que hoje encontra um público que se dinamizava com ele, trabalhava a emoção do público neste momento exato, em 2000, ele tendo sido feito em 1977, 76, e tudo isso era uma coisa extremamente viva para mim. Eu não vi aquilo como uma retrospectiva, eu vi como um balanço. Eu nunca tinha tido a oportunidade de ver meus filmes, fazer um balanço, e eu achei interessante, achei uma coisa viva. Mas, os filmes, depois que você faz, eles não te pertencem mais, você vira verbete dos filmes, porque na verdade o filme não é mais teu, o filme é de quem vê. E eu na medida em que pude ver que aquele filme não era mais meu, nem do drama de Anecy, nem de nada, era um filme das pessoas que vinham me dizer "Este filme tem que ser relançado! Você tem que mostrar!", elas estavam na verdade dizendo "Este filme nos pertence, não é pra prateleira, devolva o filme, por favor, bote em cartaz. Esse filme tem um uso para a modernidade que nos interessa, é um exemplo de uma vitalidade do cinema brasileiro que nos interessa." E isso é uma coisa muito boa.

Cc: E o que as pessoas comentavam era que na verdade, talvez, hoje o filem esteja mais moderno do que jamais foi. Com o processo pelo qual passou o cinema brasileiro nestes anos, nos anos 90 principalmente, talvez ele esteja mais moderno do que nunca...

WL: É, mas independente disso, o filme era o filme. Foi um filme no qual me arrisquei muito fazendo, e todo mundo que fez, também. O filme é uma aventura muito singular, que talvez só pudesse ser feita numa cinematografia que aceita correr riscos. De repente é esta pulsação, esta vitalidade, que aliás é uma vitalidade presente em vários dos filmes feitos naquele momento. Mas aquele é um filme muito particular, mesmo dentro daquele quadro do cinema brasileiro. Não é que ele seja melhor nem pior do que qualquer um, ele é uma aventura em torno disso, ele leva isso tudo quase às últimas consequências.

Cc: Inclusive o Tonico Pereira, ator do filme, num debate no CCBB durante a mostra se referiu a ele como "um filme feito sem camisinha"...

WL: É isso, é um filme que foi feito com muita vontade de fazer, tirado à força mas ao mesmo tempo saindo muito fácil... Com todo mundo se arriscando e querendo fazer o que quer, não sabendo muito o que está fazendo durante, mas querendo muito saber o que que vai ser depois.

Cc: E a segunda parte do filme, após a filmagem do parte "documental" do Carnaval, filmada em 73 com toda liberdade, como foi a construção daquela segunda parte? Vocês seguiam uma linha, um roteiro, ou era tudo de improviso?

WL: Tinha uma estrutura, mas a segunda fase era muito mais livre até do que a primeira... A primeira fase era pura loucura, era fazer uma coisa estando todo mundo doido, todo mundo bêbado, e o que que eu faço com a loucura das pessoas? Eu filmo. Mas na segunda fase era preciso compatibilizar aquela loucura com a expressão criativa, sem perder a relação de uma coisa com a outra. Como é que eu podia montar uma coisa careta com uma coisa totalmente doida? Era preciso manter um pé na loucura e uma estrutura de módulos que me permitisse sair por aqui ou por ali. A compreensão disso foi uma coisa muito sofrida, muito demorada.

Mas o saldo da mostra vem na relação com o público, da Lira, do próprio Brasil Ano 2000, ou no caso do Na Boca da Noite, que foi um filme que mal foi exibido no Rio de Janeiro, que ficou em cartaz 3 semanas no Jóia no meio da ditadura, numa época que o Jóia era um cinema que pouca gente frequentava...

Cc: Hoje não mudou muito...

WL: É não mudou muito, mas hoje pelo menos as pessoas sabem onde ele fica... (risos) Antigamente nem isso, era uma coisa escondida que a Cinemateca programava, não tinha nenhuma relação com o circuito. Então tinha aquele filme ali, que de repente ficou três semanas em cartaz porque não tinha mais nada para passar, deixa lá...

Cc: Ou o Joana Angélica...

