Um Cineasta e seu país


A Ostra e o Vento de Walter Lima Jr.

 

Quando é exibida em conjunto, a obra de um cineasta que, como a de Walter Lima Jr., atravessa 35 anos de história, acaba refletindo muito mais do que simplesmente o pensamento e o trabalho do próprio cineasta. Afinal o cinema, pelo seu caráter de arte industrial, acaba atrelado diretamente não só às circunstâncias sociais e políticas de um país, mas inclusive aos diferentes momentos econômicos. Analisar uma obra cinematográfica é, neste sentido, uma oportunidade de se jogar luz sobre o que se passa em torno dela, no país e no mundo. Por isso tudo, quando o Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, promoveu a mostra "Inocência e Delírio – O Cinema de Walter Lima Jr.", deu uma chance ao público de entrar em contato não apenas com este cineasta, mas também com os andamentos do cinema brasileiro como um todo, e do Brasil como nação.

Esta lógica acima descrita, poderia em primeira mão ser aplicada sobre o trabalho de qualquer cineasta. Mas é importante destacar o quanto mais ela faz sentido na obra de Walter Lima, sendo esta inundada como poucas pelo país e pelo cinema que a cerca. Já se analisou muito a carreira de Walter em termos de gêneros cinematográficos, como uma trajetória plural, que vai do mais experimental ao mais clássico. Também já se falou muito do olhar do crítico-cineasta. Mas, a unidade que mais salta aos olhos quando vemos os filmes todos reunidos desta maneira é, sem dúvida, a sua relação com o Brasil.

Walter estréia singularmente, com Menino de Engenho. Um filme adaptado do romance de José Lins do Rêgo, que era em si mesmo uma reflexão sobre a passagem do tempo alterando as estruturas de um país. É claro que era típico deste escritor, como é deste cineasta, buscar os sinais deste processo na micro-história, neste caso na trajetória de um garoto, que vai passar sua infância num engenho de açúcar nordestino em momento histórico onde estes vão sendo rapidamente substituídos pela produção das usinas. É um filme inundado de Brasil, desde a paisagem natural ampla das fazendas, até o olhar histórico-social. Sua linguagem clássica chegava a surpreender no momento do Cinema Novo em que se inscreve, mas é até natural se analisado o contexto da formação do cineasta, um amante da linguagem clássica do cinema, um "fordiano" em suas próprias palavras. Além disso, o filme dialoga com a tradição do próprio cinema brasileiro, especialmente com o cinema de Humberto Mauro. Mas, a visão dos dois deste interior é bem diversa, e permite sem problemas enxergar o que o Cinema Novo trouxe de diferencial, mais do que o seu formato narrativo: a capacidade do olhar crítico sobre a sociedade, suas estruturas, seu processo histórico. É, como todo primeiro filme, um filme carinhoso, emocionado, mas ao mesmo tempo um filme extremamente estudado e pensado.

O segundo trabalho de Walter ampliou esta sua inserção no momento político-cultural. Quando realiza Brasil Ano 2000, em 1969, o Cinema Novo já passou por um processo de radicalização de proposta proveniente do agravamento da situação política, com o AI-5, as prisões, a censura. É o momento das obras "metafóricas", onde se fala do futuro, de uma outra terra, de um sonho. É o momento de Pindorama, de Os Deuses e os Mortos, O Dragão da Maldade, Fome de Amor, Os Herdeiros. É claro que não poderia ser coincidência que todos estes realizadores que começaram uma trajetória intrinsecamente ligada aos temas da realidade contemporânea que os cercava, passassem pelo mesmo processo puramente pessoal de optarem por um caminho simbólico e "distanciado". Nas palavras de Arnaldo Jabor: "O Cinema Novo era um cinema que queria se fazer, um cinema materialista no sentido histórico da palavra. Esse projeto em 1968 chegou ao ponto mais rico de sua evolução e foi interrompido por uma repressão política muito forte – que fez com que os filmes, vamos dizer assim, tenham enlouquecido o que estavam dizendo, tenham sido levados a criar uma espécie de terceira linguagem para dizer as coisas que queriam dizer e que já não podiam ser ditas então."1

Os tempos requeriam estes filmes, e neste sentido, mais uma vez, Walter Lima responde ao que o cerca. Brasil Ano 2000 fala de 1969 como poucos filmes, seja no seu estilo, seja na sua estrutura. Incorpora o tropicalismo na trilha sonora de Gil e Capinam, fala de política, de militares, de uma cidade chamada "Misquici". É um dos poucos filmes que assume o Brasil já no título, embora faça questão de jogar a data 31 anos no futuro, interessantemente na atualidade da exibição na mostra.

