Entrevista com Hernani Heffner
Diretor de conservação da cinemateca do MAM


 

Necessidades de uma cinemateca. A cinemateca vive hoje uma situação bastante delicada. Ela é uma instituição que demanda muitos recursos. Ela tem que fazer frente a algumas questões que são fundamentais e urgentes. A primeira delas é se equipar. Quanto mais o trabalho de preservação evolui – evolui num duplo sentido: quanto mais tempo eles permanecem na cinemateca eles se deterioram e quanto mais você avança no conhecimento da preservação, mais equipamentos você precisa ter à mão para poder realizar os trabalhos de recuperar imagem, som, tentar se aproximar o máximo possível do que era a obra originalmente. Significa que você precisa ter acesso a uma série de equipamentos 100% importados, que são muito caros, mas que são fundamentais para se realizar uma série de tarefas. Isso é importante na medida em que você, desenvolvendo um processo de restauração do seu acervo, você tem que fazer isso de uma maneira contínua, constante, tentando fazer face ao ritmo de deterioração desses materiais. Não restaurar um filme de tempos em tempos, mas restaurar uns dois filmes por mês. Isso que seria o ritmo mais adequado. No Brasil isso não acontece, em todas as cinematecas isso de modo geral não acontece porque não há recursos suficientes para você aplicar nessas tarefas. Além disso, a cinemateca é na verdade uma instituição que tem n tarefas a serem promovidas. A parte o fato de restaurar e conservar os filmes, ela precisa fazer parte da mudança da tecnologia. O audiovisual vai continuar, seja lá em que suporte, de que maneira, mas ele vai continuar, e a cinemateca precisa acompanhar isso. Quando hoje se fala que alguns cineastas que começaram na película já estão no digital e vão entrar na internet, você está falando que na verdade ele está construindo obras para meios diferentes, mas essas obras vão precisar ser conservadas. Isso significa que você tem que estudar esses novos meios, preservar as ferramentas e os equipamentos de trabalho desses novos meios que daqui a cinqüenta anos vão estar invisíveis, obsoletos, mas você vai precisar deles para fazer a transferência de informações, de suporte que é o que efetivamente acontece em qualquer tipo de tecnologia. Isso significa que a cinemateca tem que ter uma política de acompanhamento dessas mudanças tecnológicas, uma política de reciclagem de mão de obra, uma política de conhecimento e uma discussão em torno de o que significa, por exemplo, o meio digital: existe um mito já criado de que o meio digital é um meio absolutamente seguro. Como ele é um meio muito novo, você na verdade não tinha conhecimento para assegurar se ele era seguro ou não. E a primeira pesquisa de razoável fôlego que foi empreendida há alguns anos atrás nos EUA, verificou que, por exemplo, um CD de música tem uma baixa taxa de preservação. Ele é suscetível à umidade, ele é suscetível a fungos, por exemplo. Você tem n fatores que podem destruir, sim, a informação digital, a informação que está associada a esse meio. Nesse meio, nós já passamos do CD ao laserdisc, que armazenou uma série de filmes, por exemplo, mas que eu saiba ainda não foi criada obra nenhuma diretamente no laserdisc, mas isso já não se dá no novo patamar que é a câmara digital. Várias obras já estão sendo feitas diretamente em DV (digital video). O que significa que as matrizes dessas obras estão, na verdade, num suporte magnético, que em princípio é muito menos resistente do que o suporte película que era característico. O fato de você ainda gerar outras matrizes, outros suportes – a gente não têm dúvida que eles acabam passando para película – não significa que você vá preservar a película como o suporte básico, porque não é o suporte básico. Inclusive se você quiser "restaurar" a obra você ainda tem que partir desse original magnético. E, no caso da internet, no caso do arquivo de bytes, você tem aí uma série de questões que você não sabe ainda definir qual é o alcance. Você realiza uma animação, por exemplo, em flash e arquiva aquilo no seu computador. Seu computador está sujeito a uma série de possibilidades de dano, de curto, de dano físico, cair no chão e quebrar, os arquivos podem não ser lidos por programas futuros, etc. E você tem várias questões, como a integridade da obra, será que eles têm os originais da obra, o meio pela qual ela foi difundida, que tipo de apropriação ela pode ter tido ou não. Se você tem, por exemplo, apropriação de uma obra que conte com interatividade, ou seja, ser modificada amanhã por um terceiro, você tem que definir exatamente por que percurso essa obra percorrer. Ou seja, a cinemateca tem diante de si uma tarefa que é não só olhar para o passado, não é só olhar para o fato de que ela está ligada a um período histórico característico, a um meio característico, que é o meio de cinema, mas que na verdade isso continua, isso evolui, isso avança no tempo e ela tem que acompanhar isso. Sem esquecer o passado, mas tem que acompanhar. Então isso tem uma série de implicações do ponto de vista prático, do ponto de vista do conhecimento, e a cinemateca tem que fazer frente, e ela no momento não tem essa condição. É preciso criar essa condição senão ela própria vai se tornar obsoleta ou vai se especializar num trabalho único, que é cuidar de uma faixa de obras restrita a um determinado período de tempo. E a gente sabe que hoje o conceito de museu é um conceito relacionado com um dinamismo. Então ele não pode parar no tempo porque senão ele pára de interagir com a sociedade em que ele está inserido, e isso é fatal para a sobrevivência de qualquer instituição. Ela passa a ser uma coisa velha, uma coisa ultrapassada, e deixa de prestar o serviço. A cinemateca é uma das poucas instituições no país que tem condição de orientar o meio, de orientar as pessoas, de orientar o público em geral com relação a o que fazer para preservar determinada obra que foi produzida por esse ou aquele motivo, comercialmente ou não. A outra questão que eu acho também fundamental é qual é o papel que a cinemateca deve ter dentro da sociedade. Não mais como uma instância que preserva o patrimônio cultural da eternidade, mas como uma instância que pega esse patrimônio e transforma em conhecimento. Esse é o outro aspecto do conceito moderno de museu que está implicado numa instituição como a cinemateca. Preservar por preservar não significa absolutamente nada, porque as obras estão literalmente perdidas. Elas estão salvas fisicamente mas estão desaparecidas culturalmente. O fato de que o meio cinematográfico é um meio bastante complicado do ponto de vista técnico, ou seja, para você projetar o filme você precisa de uma infra-estrutura que é custosa, que é grande, que é pesada, que exige um técnico especializado, etc., por mais que o vídeo tenha ajudado a difundir a obra cinematográfica, por mais que a internet se coloque como alternativa bastante viável e rápida de difusão, você ainda tem uma tarefa para o museu que é mostrar a obra tal qual ela é. Ou seja, fazer com que as pessoas, das gerações atuais e futuras, compreendam que existiu aí um determinado momento com uma determinada especificidade. Essa tarefa é uma tarefa que cabe primordialmente às cinematecas. Não há outras instituições capazes de fazer isso por conta da necessidade de uma infra-estrutura que só elas possuem porque se organizaram para isso. Transformar esse acervo, esse patrimônio em algo vivo em conhecimento exige que você se estruture também para produzir conhecimento, que é algo que a cinemateca teve em algum momento passado mas se perdeu. Hoje há um pouco de iniciativa, mas são iniciativas isoladas. A instituição não está preparada para desenvolver projetos contínuos e que abarquem n aspectos da atividade cinematográfica, de uma maneira inclusive a intervir no processo de criação, elaboração, difusão, comercialização da obra audiovisual. E a cinemateca já teve isso no passado, até dentro de um quadro bastante insólito, porque ela chegou a ser produtora, co-produzindo vários filmes brasileiros ao longo dos anos 70. Chegou a ter um estúdio de som dentro do museu, e por aí vai. Não que eu ache que ela deva efetivamente ter uma estrutura de voltar efetivamente à produção. Eu acho que não cabe mais isso, esse tempo já passou, ela tem hoje que ter uma estrutura voltada para a preservação, mas ela tem que ter também o compromisso com a exibição do seu acervo.