WL: O Joana Angélica nem foi exibido, ele passou na TV Educativa oito anos depois num dia de tarde, com aquela audiência fantástica que a TVE tem... Eu exibi ele logo depois que eu acabei, numa sessão para amigos lá no Cândido Mendes, porque eu estava dando aula lá. Tentei exibir em universidades também, exibi uma vez na UERJ, armei com um professor de História que eu conhecia lá, e ele passou o filme, passava o filme no circuito interno de televisão, ele passava no bar, no corredor...

Cc: E é um filme que surpreendeu as pessoas, que não conheciam, e acho que não esperavam o jogo de linguagem que ele propõe. Por exemplo, aquela cena do Walmor Chagas vestido à caráter como um general antigo, discursando do alto de um prédio em Salvador, que anda em sequência até uma mesa onde estão sentados vários historiadores e ele começa a discutir aquela história com eles. E acho que na própria entrevista com o Viany você menciona o fato de ter feito o filme logo depois da Lira, que foi onde você aprendeu a arriscar...

WL: É essa coisa de você estar jogando com um personagem, e de repente o personagem não é só um personagem, é você. E você é um pouco o personagem. O limite entre você –ator- e o personagem, é mínimo. Então, porque não usar isso? No caso da Lira eu estava provocando isso, para começar não deixando que tivessem nomes, os personagens. Então o ator nunca sabia quando acabava o personagem e começava ele. No caso do Joana Angélica, eu poderia dizer a um determinado momento que este era o discurso do General Madeira de Melo e que num momento eu quero que você fosse lá e entrevistasse os caras. Diga esta fala, depois vai até lá e entrevista os caras, e a primeira pergunta eu quero que seja esta. A única coisa que ele (Walmor Chagas) me disse, e que achei interessante foi "Eu só queria desabotoar este colarinho nesta hora, porque aí eu não vou ser ele", e eu disse "Tá legal".

Cc: Voltando ao início, quero insistir na retrospectiva. Olhando para o catálogo, com toda a obra organizada assim, cronologicamente, dá para fazer um balanço?

WL: Olha, o que dá para saber é que eu enderecei os filmes às pessoas, e eles chegaram lá. Só isso me basta. A minha relação com meus filmes é muito substantiva, os adjetivos não pesam tanto. Então, saber isso me basta. Agora, como você tava falando, quando tem essa coisa como de colocar o Nelson numa tumba falando que ele já foi, que algum dia fez, que já era, eu nunca senti isso com relação à mostra. Da primeira vez que eles (os organizadores da mostra, Carlos Alberto de Mattos e Beth Formaggini) me falaram que iam fazer a mostra eu achei uma coisa meio absurda. "Pô, que trabalheira!" Localizar este documentário na Rede Globo, eu nunca movimentei uma palha... Calcula, eu ir lá na TV Globo, não vou mesmo! Me meter com aquele pessoal de novo, uma aporrinhação... O catálogo eu só fui ver lá, na hora, não tinha visto ainda. É evidente que você fica emocionado com o carinho, com o cuidado deles. Mas tem tanta coisa a mais, que nem tá aí... Para não falar da relação humana com as equipes, que é a coisa mais bonita que fica na tua vida, e isso é intransmissível, só pode ser vivido naquele momento. Às vezes você encontra a pessoa e fala "E aí?", e as pessoas não lembram mais de porra nenhuma... E são essas coisas que ficam de fora, o emocional vivido, o existencial. Aí o que existe é uma porrada de filmes...

Cc: Sem falar no trabalho com a TV, que você mesmo citou. Acho que é interessante falarmos um pouco mais dele, porque a nova geração não sabe, por exemplo, como o Globo Repórter era interessante. Tinha você, o Eduardo Coutinho...

