Luis
Buñuel Glauber Rocha,
ecos de uma conversação


Luis
Bunuel e Glauber Rocha se encontram em Veneza
Em Veneza, em frente ao Palácio Saint-Marc,
há uma pequena ilha, distante alguns quilômetros, que se
chama Saint-Cyprien. Nessa ilha, tranqüilo, solitário, um
hotel. Durante os quatro dias de sua estadia em Veneza à ocasião
da apresentação à Mostra de seu último filme,
A Bela da Tarde, Luis Buñuel viveu nessa ilha, nesse hotel.
Glauber Rocha, um dos realizadores mais importantes
do movimento do novo cinema brasileiro, chegou em Veneza de Montreal (onde
ele tinha exercido as funções de jurado no Festival de Cinema)
com a intenção de fazer uma série de entrevistas
com Buñuel. Buñuel considera Deus e o Diabo na Terra
do Sol, penúltima obra de Rocha, como um dos filmes mais importantes
que ele viu nos últimos anos. Rocha disse de Buñuel: "É
um cineasta pessoal, latino-americano, espanhol, ibérico, que tem
sua própria linguagem e possui uma visão crítica
profunda do subdesenvolvimento, das oposições psicológicas
da moral da classe média, da alienação do povo."
Depois de alguns encontros, foi no dia seguinte
ao fim da Mostra que ocorreu em Saint-Cyprien o último contato
entre Buñuel e Rocha. A conversa entre esses dois pilares do cinema
do Terceiro Mundo – Buñuel o melhor analista da potente burguesia
latino-americana e Rocha, o criador da estética da fome – se desenvolve
em espanhol num tom amigo e cordial. Só alguns incômodos,
como a surdez do aragonês, o sotaque do brasileiro e algumas interrupções
devidas a desconhecidos que vêm felicitar Buñuel por seu
triunfo.
Buñuel não gosta dessas felicitações,
ele fica irritado, ele não sabe o que responder. Rocha lhe traz
um jornal em que uma foto o mostra quando vai receber o prêmio.
Buñuel mal a observa. Ele queixa-se da avidez dos fotógrafos
que o circundavam e deixavam-no sem ver nada com seus flashes.
Ele ficou atordoado, e num momento lhe gritaram: "Chegue perto da moça
(Shirley Knight, que levou o prêmio de interpretação
feminina por sua surpreendente performance em Dutchman) e dê-lhe
um abraço". Mas apesar disso, quando Rocha lhe fala da noite que
seguiu-se à entrega dos prêmios (noite à qual Buñuel,
que tinha uma mesa reservada, não assistiu), ele se lamenta e diz
que não sabia de nada, que ninguém lhe tinha avisado e que
ele temia ficar mal com Chiarini, que havia sido muito amável.
Ele se queixa de que ninguém, excetuando Muñoz Suay e Novais
Teixeira, tenha vindo vê-lo, e que apenas uma jornalista do "L'Europeo"
tenha solicitado uma entrevista. Ele insiste em contrapartida na loucura
dos fotógrafos na noite de premiação. Além
do mais, a maior parte dessas fotos não será nem publicada.
Ele reflete um instante e calcula que desde
que ele está em Veneza e unicamente em três ocasiões
(a chegada, a conferência de imprensa e a entrega dos prêmios)
devia-se tirar umas oitenta mil fotos dele...
GODARD
Buñuel e Rocha são grandes
admiradores de A Chinesa, o único filme da Mostra que Buñuel
viu. E Buñuel está muito contente que o prêmio que
carrega seu nome e que é outorgado por um grupo de críticos
espanhóis independentes tenha se aliado à Chinesa.
"Quando eu vejo esse filme, diz ele, eu me sinto mal e tenho vontade de
sair da sala, mas uma vez que a projeção acaba eu penso
e compreendo que é um grande filme." Rocha considera que pode-se
comparar o filme de Godard à Idade do Ouro, ponto culminante
do novo movimento de sua época. Mas Buñuel não concorda:
contrariamente aos cineastas franceses de hoje, eles não procuravam
nenhum efeito de estetismo, a única coisa que lhes importava era
uma certa moral, uma oposição à família, ao
casamento e à Igreja. Buñuel e Rocha estão de acordo,
entretanto, num ponto: Godard é o único cineasta interessante
da atual geração francesa – mesmo que, afirma Buñuel,
não se deva esquecer certas coisas de Truffaut. Rocha conta que
Godard depois de A Chinesa fez um esquete de Vangello 70 e
que, no dia seguinte à apresentação de seu filme
à Mostra, ele começou a filmagem de Week-end. "Eu,
diz Buñuel, faria um filme como esse em quinze dias: em oito dias,
eu escreveria o roteiro, cortaria artigos do "L'Humanité", escolheria
alguns livros de sociologia e partilharia esses textos entre os diferentes
personagens, e depois eu filmaria em uma semana. O mais difícil
é encontrar o tom, o estilo, mas uma vez encontrado, o filme é
muito fácil de ser realizado." Buñuel gosta muito dos longos
planos do filme, e ele encontra uma certa semelhança com os de
Deus e o Diabo na Terra do Sol.
