O
cinema faz política (1):
Gillo Pontecorvo
Kapo
de Gillo Pontecorvo
1) Em 1961, a propósito do filme Kapo,
de Gillo Pontecorvo, o cineasta e então crítico Jacques
Rivette escreveu:
"Vejam então, em Kapo, o plano
em que (Emanuelle) Riva se suicida, jogando-se no arame farpado eletrificado;
o homem que decide, nesse momento, fazer um travelling para frente para
reenquadrar o cadáver em contra-plongée, tomando o cuidado
de inscrever exatamente a mão levantada num ângulo de seu
enquadramento final, esse homem só tem direito ao mais profundo
desprezo." (Cahiers du Cinéma, nº120)
Essa passagem causou muita discussão,
e é ao menos a partir de 1992 retomada seriamente por Serge Daney
num de seus últimos artigos intitulado, não à toa,
"O Travelling de Kapo", em que o autor tece comentários
sobre o seu tipo de engajamento cinematográfico, seguindo Rivette
em sua distinção entre um cinema que é político
por seu próprio fazer o exemplo é Noite e Neblina,
média-metragem de Alain Resnais e um cinema que simplesmente
trata de temas políticos, submetendo o assunto às normas
dramatúrgicas gerais do cinema e genericamente a todo tipo de espetáculo.
O assunto dá muito pano pra manga, mas paremos por aqui.
2) O que é importante reter aqui é
que um cinema que tem como tema principal a questão política
e, mais especificamente, a questão política dita
humanista ou de esquerda , em suas mais variadas formas, deve necessariamente
se comportar de forma diversa de um filme que se rege pelas leis puras
da ficção. Por quê? Porque o cinema de espetáculo
funciona com um mecanismo de ilusão que é naturalmente vetado
ao cinema "de esquerda". Vetado não por motivos éticos
ou qualquer coisa do tipo. Vetado antes de tudo porque ele quer nos informar
sobre um determinado tipo de realidade, e quando esse tipo de "informação"
descamba para o terreno da ficcionalização, temos a terrível
sensação de que alguém que se acha muito malandro
está nos enganando.
3) O que nos dá tanto mal estar quando
vemos, depois de um longo itinerário crítico e interpretações
tão contundentes, o filme Kapò? Não é,
certamente, o tal travelling, que parecia muito mais nojento e asqueroso
do que realmente é no texto de Rivette (mesmo que um efeito tão
exploratório da morte alheia como um contra-plongée seja
de fato verdadeiramente equivocado), mas antes de tudo o asco de ver uma
história sobre os campos de concentração se transformar
aos poucos num melodrama rançoso sobre um amor nos momentos terríveis.
Nesse caso, poderia-se perguntar o que afinal mais interessava o diretor
do filme? Falar sobre os campos de concentração ou sobre
o amor de dois jovens? Se o primeiro, o filme é ruim e vergonhoso;
se o segundo, por que os campos? É nojento colocar o campo de concentração
como cenário de uma love story trágica, e é
especialmente nojento de uma hora para outra retirar o foco de uma coisa
maior (aquilo que faz o diferencial do filme, o de querer retratar os
campos) para uma coisa menor. Não que o amor seja necessariamente
uma coisa menor, pelo contrário. É o uso que se faz dele.
Ao contrário, ao fim do filme Poder Absoluto, de Clint Eastwood,
a presidência dos Estados Unidos está para pegar fogo e o
cineasta decide deliberadamente esquecer o assunto "maior" para
tratar de um assunto menor, o da relação entre pai e filha,
que é o verdadeiro tema do filme. Isso foi visto, pela grande imprensa,
como falha do diretor, mas é justamente o contrário disso
e a perfeita antípoda ao filme de Pontecorvo: no momento em que
focar é importante, você foca naquilo que você acredita
fielmente. Pontecorvo não fez isso. Fez cinema de espetáculo
querendo fazer cinema político.
4) Pontecorvo, não só com Kapò
mas igualmente com A Batalha de Argel e Queimada!, merece
ser alçado a alguma coisa na história do cinema. Sua encenação
é primorosa, excelentemente bem-realizada e trata de temas importantes
colonialismo, emancipação, independência nacional...
Mas é antes de tudo um cinema político que leva em segundo
plano os pressupostos políticos da própria estética
que realiza, e que mesmo querendo nos transmitir uma mensagem libertária,
nos carrega aos ápices do conformismo através de uma doutrina
e de um didatismo sem par. OK, que é um grande cineasta ninguém
duvida. E que trata-se de arranjar-lhe um lugar na história do
cinema, idem. Gillo Pontecorvo é então o Steven Spielberg
de esquerda. Mas a esquerda precisa de Steven Spielbergs? O futuro deve
responder.
Ruy Gardnier.
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