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Algumas sessões cheias fizeram crer que houve um grande vitorioso com o Festival do Rio: John Waters. "Waters redescoberto pela juventude" ou "O rei do lixo cria nova legião de fãs", liam as manchetes dos nossos esclarecidos meios de comunicação. Os mesmos que criaram o mito que nunca existiu: Waters, o bufão, o palhaço, aquele primo estranho que toda família tem, aquele cara engraçado que tira meleca no jantar do vovô. Vamos lá, vamos rir dele! Pobre John Waters. A verdade é que nenhuma obra este ano perdeu mais com as simplificações, tipificações, e simplesmente com a burrice mesmo da mídia que a dele. Ao tentar "vender" a mostra, deturparam tudo para tornar John Waters num palhaço. Aparentemente ele fez o jogo proposto, posou para fotos, vestiu-se como sempre, espalhafatosamente. Mas, também, o que mais ele podia fazer se o jogo já estava perdido? Mas quem viu uma só apresentação de sessão por ele, leu uma linha do que ele falou para o jornalista (e não o que o jornalista falou dele), percebeu claramente a dicotomia. O jogo de Waters é muito sério, muito maior. Ele não propõe uma piada, ele propõe uma afronta. Ele não propõe uma sátira, ele propõe uma alternativa. Ele não acha o mundo mainstream engraçado, ele o acha assustador, patético, fascista. Ele está certo. E sua obra, seríssima com toda sua graça (pô, desde quando fazer comédia é fazer bobagem??), propõe isso categoricamente, filme a filme, plano a plano. O público, infelizmente, acreditou no que lhe foi vendido. Compareceu às salas com uma só vontade: rir. E muito. E achar ridículo. E fez isso. E riu, e riu, e riu. Mas foi aí que Waters virou o jogo. Os filmes são mais fortes que os estereótipos. E o público parou de rir. Mas, não parou de rir porque os filmes perdiam a graça. E sim porque eles levavam longe de mais a piada. Assim fica mais difícil rir. Os filmes de Waters não tratam apenas de pessoas feias, de pessoas patéticas, de pessoas excêntricas. Eles SÃO feios, patéticos, excêntricos. Eles são um mergulho num imaginário doentio. E isso não é tão engraçado assim. Os risos paravam e começava o incômodo. Será que esta cena não acaba? Será que esta montagem é assim mesmo? Não pode ser, ela não pode ser tão feia assim! E porque eles gostam dela? Em suma, a obra de Waters venceu no final. Pena que ele não ficou para ver. Pena que ele não teve a chance de conversar com seu público mais interessado, que não pôde trocar idéias e experiências, não pôde discutir um pouco o seu cinema, coisa que ele sabe muito fazer. Mas, seu cinema falou por si, e ganhou a briga. Isso se via no final de cada sessão, no público que foi disposto a rir e se divertir e saía inevitavelmente incomodado. Havia uma sensação no ar, inclusive, de engodo. Eu paguei meus R$8 para ver isso, essa podreira, esse lixo, essa coisa feita de qualquer jeito? Pois é. Eu estive em 3 sessões de Waters no Festival, e em todas o processo foi o mesmo: "Polyester" no Odeon, e "Female Trouble" e "Desperate Living" no Espaço Unibanco. Infelizmente não deu para ver "Pink Flamingos" ou "Multiple Maniacs", nem "O Preço da Fama", nem rever "Cry Baby", "Mamãe é de Morte" nem "Hairspray". Por isso, fica faltando a agora mais que necessária análise completa e evolutiva da obra e de seus objetivos e alterações ao longo dos anos. Para discutir melhor seu muito complexo processo de aproximação e distanciamento de Hollywood, assunto sobre o qual certamente ele dá uma entrevista do cacete. No entanto, mesmo o olhar parcial confirma: aquelas pessoas nas cadeiras juram que estão rindo de John Waters. Mas ele é quem ri dos espectadores, a cada segundo. E ri do cinema americano. Cecil B. Demente, seu novo filme, de guerrilha, de afrontação, novamente tosco na forma, na montagem, na encenação, é a coroação de um artista verdadeiro, com projeto e com princípios. Ou alguém acha que oferecer cartelas com fedor para a platéia cheirar não é uma afronta a ela? Dos filmes assistidos, o mais impressionante é mesmo Female Trouble, no qual Divine, que mais que uma atriz era a encarnação dos ideais de Waters, tem atuação antológica como o ser mais asqueroso do mundo. Aliás, é difícil dizer, pois todos o são. Mas, o tema do filme é claro: a feiúra, o horror, a torpeza, quanto maior, mais belo. E Desperate Living refirma isso. Pois, a obsessão pela limpeza, a correção, a beleza, os modelos de comportamento e de aparência, eles são horríveis. São excludentes, preconceituosos, desumanos. "Freak show", diz Waters e sua trupe, são vocês! Ou como diz a excepcional personagem do ser bizarro que é Edith Massey em Female Trouble: "Meu filho, o que tenho medo é que você se case, tenha filhos... O mundo de um heterosexual é uma vida doente!" E finalmente, a cena do êxtase, a cena antológica da apresentação de Divine após ter sido queimada até virar um monte de cicatrizes, e dando um show bizarro de dança com uma cama elástica, que vai num crescendo até ela atirar na platéia. "Quem quer morrer pela arte??" Ambos os filmes são verdadeiros tratados, expõem mesmo, textualmente, uma ideologia de vida. Cada frase, cada zoom, cada movimento dos atores, cada frase, cada corte, o rigor da proposta impressiona. Cinema com "c" maiúsculo, a obra de Waters sobressai aos preconceitos e afronta o público, que não gosta, e não tem como gostar, não foi feito para isso. A obra, ninguém pôde vencer. Pena que o diretor tenha já entrado no campo do Festival derrotado, reduzido a um maluco engraçado. Mal sabem eles. Feliz de quem viu. Eduardo Valente Eduardo Valente |
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