SIMÃO DO DESERTO
Glauber Rocha é há alguns anos
uma amigo de Juan Luís, o filho de Buñuel, que foi assistente
em vários de seus filmes. Durante a realização de
Simão do Deserto, Rocha encontrava-se no México,
e um dia ele pediu a Juan Luis para conduzi-lo à filmagem porque
ele queria conhecer seu pai. Filmava-se o último plano do filme:
um grupo de jovens dançam numa boate, à noite. Juan Luis
apresentou Glauber a seu pai, e ele, depois de tê-lo cumprimentado,
sem se dar conta do porque ele estava lá, designou-o para a figuração.
Buñuel não se lembra desse incidente. Ele acredita possível
essa cena porque durante a filmagem os meios de produção
tinham diminuído e, mesmo que o filme tivesse apenas quatro bobinas
em vez das nove que ele teria desejado, ele tinha decidido terminá-la
e tinha sonhado com essa nova cena; ele estava preocupado com os problemas
que isso impunha. Num primeiro momento ele queria que o filme contasse
a vida do estilita no cume de sua coluna, e no fim ele morreria em estado
de santidade. Mas em seguida, introduzindo a seqüência da dança,
ele poderia seguir o retorno de Simão que finalmente sucumbe a
uma das tentações do demônio e que, morrendo em estado
de pecado, é substituído na coluna pelo Diabo. Buñuel
fala também das dificuldades técnicas apresentadas pelo
filme: com mostrar um Simão que não sai de sua coluna sem
tornar lenta a narrativa?
Rocha viu o filme no Rio de Janeiro, na época
do festival de cinema. Ele deveria ser apresentado numa pequena sala de
mais ou menos oitocentos lugares, e havia em torno de três mil pessoas
para vê-lo. A sessão foi atrasada porque não chegavam
nem Silvia Pinal nem Gustavo Alatriste (o intérprete e produtor
do filme), e durante esse tempo a multidão de mexia, acabando por
forçar as portas da sala e acabar entrando. A projeção
se desenvolveu num local repleto de gente e sentados no chão.
COMEÇO MEXICANO
Por quinze anos, entre a realização
de Terra Sem Pão na Espanha e Gran Casino no México,
Buñuel permaneceu sem filmar. Ele trabalhou como produtor executivo
na Espanha, em filmes de segunda zona dirigidos por Saenz de Heredia e
Luis Marquina, e como montador nos Estados Unidos. "Eu acreditava que
a minha carreira estava terminada." Ele deixou os Estados Unidos porque
lhe propuseram uma adaptação de A Casa de Bernarda Alba,
de Garcia Lorca, que jamais se realizou. Foi assim que ele foi ao México
onde ele realizou Gran Casino, um filme musical com Jean Negrette
e Libertad Lamarque, que ele teria intitulado Vejamos Quem Canta Mais!
se seu produtor não o tivesse impedido imaginando que o público
fosse perceber a gracinha. O filme foi um desastre comercial, e por três
anos os produtores mexicanos não o deixaram mais trabalhar. Mas,
finalmente, ele conseguiu realizar El Gran Calavera, que foi um
sucesso extraordinário, e o salvou. Foi graças a esse filme
que ele dirigiu em 1950 Os Esquecidos, sua primeira obra pessoal
desde Terra Sem Pão.
Rocha viu recentemente em Paris seus primeiros
filmes mexicanos, e gostou muito. Buñuel não quer falar
deles porque ele os considera muito ruins. Rocha insiste, conta que em
Paris eles são exibidos continuamente. Ele pergunta a Buñuel
se ele tem participação nos lucros de um de seus filmes,
porque nesse caso ele estaria hoje milionário. Mas Buñuel
jamais teve – e ainda não tem – participação econômica
em seus filmes, nem em A Bela da Tarde. "Há três anos,
diz ele, eu só tinha dinheiro para viver oito meses, agora eu tenho
o suficiente".
