Uma corretora de imóveis tenta matar pernilongos com dificuldade num dos apartamentos pretende vender. Os únicos clientes a chegar são esses mosquitos, e o drama em se livrar deles. Há outros apartamentos como esse em Taipei, e muitos mosquitos a espera. Como aqui, as outras cenas de Viva o Amor compõe a idéia de que o estado no qual se encontram os personagens nasce de uma queda livre a um estágio de pré-sociabilidade. Idéia que não é colocada pelo filme sob a luz nostálgica de momentos históricos de soliedariedade ou de comunhão coletiva deste século, pois trata-se da dissolução de formações sociais mais antigas como a família, o clã, as relações de troca, sexo e afetividade. Em Taiwan, a especulação imobiliária dos anos 80 deixou aos seus habitantes uma das maiores concentrações de departamentos vazios do mundo. Numa cidade que concentra 6 milhões de pessoas, onde o espaço não é abundante (as urnas funerárias são meras caixas de sapatos), é natural a violência visual do duplex vazio, e a naturalidade com que ele se torna palco das fantasias dos personagens. May, a corretora, vende imóveis, cola os cartazes e fala com seu chefe por telefone; Hsiao-kang, o vendedor de urnas, prepara e distribui os folders que divulgam seu serviço; são igualmente e radicalmente autônomos, onde as relações pessoais comuns ao mundo do trabalho não chegam a se estabelecer. Os clientes de uma não aparecem, e os clientes do outro... enfim, estão mortos. No filme de Liang, os personagens estão condenados e descobrir por conta própria qualquer sentido de existência para além do trabalho, e nenhum momento dá-se certeza de que esse sentido sequer permaneça a existir na Taipei modernizada ao redor. Se existem regras, não há nenhum mestre de cerimônias para introduzí-las. Dá-se então um aprendizado inerte e quase inconsciente, a partir de estilhaços cada vez mais ausentes de um mundo anterior, e do qual o morto-vivo deste mundo deve sua origem, de espaços alheios cujos donos não tem fisionomia, de cacos de passado. Ah-jung, segundo suas próprias palavras, lida "com exportações e importações". Estas "importações e exportações" são vendidas numa calçada do City Bank de Taiwan, ao lado de outros importadores como ele, onde parte fundamental do trabalho é ficar de ouvidos atentos a sirenes. O terceiro vende urnas funerárias nos tipos Individual, Para Casais e Para toda a família, tamanhos e adornos dependendo dos dotes do morto. No caso desse personagem, o homossexualismo não se estabelece como fruto de uma tomada de consciência ou ativismo sexual e nem como afirmação de identidade (como nos filmes de Almodóvar), mas de um sentimento anterior de isolamento radical e carência física, onde os personagens transitam por situações absurdas muitas vezes como consequência desse "não estar" em mundo algum. O cinema de Taiwan tem nos revelado cineastas de alto nível, como Hou Hsiao-hsien, Edward Yang e Tsai Ming-liang. Ao contrário do cinema de gênero que predomina em Hong-Kong, e do cinema de época Chinês para exportação, os taiwaneses tem se destacado por um mergulho nas grandes consequências sociais e comportamentais da modernização asiática. Embora Tsai Ming-liang seja responsável por alguns dos trechos mais cruéis da década de 90, principalmente em seu terceiro filme, O Rio, de 1997, em Viva o Amor ele nos revela a faceta mais absurda da precariedade contemporânea, através de uma comicidade quase inverossímel do subdesenvolvimento. A cena dos mosquitos encontra eco na dos cartazes sendo pendurados mecanicamente e no esconde-esconde bizarro dentro do apartamento. Liang consegue em algumas cenas um humor muito elegante, próximo ao de Jacques Tati, o grande gozador da modernização européia, mas sem o lirismo que o francês ainda conseguia resgatar. A imagem de Taiwan como um tigre asiático, vendida por alguns e comprada por muitos na década de 90, acaba sendo um alvo involuntário do filme de Liang. O bem-estar social está muito além ou aquém dos três personagens do filme, mas ele ronda como uma promessa insensata na revista pornô, na Budweiser gelada, na melancia, na ducha quente da banheira, na colchão sem lençóis, em cores que se destacam da arquitetura como forças resistentes ou como últimos suspiros. Chega-se a duvidar que esse bem-estar possa de fato existir em algum lugar de Taipei. Diante de uma promessa constantemente adiada, se estabelece em todos a administração do desespero. Sobra a Liang a desenvoltura de um iconoclasta e de um pintor agressivo, a explorar perspectivas sombrias, cores nauseantes, corredores que não levam a lugar algum. Só um cineasta-pintor poderia elaborar imagens que transcendem a narrativa e permanecem como assombrações. Não esqueceremos do milk-shake verde nas mãos de May, nem de Hisao-kang (interpretado por Lee Kang-sheng) jogando boliche com sua melancia no apartamento vazio, e nem do parque devastado no fim, o único e último bastião público de Taipei (visto que as ruas que Liang enquadra não têm calçadas e nem travessas, como a Nove de Julho, em São Paulo). Ao invés de descobrir o amor prometido no título irônico do filme, a heroína só pode se re-encontrar fora dos arranha-céus fantasmas, numa praça destruída que se assemelha a seu espírito igualmente devastado. O terceiro-mundo, no qual Taipei e São Paulo são cidades irmãs, está deixando de ser um lugar habitável e o século XX, para quem o filme responde com um ironia sublime, poderá durar uma eternidade antes que possamos superá-lo. Alfredo Manevy |
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