WL: Quando o Globo Repórter começou era às 23hs, então ele não tinha a cobertura da programação de larga audiência. Isso no meio da ditadura. O que eu estava vivendo naquele momento era justamente uma experiência de cinema onde a experimentação com as metáforas tinha sido levada a um nível abusado, é só olhar o Brasil Ano 2000 para ver. E não era só eu, tinha uma quantidade de gente fazendo. Então você levar isso para dentro de um programa de TV no miolo da ditadura e metaforizar a linguagem jornalística, virou um hit dentro da televisão. A ponto de eu estar editando e entrava o Dias Gomes, ficava assistindo restos do programa e copiando diálogos. E não eram coisas que não iam entrar no ar porque não pudesse não, é porque não tinha tempo. O Globo Repórter tinha uma equipe de oito pessoas, depois virou cinquenta... Eu trabalhava com o mesmo câmera e o mesmo cara do som, éramos os três, e tinha mais três caras trabalhando em outra equipe, eram duas equipes, e a direção do programa, mais dois caras de produção e acabou. Na verdade era um prolongamento das equipes do Cinema Novo, onde você não tinha de prestar contas de porra nenhuma. Um ano depois é que fizeram uma reunião com a gente e disseram: "O programa é muito bom, e nós vamos passar para as 21hs, só que vocês vão ter que baixar o nível". Eu tomei um susto, falei: Pô, mas não é tão bom? Porque vamos ter que baixar o nível? "Porque às 21hs o público é outro, o arco de alcance é muito diferente", o programa ia atingir um público muito heterogêneo, então nós tínhamos que baixar o nível. E isso foi uma briga.

Começou com coisas assim: eu saía com 25 latas de 10 minutos cada. Agora você imagina, 25 latas de 10 minutos para fazer uma reportagem de 45... Filme para cacete, então a gente saía para errar! E isso era uma maravilha, poder errar, então valia tudo. Aí de repente, já começou a diminuir, já queria que fosse 15 latas. Eu enfrentei a briga, falei que só fazia com 25. Mas a outra equipe ia com 20, aí depois de um tempo baixaram para 15...

Cc: Mas no início era uma coisa complicada, para as próprias pessoas do Cinema Novo, elas viam com estranheza isso de você ir para a Rede Globo...

WL: As pessoas, no caso, era uma pessoa específica que não vale citar o nome... As pessoas eram céticas com relação a participação do cinema numa área como a TV Globo, Time Life, Roberto Marinho... Eu dizia "Você está falando porque não convidaram você, o dia que te convidarem você vai parar de falar!" E o pior é que foi acontecer exatamente isso. Um dia fui encontrar esta pessoa e falei: "Aí, hein, trabalhando com Roberto Marinho..."

Cc: Mas você acha que o trabalho com o documentário mexeu muita coisa na sua relação com a ficção depois?

WL: Muito. Porque na verdade, o que eu queria era fazer filmes. Se você vê os documentários, você vê que são todos marcados por uma atmosfera, uma tentativa de chegar a uma narrativa. Era um caminho que era interessante. Mas, ao mesmo tempo, ao estar de frente para a realidade, significava olhar em torno. Você não pode chegar onipotente, colocar sua câmera, e dizer "O mundo é isso aqui que eu vejo, o resto é merda..." Não era assim, às vezes o mundo estava aqui atrás e era bem melhor.

Cc: Mas, mais na frente na sua carreira, especialmente no trabalho com o Pedro Farkas como diretor de fotografia (Inocência; Ele, O Boto; A Ostra e o Vento...) , a gente vê uma maior preocupação imagética no seu trabalho... Eu queria saber o quanto isso foi uma contribuição do Pedro , o quanto foi um processo seu. Em suma, saber como é o trabalho de vocês dois, juntos.

WL: O meu trabalho com o Pedro tanto completa a mim, como ao Pedro. Se você for ver os filmes que ele faz com outras pessoas, são diferentes. O Pedro não impõe nada. O que acontece é que eu sou uma pessoa formada em cineclubes, eu tenho uma visão de cinema, vamos dizer assim, eu tive uma oportunidade de ver muitos filmes ao longo da minha vida, e descobri a um tempo ainda distante do VHS e da TV os clássicos do cinema. O meu namoro com a linguagem mais depurada do cinema educou o meu olho. Mas se você for olhar o Menino de Engenho, ele já tinha isso. O primeiro plano do filme já tinha isso. O Menino de Engenho, aliás, se formos chamar aquilo de um filme do Cinema Novo, temos que ver que os filmes do Cinema Novo, em geral, eram filmes que improvisavam diante de um discurso diante da realidade, que propunham um discurso sobre ela. Então este cinema que muitas vezes tinha uma espontaneidade que parecia uma marca, um estilo deste movimento, era ao mesmo tempo um cinema extremamente precário, feito por pessoas que estavam aprendendo a fazer cinema. Nem todas com um olhar refinado sobre cinema. Nem todas tinham uma formação cineclubística. Viam gente fazer cinema, se enamoravam daquela forma de poder, e vamos a luta. Você vê os filmes e eles exibem esta precariedade, esta desinformação. Claro que ao longo do tempo, estas pessoas iam aprendendo. Mas, o Menino de Engenho, se for ser entendido como um filme DE Cinema Novo, em oposição por exemplo aos filmes do Roberto Carlos, feitos na mesma época e por uma pessoa que inclusive os distribuía pela mesma empresa, a Difilm, ele foi o filme de maior bilheteria do Cinema Novo. Tem o Macunaíma depois, mas ele leva algumas vantagens, como o a de ser um filme a cores, não é um filme da primeira fase do Cinema Novo, ele é um terceiro filme. O Cinema Novo, para mim, eram os primeiros filmes. Feitos totalmente sem dinheiro, enfrentando os canhões...