Eles chegam a falar de Abismos de Paixão,
que Buñuel realizou em 1953, adaptando O Morro dos Ventos Uivantes,
e que bem poderia-se definir como a pior distribuição da
história do cinema. Jorge Mistral, um espanhol, Irasema Dillian,
uma polonesa e Lilia Prado, uma mexicana, eram as protagonistas; e entre
esses tipos não somente distintos mas opostos, deveriam ser criados
laços da família. "Me ofereceram um filme musical, diz Buñuel,
mas isso eu não sabia fazer e também não tinha nenhuma
vontade." Ele mostrou a Oscar Dancingers – o produtor, que era um homem
inteligente – um antigo roteiro que datava da época surrealista
em Paris, e que lhe agradava bastante. Era uma adaptação
do Morro dos Ventos Uivantes. Rocha sublinha o interesse, a força
da seqüência final no cemitério, e explica como em sua
opinião a distribuição aparece perfeitamente adequada
pelo fato de que ela destrói o possível romantismo da história.
Rocha viu igualmente Cela s'Appelle l'Aurore
que Buñuel evoca com ternura e La Fièvre Monte à
El Pao, que Rocha considera uma obra excelente pela clareza com a
qual ela expõe os problemas latino-americanos. Buñuel julga
por sua vez que o fato de situar a ação num país
imaginário lhe faz perder uma grande parte da força que
poderia ter havido se (o filme) se desenvolvesse numa localidade real.
BELA DA TARDE
Em duas ocasiões, passando pelos Champs
Elysées e sentado no terraço de um café, Buñuel
aparece em seu filme. Essas aparições no estilo de Hitchcock,
Buñuel jamais as fez até então, à exceção
de um pequeno papel em Um Cão Andaluz. Primeiramente Buñuel
não se lembra dessa figuração, depois ele sorri,
espantado que alguém se prenda a esses pequenos detalhes. Ele acaba
de falar de duas séries de cortes que a censura impôs sobre
o filme. A cena com o duque, personagem interpretado por Georges Marchal,
foi a mais alterada. Desapareceram os planos onde se assistia a uma missa
de réquiem numa pequena capela do castelo, o túmulo onde
aparece depois Catherine Deneuve colocada diante do altar (e Jean-Claude
Carrière, o co-roteirista, no papel do padre). Faltam também
os planos em que o mordomo dá a Severina de maneira ritual e cansada
as indicações necessárias para a cerimônia:
"Não se mexa, respire lentamente". Rocha pergunta a Buñuel
se essa seqüência do duque é real ou imaginada pela
cabeça da mulher. Buñuel não sabe: "Supõe-se
que ela é imaginária por causa da aparição
do landó, mas ela pode igualmente ser real". O outro corte aconteceu
depois do plano em que o oriental sai da casa de prostituição
e a mulher se debruça na escada para verificar se ele desce enquanto
sua filha sobe: via-se então, no quarto em que está Severina,
um guardanapo manchado de sangue, do sangue que se fez correr (supõe-se)
dos insetos trazidos no cofre pelo oriental.
ATORES
Um membro do júri contou a Rocha que
só faltaram a Geneviève Page e a Pierre Clémenti
apenas dois votos para obter os prêmios de interpretação.
A Rocha, que lhe pergunta se ele trabalha muito com os atores, Buñuel
responde que é isso o que mais lhe preocupa. Num primeiro momento,
ele faz alguns ensaios, não muitos porque ele trabalha muito rápido
(seu último filme foi rodado em duas semanas a menos do que o previsto
pelo orçamento, utilizando apenas dezoito mil metros de película
virgem), e depois ele mostra a eles os movimentos e lhes dá algumas
indicações.
Para A Bela da Tarde, isso foi o bastante
porque ele dispunha de atores excelentes, mas para certos filmes mexicanos
ele precisou dirigir tudo pessoalmente, indicando cada um dos gestos,
de modo que o ator se contentava em imitá-lo. "A melhor atriz com
a qual eu trabalhei, diz ele, é Jeanne Moreau. Ela tem uma grande
força, basta algumas pequenas indicações."
De cada plano, ele faz um máximo de
três tomadas. "Em Bela da Tarde, ele indica, o diretor de
fotografia – Sacha Vierny que realizou um trabalho esplêndido –
quis uma vez fazer mais tomadas para um plano, mas eu, desde que chegava
a não ultrapassar esse limite de defeitos que o público
não admite, eu dava o plano por bom. Quando eu termino um plano
eu já estou pensando no plano seguinte, eu sempre sei onde deve
ser colocada a câmara. Na realidade, eu sou um realizador-montador,
eu jamais faço planos para me cobrir; às vezes eu precisava
de planos que eu não tinha feito, mas eu sempre filmo com esse
montante, e mesmo que eu tenha um orçamento muito elevado, eu continuarei
trabalhando assim. É um hábito que eu adquiri desde os meus
primeiros filmes, e tornou-se minha regra. Depois, para montar o filme,
é bem cômodo: basta cortar as "claquetes" e colar. Eu montei
Bela da tarde em doze horas, em sessões cotidianas de duas
horas. Previamente, eu tinha escolhido as tomadas. Eu via um plano depois
do outro, eu dizia onde era preciso cortar, e depois a montadora colava."
