Os Jogadores do Fracasso em Taiwan


Chen Chao-jun e Lee Kang-sheng em O Rio de Tsai Ming-liang

Quem são os rebeldes do deus neon, e acima de tudo quem é esse "deus neon"? Taiwan está cheia dele: a luz do rinque de patinação, das ruas à noite, das casas noturnas e das lanchonetes, mas acima de tudo das máquinas de fliperama pelas quais são seduzidos os jovens "rebeldes" da nova geração da ilha. O ambiente é sombrio: eles vivem sem caminho, não têm direção qualquer, vivem de trambiques e são bastante imbecilizados, incapazes de atos nobres. A vida deles se passa majoritariamente nas ruas (por opção própria ou por terem sido expulsos de casa), e os momentos de entrega à rotina caseira não são nada aconchegantes. Esse é o cenário desenhado para o primeiro filme de Tsai Ming-liang, com diversas das características que o notabilizaram nos filmes seguintes (em ordem: Vive l'Amour [94], O Rio [96], O Buraco [98]), como o ressecamento dos relacionamentos interpessoais, a eterna presença opressora da água que invade a casa, mas acima de tudo a câmara distanciada, posicionada especialmente para mais perspectivar o persnoagem como "caso clínico" do que para chamá-lo à identificação do espectador.

São quatro os rebeldes do deus neon. Três deles formam um grupo de amigos, dois irmãos e uma menina que é namorada de um deles. Eles não têm vida pessoal fora do grupo: quando a menina pede ao namorado que por uma vez não vá buscá-la junto com seu irmão, ele pergunta a ela "para quê?", para a desgraça da menina. E os três rodam a cidade a curtir a vida com o dinheiro dos pequenos roubos eletrônicos que fazem. Logo a primeira cena do filme já nos chama atenção para o fato, quando mostra uma cabine telefônica e os dois irmãos enfurnados nela, a desmontar o aparelho telefônico para vender os circuitos. Eles representam o aspecto de uma Taiwan bestial, de crianças adultas que falam e não dizem nada, agem e não fazem nada. O quarto rebelde é em muitos aspectos o oposto deles. É o personagem de Hsiao-kang (interpretado por Lee Kang-sheng, ator-fetiche do cineasta), recorrente em toda a obra de Tsai, e que desempenha mais ou menos sempre o mesmo papel: um jovem silencioso que não encontra abrigo em casa ou fora dela, e que constrói seu mundo a partir da observação do mundo alheio. Em Os Rebeldes do Deus Neon, Hsiao-kang persegue os três amigos em suas peripécias pela cidade. Ele larga a escola técnica, saca o dinheiro da restituição e foge de casa. Seu personagem jamais é caracterizado por qualquer outro afeto: ele não gosta de nada, ele não desenvolve nenhuma espécie de subjetividade, ele é alguém despido de interioridade psicológica – essa é, aliás, uma das maiores forças da caracterização dos personagens de Tsai Ming-liang, onde a despsicologização transforma os personagens em animais humanos, mais reagindo ao seu ambiente do que verdadeiramente agindo.

O primeiro filme de Tsai Ming-liang sabe aproveitar todos os aspectos cinematográficos dessa geração: a força das imagens noturnas e do neon, a fixação em breves instantes, em breves captações do momento (o instante é a matéria prima do cinema por excelência). Para quem já viu os filmes de Tsai, Os Rebeldes do Deus Neon surge como uma surpresa. Primeiramente porque é o seu filme de estética mais "aberta", se com estética queremos designar um cinema especificamente "de autor" com todos os seus elementos minimamente encaixados e funcionando com um mínimo de ruído. Os filmes seguintes de Tsai se desenvolvem segundo dispositivos "fechados" e muito bem delimitados: uma epidemia e um buraco, um torcicolo e uma sauna, uma mesma casa habitada diferentemente no dia e na noite. Em Os Rebeldes do Deus Neon, Tsai cede mais espaço criativo à própria cidade do que a suas invenções. Resulta que é um filme possivelmente menos opressivo e que, considerando do ponto de vista da evolução do autor, é menos realizado do que os outros. Só que sob o aspecto da obra, é seu filme mais diferente, de uma beleza muito mais impura. Nos vemos diante de personagens soltos no mundo, sem a mão forte de um roteiro que diga a eles o que fazer, o que para bem ou para mal é flagrante nos filmes seguintes de Tsai.

No entanto, a força da composição dos ambientes é já de uma força enorme. Os personagens são caracterizados mais pelo ambiente que os rodeia do que pelos seus atos. É a condição física ambiental de miséria material que nos dá toda a dimensão de miséria existencial nos personagem. A casa dos irmãos vive alagada; há várias cenas em que um dos irmãos briga com o ralo, que ora deixa descer a água ora joga toda a água de volta para a casa. Mas o ambiente na casa de Hsiao-kang é ainda mais particularmente seco: no começo do filme, sua mãe fala que ele é reencarnação de um homem poderoso que brigava com o pai, ao que o pai responde baboseiras; Hsiao-kang, ouvindo tudo isso, sai do banheiro pulando e guinchando, até que uma tigela é arremessada contra ele, espatifando na parede. Se eles são rebeldes do deus neon, Tsai parece nos dizer, é porque eles jamais poderiam ser qualquer coisa dentro de casa. A maneira própria deles de desenvolver qualquer existência particular é fora da cidade, jogando filperama ou até fazendo da loja de conveniência objeto de habitação. Numa cena especialmente inspirada, os dois irmãos, seguidos de Hsiao-kang, arrombam a loja de conveniência para roubar as placas de alguns fiperamas. Eles vão embora e deixam Hsiao-kang preso na loja e, mesmo por um momento, aquela loja terá que ser a única casa do jovem. Esse fato acontece como que por acaso mas essa é a tônica do filme: a casa deles – se casa é onde se está feliz – é definitivamente a loja de conveniência, o shopping center.

A composição musical de Rebeldes do Deus Neon aparece ao longo do filme inteiro, como uma sinistra melodia de contrabaixo sintetizado, acompanhada às vezes por uma batida dance também seca. Certamente que se trata de uma constatação sombria do desenrolar de uma cidade grande como Taipei, mas Taipei pode igualmente ser qualquer cidade grande do mundo. Tsai Ming-liang aproveita-se da triste condição de Taiwan como ilha assolada pela tecnologia ocidental e por outro modelo de vida em apenas 50 anos para fazer um retrato geral de qualquer cidade contemporânea: "Todos aqueles que moram em cidades grandes, na França, em Taiwan ou outros lugares, podem compreender meus filmes muito facilmente. Há um sentimento comum ligado ao fato de morar em uma cidade grande, seja ela qual for"1. Ao mesmo tempo cidade modelo e fruto mais indigesto de qualquer aculturação capitalista nesses últimos 50 anos. Taiwan é um problema para si própria mas é ao mesmo tempo um problema a ser espelhado para todas as cidades do mundo. E os grandes cineastas dessa ilha, sejam eles Edward Yang, Tsai Ming-liang ou Hou Hsiao-hsein, sabem identificar a particularidade desse problema. E transformá-lo em cinema. Por sorte.

Ruy Gardnier


1. Depoimento de Tsai Ming-liang aos Cahiers du Cinéma, especial Made in China [1999], p.52-3.