Cc: Mas, falando do Menino de Engenho, eu queria que você falasse da sua relação com o Humberto Mauro, especialmente no filme. Tem muito de Mauro ali, com o interesse pelo interior como paisagem típica do Brasil, mas também tem um olhar diferente, crítico e consciente da decadência do rural, enquanto o Mauro fazia uma elegia...

WL: É, o Mauro era um elegíaco, ele elegeu um Brasil, aquela alma brasileira... O Maura não era um cético, e eu sou. O Mauro era um lírico, apaixonado pelo Brasil, enquanto eu sou um cético, o que não quer dizer que eu não seja um apaixonado pelo meu país, apenas que eu tenho um outro olhar sobre ele, digamos caricatural, não fico fazendo oba-oba. Menino de Engenho era um filme com uma linguagem absolutamente clássica, não tinha câmera na mão, nada disso. Pelo contrário, com um roteiro super amarrado. Aparentemente fazer o filme causava um acerta estranheza com os membros da minha geração: "Pô, você vai fazer um filme assim, adaptando o José Lins do Rêgo? Tanta coisa legal para fazer..." Mas se você olhar hoje, é um filme que tem uma curiosidade sobre o Brasil talvez maior que o de todos aqueles outros filmes que estavam sendo feitos naquele momento, e que estava falando de uma realidade brasileira que se repete, ciclicamente, as coisas que acabam, os ciclos econômicos. Podia se fazer um Menino de Engenho sobre a borracha, sobre o café...

Cc: Mas, voltando um pouco, quando falamos do Pedro Farkas, não era tanto por causa da questão da linguagem clássica, do domínio dela. O que estava tentando pensar aqui era a questão mesmo da composição da imagem, do uso da cor. O Walter Carvalho falou num debate da mostra sobre o fato de que há sempre, entre tantas opções para se posicionar a câmera para cada take, uma aonde ali, e só ali, é o local exato. Pode-se até colocar em algum outro lugar, mas nunca se encontrará este outro ponto perfeito onde a câmera encontra a melhor imagem. Nestes filmes com o Pedro parece que vocês procuram exaustivamente este ponto.

WL: Aí, eu te digo uma coisa: eu ensaio com o olho na câmera. O Pedro mesmo nunca escolheu um lugar para a câmera. Eu ensaio e entrego o plano pronto para ele. No Boto, ele fez a câmera, e eu não tinha o video assist, então era uma coisa demorada, porque eu ensaiava com a câmera e depois ficava dizendo para ele "Você filma aqui, aí depois tem um movimento para cá", e enquanto ele fazia eu ficava olhando e ia corrigindo. Porque eu adoro fazer câmera. Quando fizemos o Monge e a Filha do Carrasco eu ficava no video assist controlando...

Cc: E como você relaciona isso, por exemplo, com o trabalho na Lira?