É claro que nos anos 60 e 70, difícil seria construir uma obra destacada desta realidade tão polarizada que os cercava. Tanto que o filme seguinte de Walter Lima marca uma ruptura, um radicalismo finalizante, fruto que era do momento que se segue ao da primeira investida na "loucura", que é o desespero. É o momento ápice das torturas, das prisões, e num exemplo raro de vida imitando a ficção, Walter mesmo foi preso quando voltava de buscar o copião deste filme, Na Boca da Noite. Uma análise mais atenta do filme está presente em outro texto nesta pauta, mas é importante notar o sentido de urgência: um filme claustrofóbico, imobilizado, teatral, cercado de grades, como se sentiam os brasileiros criadores de cultura naquele momento. O filme, inclusive, acabou não lançado em circuito, ficando apenas 3 semanas em exibição num cinema programado pela Cinemateca do MAM.

Walter, então endividado desde o lançamento de Brasil Ano 2000, parte para o trabalho na TV Globo com os documentários. Lá, desenvolve ainda mais a capacidade de lidar metaforicamente com o material à mão, que no caso era a própria realidade. Lida com o som direto pela primeira vez, uma descoberta, e encontra no documentário um ponto de contato ainda mais forte, um respeito pela realidade que o cerca. Em 1973 documenta um carnaval de rua em Niterói, com amigos, atores e equipe. Retoma em 1976 este material, inserindo-o numa trama filmada com liberdade e improviso, construindo a partir da realidade, a ficção. É A Lira do Delírio, um filme único no cinema nacional pela sua mistura de registros, sua porralouquice emocional e emocionante. Ali, Walter solta um pungente grito de amor à vida num momento pessoal tão difícil, com a morte de sua companheira e protagonista do filme, Anecy Rocha, antes até da montagem começar. O filme se assemelha a um expurgo de tudo que aquela geração viveu (e então ainda vivia) sob a ditadura, e com o subsequente desbunde. É um filme cercado de realidade, de Brasil, por todos os lados, em cada cena, em cada diálogo, em cada ator-personagem.

Seus próximos dois filmes, Joana Angélica e Chico Rei (sendo que este só é lançado em 1986, mas começa as filmagens e surge como projeto bem antes) são mergulhos na história do Brasil. O primeiro, um verdadeiro experimento, um questionamento sobre a relação da História com a Verdade, do povo brasileiro com seus mitos. Fala de manifestações populares, e mistura documentário com a ficção e com o didatismo. Um filme surpreendente, e provavelmente o menos visto dele. O segundo filme é uma historiografia do país a partir do papel central da escravidão na construção da nação. Um filme que impressiona pelo cuidado na mise-en-scene, que consegue fugir totalmente dos problemas de produção enfrentados, reconstruindo com muito sucesso um momento histórico, uma sensação. O filme tem um sentimento profundamente didático, mas ao mesmo tempo se utiliza disso subversivamente, principalmente ao escolher os temas e personagens do seu suposto didatismo. São ambos filmes que permitem um novo olhar sobre o passado do país e seus ícones, em busca da compreensão da identidade do brasileiro.

