Filmes
a descobrir, filmes a recuperar

Rio Zona Norte, de
Nélson Pereira dos Santos
Rio Zona Norte, Brasil, 1958

Rio
Zona Norte
de Nelson Pereira dos Santos
Amigo, você já viu Rio Zona
Norte? Se a resposta é não, meu conselho é que
veja logo, é um filme especialmente bonito.
É o segundo longa-metragem de Nelson
Pereira dos Santos, com fotografia de Hélio Silva, protagonizado
pelo Grande Otelo, com músicas de Zé Ketti e arranjos de
Alexandre Gnattali, produzido em 1957, lançado em 1958.
Quando foi lançado, foi bem pichado,
foi criticado pelos papas da crítica da época. Disseram
que era melodramático, uma volta ao realismo psicológico,
um filme distanciado das propostas de vanguarda da época, na época
a onda era fazer filme barato retratando a realidade. Rio Zona Norte
até era assim, mas tinha flash-back, flash-back não podia,
era proibido pelos dogmas da época. O Alex Viany, de quem o Nelson
Pereira tinha sido assistente no Agulha no Palheiro, esculhambou,
não gostou nem um pouco. O Paulo Emílio Salles Gomes também
não curtiu, a reação dos dois está nos seus
livros "Introdução ao Cinema Brasileiro" e "Trajetória
no Subdesenvolvimento".
Foi um fracasso de bilheteria. O Nelson tinha
ganho uma grana boa com o sucesso do Rio 40 graus, que estourou
graças à polêmica criada pela interdição
do filme pelo delegado Menezes Cortes. E com essa grana ele produziu dois
filmes, O Grande Momento, obra de estréia do Roberto Santos,
feita em São Paulo, e o Rio Zona Norte. Os dois foram mal-recebidos,
não fizeram dinheiro, Nelson ficou cheio de dívidas e teve
que ir trabalhar em um jornal por um bom tempo.
Olhando agora, de longe, depois de tanto
tempo, parece que valeu a pena, não?...
Outra conseqüência do fracasso
do filme é que Nelson teve que adiar o projeto que fecharia a trilogia
carioca, Rio Zona Sul, um filme que se passaria à noite,
nas boates de Copacabana, registrando o ambientes dos inferninhos da época,
que depois veio a se tornar mítica. Quando teve condições
de produzir um novo filme, Nelson já resolvera adaptar um romance
de Graciliano Ramos sobre uma família de retirantes. Foi para o
nordeste, choveu, deu tudo errado, ele acabou fazendo outro filme, só
fez Vidas Secas anos depois, mas isso tudo é uma outra história.
Nelson já contou que amadureceu muito
ao longo de seus primeiros filmes, e Rio Zona Norte alterou sua
visão de cinema, porque teria sido o momento em que ele começou
a se ligar de fato na importância da montagem do filme. Isso aconteceu
especialmente na cena clímax, quando o Espírito (o personagem
do Grande Otelo, um compositor de samba desconhecido) apresenta uma canção
para a cantora Angela Maria. O montador, um portenho chamado Rafael Valverde,
queria mostrar Angela Maria quando começava a acompanhá-lo,
e Nelson percebeu que isso não era o mais importante, que era preciso
mostrar a reação do Espírito. A discussão
mexeu tanto com a cabeça dele que os três filmes seguintes
de Nelson foram trabalhando na moviola (Barravento, de Glauber
Rocha, O Menino da Calça Branca, curta de Sérgio
Ricardo, e Pedreira de São Diogo, curta de Leon Hirzman,
que fez parte de Cinco Vezes Favela).
Nelson Pereira teve dificuldades com Grande
Otelo, achava que ele se entregava muito nas cenas. Demais, até,
para o olhar neo-realista do nosso amigo, que tratou de inventar soluções
para obter uma interpretação mais seca do ator. No entanto,
Nelson foi corajoso ao chamar o consagrado comediante das chanchadas para
protagonizar seu drama, e foi muito feliz com seu gesto, Otelo está
magnífico. Otelo já tinha feito muitos filmes sérios,
como Amei um Bicheiro, mas era evidente a má vontade de
parte da crítica e do público ‘bem-nascido’ com ele, que
só voltou a trabalhar com alguém do chamado Cinema Novo
dez anos depois, em Macunaíma.
Apesar de ter sido um fracasso de público
e crítica, a simplicidade e grandeza de Rio Zona Norte ganhou
vários fãs. David Neves e Joaquim Pedro achavam ser o melhor
filme da carreira de Nelson Pereira. Neves, inclusive, chegou a escrever
um carinhoso artigo sobre o filme na revista "Filme Cultura",
nos anos ’70, despertando a curiosidade dos seus pares e tirando o filme
do esquecimento em que estava injustamente enterrado.
O filme é uma obra-prima, a cena do
Otelo com a Angela Maria é uma das coisas mais lindas que eu já
vi.
Lançaram há pouco tempo uma
versão do Roteiro, com supervisão do Nelson, junto de versões
do Rio 40 Graus e do Amuleto de Ogum. Os textos que o Nelson
escreveu nas introduções são fundamentais, riquíssimos,
e na introdução ao Rio Zona Norte ele conta que fez
o filme em homenagem aos sambistas brasileiros, e principalmente ao seu
compadre Zé Ketti.
Nelson Pereira morou seis meses em Bento
Ribeiro com Zé Ketti para conhecer seu cotidiano, até se
sentir apto para escrever o roteiro. Contou uma vez que, já na
época, não era muito seguro andar à noite na rua.
Mas sempre que a barra parecia ficar pesada, Ketti começava a cantar:
"Eu sou o samba/ A voz do morro sou eu mesmo sim senhor...". Era seu passaporte,
ninguém lhe tocava. Ninguém faria mal ao samba em pessoa.
Quanto ao conselho inicial deste artigo,
vale lembrar que a Riofilme e a Sagres relançaram o filme em vídeo
recentemente, ele já havia sido lançado pela Manchete Vídeo,
há mais de dez anos. Portanto, ele pode ser encontrado em locadoras
de boa qualidade. Vale a pena catar. Ou, quem sabe, esperar que se dignem
a lançar uma cópia nova em uma boa mostra.
Daniel Caetano |
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