WL: Você quer ver uma coisa fantástica na Lira? O Dib (Lutfi, diretor de fotografia do filme) é um mestre da câmera na mão, e na Lira a imensa maioria dos planos são no tripé, só usava o zoom. Raramente se usa no filme a câmera na mão, ele chegava a rir para mim, ele dizia "Eu posso fazer na mão..." e eu dizia "Quando você fizer na mão, vai ser na mão mesmo, vai descer a escada correndo, aí eu quero você". Em apenas uns 5 ou 6 momentos (a exceção do Carnaval claro) a câmera está na mão. Eu dei para ele um assistente que era o meu câmera no Globo Repórter, que era um cara que fazia o foco sem olhar a distância, no olho e o Dib ficava maravilhado com o cara eu eu falava "Pronto, brinca com o foco agora..." Tem um momento em que a câmera sai debaixo do Tonico, sobe, tem o Jamelão cantando, entra, vai lá, passou, sobe, aquilo era tudo câmera no tripé. Ninguém nunca usava o Dib para fazer isso. Tinha a piada que o Dib falava para o cara que ia fazer um plano na mão e o cara "Para quê, Dib, coloca a câmera no tripé", e ele: "Mas a câmera no tripé treme..." Mas o meu uso dele era totalmente diferente e ele achava interessante aquilo. Porque eu, na minha cabeça, acho que nem sempre a câmera é na mão. A câmera quer dizer alguma coisa, então no momento em que você começa a falar com o espectador, cria no espectador uma cumplicidade com a câmera, o espectador compra esse jogo. Então não cabe a mim impôr nada a ele, eu devo barganhar com ele um conhecimento comum. Na minha relação com o espectador, eu não tenho nenhuma ingenuidade de não saber que o espectador conhece muito bem a linguagem do cinema. Ele não pode dizer o que é, mas ele sente. Seria muito inocente, ingênuo, naif mesmo achar que ele não sabe essas coisas. Ele vê isso o tempo inteiro. Por isso, você soltar a câmera, em alguns filmes isso valia, mas nem em todos. Criou uma linguagem meio vertiginosa, confusa. Em alguns momentos, valia, no Terra em Transe valia, mas não sei se valia em todos os filmes do Gláuber. Você com o tempo vai apurando seu processo narrativo, limpando coisas, por coincidência esse apuro no meu caso se deu com o Pedro, mas podia ter sido com outra pessoa. Aliás, graças a Deus que se deu com o Pedro. Porque o Pedro? Para começar porque ele é uma pessoa com uma formação de saída do Brasil, que foi viajar, que refinou um olhar, então quando ele vê eu propondo uma coisa, ele embarca naquilo, vai mais. O trabalho maior do Pedro é a luz, não na câmera. Mas se você for ver na Lira, mesmo com o Dib, este carioca típico que não viajou tanto, já tem esta preocupação, no próprio Joana Angélica, já tem sinais deste cinema que quer brincar com a luz. O anjo que aparece, a sombra dos conspiradores, o prédio... Se você for ver o Chico Rei, aí já tem um pintor fazendo, que é o Mário Carneiro. No caso do Pedro, quando começamos a fazer o Inocência, a luz que ele estava me dando não tinha nada a ver com o filme. No dia que eu propus fazer o plano inicial da Inocência deitada na cama sob o dorsel, ele me deu um plano com o quarto todo iluminado. Eu falei para ele, "Não é isso Pedro, você tem que pensar que a gente vai cortar da borboleta, ela é a borboleta". Eu queria uma luz que viesse toda de trás da câmera, aí o Pedro falou "Detrás?? Mas daonde viria essa luz?", e eu falei "Caguei, Pedro!!" Aquilo é uma realidade poética, não tem que explicar isso. Isso é muito coisa de fotógrafo... Quando eu estava fazendo o Chico Rei havia uma cena numa mina e o José Antonio Ventura, que começou a fazer o filme comigo, botava 70 velas. Eu vi aquilo e disse "Pô, Zé Antonio, para que isso? Parece um lugar santo... Não estou entendendo para que tanta vela..." Parecia um filme, sei lá, do Adrian Lyne. Um avela já é suficiente para a gente entender que aquela vela iluminou o ambiente. É uma suposição que o cinema permite. Não precisa botar 800 velas para dizer que o ambiente tá iluminado. E no Inocência, então, eu queria ver aquele dorsel, queria a luz nele. E o Pedro dizia "Mas, e as pessoas em primeiro plano?" E eu "Pô, Pedro, elas estão em silhueta." A partir deste dia, minha relação com o Pedro foi outra, porque ele entendeu que eu falava a linguagem dele, da luz. A partir daí ele começou a me propor coisas, também, fui mexer em casa de marimbondo, já viu... Eu adorei aquilo. E ele tem hoje uma relação de intimidade comigo em relação a isso total. Mas é uma questão de afinação. Ele não faz isso com ninguém. Ele filma com o André Klotzel, filma no Rio, filma em um monte de lugares e não faz isso... Ele mesmo diz. No entanto, ele poderia chegar e dizer "A câmera é minha, eu faço isso e tá acabado...", tem muito fotógrafo que faz isso. E se o fotógrafo faz bem, tem diretores que é até melhor que ele faça mesmo, e deixe o diretor para cuidar da vida dele de outra maneira. Vai cuidar da vida...

