A Prisioneira,
de Chantal Akerman


La Captive, França/Bélgica, 2000


Stanislas Merhas e Sylvie Testud em A Prisioneira de Chantal Akerman

As primeiras imagens de A Prisioneira mostram um filme em 8mm. Um filme caseiro onde várias amigas, à beira da praia, brincam com uma bola. A câmara se fixa numa delas, de um cabelo encaracolado desgrenhado naturalmente pela água do amr e pelo vento. Ela encara a câmara e, ao lado de uma amiga, diz alguma coisa. Essa coisa, a câmara não registra, e é essa coisa que será o motor inteiro de A Prisioneira. O filme, a partir desse rápido momento ainda no começo da projeção, será um desafio à opacidade feminina, uma intrusão obsessiva de um homem (Stanislas Merhas) que quer penetrar em todos os segredos de sua amada (Sylvie Testud). Mas essa amada jamais se encontra, para ele, no plano da realidade. Seu nome já o diz: ela é Ariana (ou Ariadne), não uma mulher qualquer mas a pura imagem da mulher, a pura idéia de feminilidade. E o amor para ele é antes de tudo uma experiência do olhar frio, da visão distanciada de um homem que não consegue amar senão a imagem de uma mulher.

Uma odisséia pelas ruas da cidade à procura de um desejo jamais encontrável. Não parece que estamos diante do mundo de Eyes Wide Shut de Stanley Kubrick? Pois bem, a comparação é de todo válida. Tanto o filme de Kubrick quanto o de Chantal Akerman se utilizam rigorosamente do mesmo artifício estético-temático: para dar conta de uma quimera surgida pela necessidade patológica masculina de superinterpretar – Tom Cruise superinterpreta o desejo de sua mulher e caminha ao longo da cidade para tentar "vingar-se" do desejo de sua mulher, e Stanislas Merhas superinterpreta a relação de Ariana com as amigas e "descobre" a partir daí que o amor que ele quer dela será impossível –, os dois realizadores se utilizaram de um ambiente rico e luxuoso (Simon, herói de A Prisioneira, e Will Harford, de Eyes Wide Shut, são muito ricos e inteligentes), uma mise-en-scène e uma fotografia primorosas privilegiando a fixidez em detrimento do movimento para mostrar a saga de dois homens sem carne, que fazem do desejo sexual um assunto mais de forma do que de matéria e que não conseguem paz de espírito porque buscam no mundo material um ideal que jamais poderá ser encontrado.

A Prisioneira é baseado no romance homônimo de Marcel Proust (apesar de ser diferente em francês: La Captive para o filme e La Prisionnière para o livro), quinto livro da "Recherche". Mas Akerman deixa claro que Proust é somente o ponto de partida. Não é o efeito-proust-adaptado-ao-cinema do sedutor O Tempo Redescoberto de Raul Ruiz, mas antes a tentativa de tomar um motivo de Proust e adaptá-lo a outro mundo. Já nas diferenças de nomes se dá conta da diferença de intenções: captive/prisionnière, Arianne/Albertine. Albertine está prisioneira de Marcel, mas Ariana está cativa do amor de Simon. Não de uma pessoa ou de um lugar, mas de um determinado estado de coisas originado pelo pecado original que é superinterpretar; superinterpretar não qualquer mulher, mas o ideal de mulher, o ideal masculino de mulher.

Simon é um jovem intelectual. Estuda Racine no momento, mas sua vida é completamente sem atribulações. Ele formaliza tudo: é ele quem decide a hora exata em que deve encontrar Ariana, é ele quem liga para as amigas dela para entretê-la quando ele não pode dar-lhe atenção, é ele quem decide sobre todos os encontros que Ariana fará no dia. E quando Ariana dá as costas, ele passa a segui-la (é inclusive assim que o filme apresenta, logo no início, a relação dos dois, numa seqüência belíssima envolvendo carros e uma escadaria). E é pelo olhar – eterna faculdade das formas – que Simon realiza seu amor por ela. Os únicos momentos em que ele tem desejo físico por ela é quando ela está dormindo na antessala em que ela deve esperar até que ele esteja pronto. Essa peculiaridade dá umas das mais fortes cenas do filme, onde Simon se contorce diante de uma Ariana estática, dormente. Não é um amor esmorecido pelo tempo (como Simon quer fazer crer) ou o pretenso amor que Ariana tem pelas mulheres (como Simon insiste para si mesmo), mas a desertificação do amor de Ariana pela necessidade (necessariamente masculina) de totalização da parte de Simon, porque Simon ama a imagem que ele faz dela, mas nunca chega a amar a Ariana de fato (se bem que, já que o filme assume o ponto de vista de Simon, jamais há Ariana de fato).

Ariana é uma aprendiz de cantora, e essa é a única atividade que ela desenvolve onde não há impregnação da parte de Simon. Ela representa no filme o desejo de vida, e os únicos momentos de verdadeira felicidade são quando Simon está fora de quadro: Ariana canta, Ariana conversa com as amigas, Ariana vê uma estátua feminina (obviamente, trata-se de uma imagem-espelho, porque a própria Ariana já é uma escultura no que diz respeito a Simon). Fora do convívio de Simon, ela respira (e o filme respira junto com ela), e na segunda metada do filme toda a necessidade de controle masculino da parte do jovem amante tem queda livre a partir do momento em que Ariana decide tomar o controle do carro (guiado pelo chofer) até a seqüência final, em que a imagem da mulher deve morrer para que a mulher possa dela se libertar. Esse final dá algumas das cenas mais inspiradas de todo o cinema mundial recente, como a imagem das folhas das árvores quase se confundindo com o breu do céu ou toda a seqüência do quarto de hotel ou as cenas finais do filme, inacreditáveis. Beleza bestificante, filosofia em imagens, conto moral minoritário, A Prisioneira ficará como a lembrança do ciniema mais límpido dos últimos tempos.

Ruy Gardnier