Os outros dois filmes de Walter na década de 80 estabelecem uma mais surpreendente, e possivelmente profunda, relação com o país. Tanto Inocência quanto Ele, o Boto não são filmes de inspiração histórica nem reflexões sobre a contemporaneidade, como seus filmes anteriores. São produtos de uma década, não custa lembrar, de reentendimento, redimensionamento das fronteiras da nacionalidade, onde a polarização da ditadura dá lugar a uma nova idéia de unidade a partir de um denominador comum ainda não esclarecido. O país precisa voltar a se conhecer, e por isso mesmo Walter vai buscar a alma brasileira, a partir do que ela tenha de mais atemporal. Em Inocência, Walter fala dos rincões, do interior, muito mais ligado agora à visão de Humberto Mauro do que em Menino de Engenho. Walter filma o romantismo sob a noção da inocência, a fotografia de Pedro Farkas, através de cores e luzes, cria um universo onírico que se assemelha a um delírio. Walter coloca no filme um anacronismo de proposta narrativa e de linguagem, cuidadosamente construído a partir de uma edição de som primorosa, de fades belíssimos, de uma construção de quadros perfeitos. Há uma relação por oposição direta com a realidade que cerca o Brasil, nos extertores da ditadura. Walter parece querer buscar no universo romântico (e, como de praxe, de final infeliz e impossível) um contraponto à realidade, mas mais do que isso, um complemento. E falar, mais uma vez da formação do caráter do brasileiro, por exemplo pela figura do senhor de terras vivida magistralmente por Sebastião Vasconcellos, ou ainda pelo olhar do naturalista alemão.

Ele, o Boto é a radicalização deste mergulho no imaginário do Brasil. Ao invés, da linguagem clássica (da literatura ou do cinema), os mitos, as lendas, os ditos populares, as cantorias. Construído como uma verdadeira história de pescador narrada por um personagem que não se revela e é a própria câmera (sintomaticamente, com a voz de Rolando Boldrin), o filme fala do oposto complementar ao universo de Inocência, fala da sedução. Ambos podem ser vistos como mergulhos na sexualidade feminina, a partir da presença dos forasteiros Edson Celurari e Carlos Alberto Ricelli. A câmera em Boto tem uma liberdade de construir significados inédita na obra de Walter, uma relação poética e muitas vezes anti-naturalista com aquilo que filma. A trilha sonora complementa esta construção cuidadosa, e sonho e realidade se confundem. O tempo é tratado de uma forma quase efêmera, onde as elipses e as correlações ficam sempre subentendidas. Um filme onde Walter demonstra o ápice no seu domínio narrativo, e ao mesmo tempo uma capacidade impressionante de construir uma obra popular.

Após o filme, há uma grande elipse na produção de longas de Walter, entre 1987 e 1995. Quando ele volta a filmar o cinema brasileiro e o Brasil são outros. A Embrafilme foi fechada, os anos Collor atravessados com a produção quase zerada, lentamente dando espaço à produção da "retomada" e as leis de incentivo. No Brasil, a ressaca das comemorações pelo fim da ditadura trouxeram Sarney, Collor, Itamar, e agora Fernando Henrique. Há no cinema uma desilusão dos ideais perdidos, e mais, um hesitante processo de retomada de produção sem o chão da exibição assegurada, do contato com o espectador.

É nesta década que o cinema de Walter e sua relação com o país encontram seu momento mais complexo. Após retratar o momento que o cercava numa relação direta ou metafórica, buscar no passado e na História as pedras fundamentais do presente, e finalmente, no imaginário artístico e popular a essência da alma brasileira, a obra de Walter Lima nos anos 90 parece abandonar por completo o Brasil. Cabe, porém, ao invés de ver nisso uma causa em si, ver um sintoma. Cabe pensar porque o Brasil e o cinema brasileiro à sua volta parecem agora estrangeiros a um realizador que sempre esteve embebido neste país.