Cc: E a sua relação com os atores, como é?

WL: Eu trabalho com atores, dou aula para ator, convivo com atores. Porque este negócio de você fazer cinema no Brasil, desta maneira, sem continuidade, é um desafio, como é que eu evoluo o meu processo? Se eu vou filmar de 3 em 3 anos, de 4 em 4 anos, que processo, que evolução é esta? Estamos sempre fazendo o primeiro filme... Só que sem a energia e a inocência do primeiro. Então eu passei a dar aula para os atores, porque era uma maneira de eu estar permanentemente em contato com os atores, que é o instrumento mais fino que você tem, não é a câmera. O instrumento mais fino é o ator. E para mim isso foi, assim como a TV Globo com relação ao som direto, experimentar a realidade, para mim foi fundamental, como trabalhar o ator. Trazer para o ator a minha dificuldade de entender ele, entender o personagem. Fazer com que ele participe da criação, vá tomando conta do personagem, ir passando para ele esta bola, ele vai se assenhorando daquilo, como o Pedro vai se assenhorando da luz. Você vai propondo aquilo e passando a bola para ele. Quando ele vê, ele está fazendo aquilo que ele tem que fazer, que é ser. Ele não é mais o ator, ele é. Porque a pior coisa quando você vê um filme e ver um ator que está se vendo fazer a cena. Pensando, só falta um espelho para ele ficar se olhando: "Será que eu estou bem?" E você dar aula para 25 atores te faz ver que o ator não é uma teoria, cada um é uma pessoa. Cada um tem uma marca, para te desafiar. Eu acho que o ator tem que confiar em você, você tem que ser para ele o espectador que ele deseja. Ele quer o espectador, então você se comporta como um espectador ideal para ele. Eu tento ser exatamente este espectador que ele deseja. Eu faço o diálogo, vou conversar com o ator na mesa, ele lê para mim, e a gente discute. "Eu acho que este diálogo não tem verdade, como é que você vê ele, como é que você diria", ele diz da maneira dele, começa a mudar o diálogo, ele passa a se apropriar do diálogo. No final do processo ele já decorou o diálogo, ou melhor, ele não decorou, ele aprendeu, o diálogo é dele. É uma relação de intimidade, uma coisa delicada, de relação humana. E se você chegar numa situação radical onde o ator não está funcionando com o personagem, mude o ator. Porque você não pode mudar seu personagem, mudar toda a sua concepção do filme por causa de um ator. Ou, se ele não for uma presença tão central assim, tenta resolver com a câmera. Se ele está deprimido, e ele não consegue passar aquilo, bote a câmera no alto que ele fica deprimido. Aí, a câmera diz (risos). Já que ele não diz, a câmera vem e diz por ele.

Cc: Agora, este seu olhar educado, do cineclubista do crítico, você continua a exercer este olhar na atualidade? Você tem este tipo de visão sobre o cinema brasileiro hoje?

WL: Muito pouco. Tem muita coisa que eu não vi. Eu acho que o cinema brasileiro entrou num descaminho fatal, muito difícil de sair. Talvez com a democratização que o cinema digital, que o vídeo venha a trazer, o nosso cinema possa ser feito com em bases mais modestas e que alguma coisa desta liberdade inicial possa ser retomada. Mas o cinema brasileiro da forma que ele é feito, sem exibição garantida, sem exibição lá fora, um produto artesanal suicida, ele só tem sentido feito em total liberdade. Se é para fazer desta maneira, vamos às últimas consequências. Agora, fazer para parecer que é. Tinha um crítico de São Paulo que chamou este cinema que está aí de "cinema novinho", e eu achei ótimo. "Cinema novinho...", quer dizer, novinho em folha! Ele ficou igual, parecido com o filme argentino, com qualquer coisa. Eu acho que muito da personalidade do cinema brasileiro, de ter uma cultura tão poliforme, de um país tão grande com uma diversidade de manifestações culturais, provoca um cinema extremamente rico. Este cinema "novinho" que se pretende uma coisa industrial, de primeiro mundo, cabisbaixo diante da velha arrogância de fazer na marra, de pensar que "o cinema começava aqui"...