O EVANGELHO
Uma vez terminado A Bela da Tarde,
ele declarou que seria seu último filme, mas agora ele parece quase
certo que ele voltará às filmagens. Serge Silberkan quer
que ele faça O Monge, um roteiro no qual ele já tinha
trabalhado mas que hoje não lhe interessa mais. "Três dias
atrás, diz ele, me veio uma idéia da qual eu posso tirar
um filme. Chamaria-se O Evangelho1, argumento de São João,
contado por Luis Buñuel", e não teria nada a ver com o filme
de Pasolini. Seria um afrontamento entre duas épocas, a do Cristo
e a nossa. A figura do cristo seria aquela que apresenta tradicionalmente
a Igreja: um olhar estilizado, barba, as mãos levantadas, um passo
muito firme e tranqüilo. Haveria uma quantidade de detalhes que o
mostrariam como um ser humano mas que se julgaria como desrespeitoso."
E enquanto ele conta isso, a vitalidade de
que ele parece num primeiro momento desprovido aparece: ele se entusiasma,
ele levanta-se da cadeira e imita os gestos do Cristo. Percebe-se que
é uma história que o apaixona, que ele tem vontade de filmar
e que ele realizaria um filme extraordinário.
Rocha lhe pergunta se ele pensou em algum
ator preciso para interpretar o papel do Cristo. mas Buñuel não
pensa nunca no ator quando ele está no momento do roteiro: é
um trabalho posterior.
CINEMA NOVO2
Buñuel é um grande admirador
do movimento "cinema novo", mesmo que o único filme que ele tenha
visto inteiro seja Deus e o Diabo na Terra do Sol, que o impressionou
muito. Alguns personagens sobretudo, como por exemplo "o homem das medalhas"
que é "um dos tipos cinematográficos que me criou a mais
forte impressão". Ele conhece fragmentos de Os Fuzis de Ruy Guerra,
que ele pretende ver inteiro em Paris, e de Vidas Secas, de Nelson Pereira
dos Santos. "Eu vi apenas algumas passagens, mas elas são suficientes
para que eu possa me dar conta da força e da personalidade das
obras."
BLOW-UP
A conversa encaminha-se para a última
realização de Antonioni. Rocha diz que ela custou um milhão
de dólares – o que parece excessivo a Buñuel – e fala da
maneira com que Antonioni filma: ele faz um plano por dia, pinta as fachadas,
os muros, o céu, as gruas, e em seguida é provável
que o resultado não agradará e que ele deve recomeçar.
Buñuel não gosta do fim, as cenas de arlequins jogando tênis
sem bola. Rocha diz que Antonioni não terminou o filme, que a última
montagem deve-se ao produtor, que Blow-Up devia terminar no distanciamento
do fotógrafo e que o que é agora a cena final se encontrava
em outro lugar. Buñuel só gosta de três cenas: o começo,
o momento em que Vanessa Redgrave vai na casa do fotógrafo e se
desnuda, a cena com as duas meninas.
DESPEDIDA
Buñuel acompanha até a embarcação
Rocha, que o pergunta ainda no caminho sobre a sua vida no México.
"Eu leio, mas não muito; eu gosto bastante de armas, eu tenho uma
pequena coleção; mas sobretudo eu sou um grande adepto do
ócio, eu posso ficar sentado horas inteiras sem fazer nada". No
momento em que eles dão as mãos, Buñuel retoma mais
uma vez o que se tornou o leitmotiv da conversa: ele ouviu dizer que o
Arcebispo de Veneza tentava suscitar um manifesto contra o festival e,
muito interessado, ele pergunta a Rocha se ele sabe alguma coisa do assunto.
Enquanto Glauber Rocha sobe na lancha que
o conduzirá a Veneza, Luis Buñuel dirige-se para o hotel.
Augusto M. Torres (texto revisto e corrigido
por Luis Buñuel). Publicado originalmente em Cinéma 68,
nº 123.
Traduzido por Ruy Gardnier
|
1 Na verdade, o filme que ele realizou em seguida a A Bela da Tarde
foi Via Láctea ou O Estranho Caminho de São Tiago, que apesar
de guardar algumas semelhanças quanto à temática, é baseado em evangelhos
apócrifos da Bíblia.
2 Em português no texto original |