Sintomaticamente, o primeiro filme de Walter na década pode ser considerado, na prática, um filme estrangeiro. Às vésperas de realizar um outro filme, ele recebe o convite de dirigir um projeto de co-produção Brasil-EUA, baseado num romance americano, falado em inglês (embora com elenco brasileiro), sobre uma terra indefinida, mas que em nada se assemelha ao Brasil. Walter aceita, até porque faz parte de sua índole trabalhar com desafios, e modifica o roteiro. Ao modificá-lo, consegue inserir toques de sua obra, como o conflito entre inocência e desejo do monge protagonista da História, mas no geral O Monge e a Filha do Carrasco corresponde ao primeiro grande equívoco da carreira do diretor. O filme inteiro parece falso, os atores não estão confortáveis com suas falas nem com seus personagens, todos os dilemas parecem ficar no nível da superfície, nenhum personagem consegue ganhar a adesão ao a antipatia do público. Não há magia nem realismo, há um universo paralelo onde os personagens parecem a cada momento movidos pelas urdiduras do roteiro, e não por motivações pessoais. E se é um filme que até consegue espelhar alguns temas caros a Walter, em momento nenhum adiciona qualquer ponto de relação com a realidade brasileira, motivo pelo qual, talvez, pareça tão vazio.

Em seguida, Walter volta a seu projeto anterior, também uma adaptação literária, mas nesse caso de uma obra brasileira, o romance A Ostra e o Vento. Porém, embora fique subentendido que é passado no Brasil, o filme em si não ganha nenhuma informação por isso. É um filme que se passa no Brasil, por ser filmado no Brasil por um brasileiro, mas se Walter fosse turco ou lituano, nada indica que não pudesse fazer o mesmo filme. Mas, se no caso do Monge isso roubava do filme qualquer verdade, o mesmo não acontece aqui. O domínio da linguagem audiovisual já visto em Boto volta ainda mais impressionante neste filme. Walter parece "falar cinema", uma linguagem universal, que através de movimentos de câmera, cortes, sons, elipses, constrói uma poética e assustadora história de (mais uma vez) inocência e sedução, de descoberta de sexualidade e conflito de gerações. No caso da Ostra, dizer que não possui relação com o Brasil é como dizer que Limite não possui relação com o Brasil. Não impede que se observem as qualidades intrínsecas, universais mesmo, da construção humana. Se a Ostra se diferencia do Monge pela verdade e pungência atingidas por seus personagens, pode-se buscar a compreensão disso na gênese dos projetos, e não na sua relação com a realidade brasileira.

É claro que em Menino de Engenho, Inocência, Boto, Chico Rei, a grandeza dos trabalhos de Walter não estava simplesmente na sua relação com o Brasil, mas sim com a capacidade de dar verdade a seus personagens em relação a esta, e é neste sentido de exploração que a Ostra encontra seu sucesso. E, mais profundamente, ao invés do Monge, onde a falta de conexão com o país pode ser facilmente ligada ao projeto original e não lida como índice específico de nada na obra do seu criador, é preciso se tentar entender o que o silêncio de Walter sobre o país pode significar em Ostra. Porque as questões interiores e existencialistas se sobrepõem de tal forma ao antes exuberante retrato do país, através de seu imaginário, História ou da realidade em si? Já indicamos um caminho, mas vale ir mais fundo. O cinema brasileiro dos anos 90 parece muito diferente do cinema que criou e educou Walter Lima nos anos 60 e 70. O desejo profundo de falar do povo brasileiro para o povo parece submergir sob a necessidade de uma industrialização, de uma popularização pelo medíocre. Às utopias criadoras se impõem o pragmatismo do mercado, da produção cultural, da captação. Mais ainda, no país como um todo há um certo imobilismo de uma estabilidade que não levou à solução dos principais problemas, mas que fez o suficiente para que não se tenham mais inimigos ou sonhos muito claros. Neste sentido, subrepticiamente, o contato da Ostra com o país, pela sua negação, talvez seja o mais profundo da obra de Walter Lima.

Mas, ainda bem, estamos falando de uma obra em processo, de um país em processo. 2001 promete duas filmagens, mais um projeto de origem estrangeira (este pelo menos italiano, e não americano), e em seguida um olhar sobre a Bossa Nova e os seus anos. O que é certo é que, das formas mais diferentes, o cinema de Walter Lima vai continuar nos falando de quem somos e porque somos.

Eduardo Valente

1 Em entrevista com Alex Viany, dada em 1978, retirada do livro O processo do Cinema Novo, p.229.