Só para ilustrar: na época da Segunda Guerra, passou por aqui um dos mestres do cinema, John Ford, em companhia de um dos maiores fotógrafos que o cinema já teve, que fotografou com o Ford o Vinhas da Ira e A Longa viagem de volta, sem falar no Cidadão Kane, que foi o Gregg Tolland. Eles dois vieram como oficiais da Marinha americana, que tinha bases no Brasil, e eles vieram parar aqui. Então um intelectual resolveu levar o John Ford para ver um filme que estava sendo filmado na Atlântica, um filme chamado Moleque Tião, com Grande Otelo. Ele foi lá, e saiu escandalizado, como se conseguia fazer um filme daquele maneira. Só que ele ficou com uma pulga atrás da orelha, pois quando ele chegou em Hollywood, se fazia cinema assim. Depois o dinheiro foi entrando, a tecnologia se desenvolvendo, e ele foi se aproveitando daquilo tudo. Só que, de repente, ele volta no tempo e no espaço a um outro lugar onde se fazia que nem ele fez aqueles filmes de duas bobinas em que a história era sempre a mesma, o caubói ia lá salvar a filha do cara, ele fez 80 filmes assim... Passado algum tempo, a força tarefa passou de novo no Rio de Janeiro, e o filme estava em cartaz. Ele foi ver e ficou emocionado porque havia ali um filme. Ele estava restaurando dentro dele uma energia dos momentos mais pioneiros do cinema. Hoje em dia, quem vê o Lars von Trier, eu acho engraçadíssimo que a gente babe de amor pelo Lars Von Trier porque essa coisa já foi feita aqui no Brasil. Pegar a câmera, sair de qualquer maneira, esse Dogma, o Cinema Novo fez isso e ninguém colocou este nome. E isso é uma cíclica no cinema, você precisa renovar indo buscar forças lá no improviso, na chegada, na primeira vez que se pega para fazer.

Eu acho que em algum momento pode ser que isso se reinstaure, mas eu acho que o cinema como está sendo feito aqui é um arremedo de um cinema comercial de segunda linha. Porque este cinema que a gente vê passando hoje tem uma estética de telefilme. Um filme como o Caubóis do Espaço, do Eastwood, que é uma maravilha, era um filme B há 30 anos atrás. Não era grande coisa. Hoje em dia quando a gente olha, virou um filme A, para se ver como o padrão de excelência caiu. O mestre maior do Eastwood, um cara que eu gosto, é o Don Siegel, rei dos filmes B. O filme B era um filme um filme de programa duplo, que não entrava nos grandes circuitos. Aqui no Brasil se passava tudo que era filme B. Às vezes até não passava nos EUA e passava aqui, que sempre foi quintal. Então nosso padrão namora aquilo. É pouco para uma realidade tão rica, que não é mais discutida no cinema, e cujas formas de expressão típica não invadem o cinema. Então é uma exceção quando você vê um Baile Perfumado, chama a atenção, ou coisas radicais como Um Céu de Estrelas. Chama a atenção do geral, que é uma coisa quase global, é o Pequeno Dicionário. É muito pouco para o que a gente quer. É muito pouco porque parece que o brasileiro nasceu com uma vocação para fazer isso. Como é que o cinema aqui resiste a tantas crises, já tem cem anos debaixo de crise e continuam fazendo aquilo...

Cc: Agora você está às vésperas de começar um projeto novo, voltar ao set. Como é que, após todos estes anos, você se prepara para um novo início destes, para começar um filme?

WL: Eu me preparo com aquilo que eu aprendi, mas eu espero que eu erre. Se eu não tiver a possibilidade de errar não quero nem fazer. Esse vai ser um projeto feito parte em português parte em italiano. Filmado em super 16mm, para a televisão. Vieram me chamar, eu estava fazendo um roteiro, eu aceitei. O roteiro era deles, dos italianos, mas claro que eu já meti a minha mão. Se passa no Brasil de hoje. Eu acho este convite uma maravilha, quem dera tivéssemos mais deles. Porque o cineasta brasileiro passa por coisas demais para fazer filmes, coisas que não devia precisar. Se hoje a gente tem que vender o projeto para corretoras, empresas, nos anos 60 a gente tinha que se endividar. Uma vez, me lembro, a gente estava filmando na Lapa, e no meio da filmagem o cara chegou para mim, eu tinha pedido antes para ele me lembrar que eu precisava ir no Banco Nacional, e ele disse "Walter, são 15hs, se você não for agora, o banco fecha..." No meio da filmagem! Aí você pensa "Socorro!". Pára tudo, bota uma gravata, e vai lá... Entra, discute com o cara, volta, não recebeu a grana, senta, tira a gravata, fica triste e... "Porra, vamos lá!", começa tudo de novo. É horrível. Num certo momento, após o Brasil Ano 2000, eu devia dinheiro em 12 bancos! Peguei empréstimo em 2, mas depois, como não tinha para pagar, ia pegando em outros para pagar os anteriores, até que devia em 12 bancos! Eu fui trabalhar na TV Globo para pagar aquela dívida, levei anos pagando.

Cc: E como você se coloca perante uma proposta de trabalho como estas, um roteiro, um projeto que já vêm prontos, no qual você é contratado? Tem alguma diferença de postura para um projeto seu, pessoal?

WL: Eu me coloco da mesma forma. Porque para mim filmar é um lance de brincar. Para mim, na vida há coisas que você leva a sério, mas se você não jogar um pouco do lúdico, da brincadeira, não vale a pena. Se não pudermos tirar proveito desta brincadeira... Há vários poetas muito mais sábios do que nós aqui que se perguntam sobre o significado da vida, e chegam a conclusão que não era nada. Então, se não pudermos brincar aqui...

Agora, você tá aí falando de cinema com um captador, um chato, um cara que quer falar de bolsa de valores, aí vem um cara te chamar "Pô, vamos fazer um filme...", só posso dizer "Pô, legal! Vamos embora fazer. Se posso fazer aqui, porque não?" Ainda mais este projeto, agora, eu fiquei super estimulado, vieram me dizer qual era a hipótese da atriz italiana para fazer o filme... Pô, um nome maravilhoso, eu nem tô pensando em mais nada... Vai ficar todo mundo apaixonado, vai ser uma brincadeira ótima, aí em abril ela já foi embora, você já tem outra coisa para fazer. Calcula se eu vou deixar de fazer! Tem jeito de deixar de fazer? E tem que fazer. Isso eu aprendi com a TV Globo, eu não tenho que carregar cruz. Essa é a grande vantagem da televisão: acabou de fazer, três dias depois você já está em outra, você não é responsável pela sua história, você tem que fazer. Você não é o historiador de si próprio! Fica chato para burro, você vira uma pessoa pernóstica. Eu antigamente tinha uma expressão para esse tipo de cara que vivia falando "Vou filmar meu longa...", "porque meu longa...", "o meu longa...", chamava eles de "milonga". Porque milonga isso, milonga aquilo, milonga... E não tem nada a ver com nada, tá tudo na imaginação daquele sofredor, e ele vem com milongas. E isso é uma coisa legal que o digital pode levar, porque de repente a gente vem para cá e começa a fazer uma cena aqui. Eu acho isso uma possibilidade maravilhosa, de você destituir o cinema daquela sacralidade, aquela coisa impossível, absurda. Você pode recomeçar a fazer uma coisa que você não tenha controle, que você não sabe aonde pode parar. Uma vez perguntaram ao Chagall, mas o que que você quer com seus quadros? Ele disse "eu não tenho a menor idéia, se eu soubesse eu nem faria". O que você quer é conhecer.

Entrevista concedida a Eduardo Valente e Daniel Caetano, no dia 23/12/00, em Laranjeiras, Rio de Janeiro. Introdução e transcrição de Eduardo Valente