A cinemateca, o entretenimento, a política cultural, a busca de parceiros. Essa é uma questão muito complexa, que ainda está em aberto. Na verdade, as instituições que possuem acervo no mundo inteiro se viram frente a um debate que se travou basicamente nos anos 70 quanto ao rumo que elas deveriam tomar para a sua própria sobrevivência. O velho museu, que era o museu da visitação mais ou menos extemporânea, o museu que tinha uma atitude mais ou menos passiva e que tendia apenas a consagrar uma visão clássica da história, um museu que sedimentava o conhecimento que não deveria ser mais modificado, ele se viu confrontado – e isso vale também para as cinematecas – com o fato de que o público estava se desinteressando cada vez mais por uma coisa que ele já tinha visto e revisto várias e várias vezes, e com o fato que aquilo não se adequava mais à realidade circundante. Ou seja, a dinâmica do capitalismo tal qual ela se deu nas sociedades ocidentais do final dos anos 50 pra cá, ou seja, uma aceleração da vida, uma quantidade de informações cada vez maior, uma necessidade de você se reciclar permanentemente para poder manter o emprego, para poder sobreviver, etc., implicaram que você tinha que tomar contato com o novo permanentemente. Essa idéia do novo significava para os museus uma dupla atitude: ou abrir mão da gerência interna e trazer profissionais de outras áreas que indicassem um caminho mais eficiente para uma comunicação, uma sobrevivência, para a geração de recursos para essas instituições ou modificar o uso do acervo vem a ter. Aí você tem duas maneiras clássicas que se apresentaram mais a partir dos anos 80: a criação de novos espaços ou a transformação de velhos espaços em novos espaços, cujo marco maior é a tal pirâmide de vidro na frente do Louvre. E o que tem debaixo da pirâmide? Um shopping center. Ou seja, você aplicou idéias da economia de mercado a um espaço cultural, e esse espaço cultural na verdade é hoje refém dessa imagem que foi criada a partir dos anos 80 e é refém dos recursos que esse novo espaço, esse novo visual criou para aquele antigo museu. O modelo europeu em geral segue essa linha. Você tem, por exemplo, o Musée d’Orsay, que é um museu que trabalha muito com o período impressionista, mas que é numa gare, numa gare que foi reformada e que atua como um grande espaço cenográfico, etc. A outra possibilidade seria transformar o próprio museu num grande espetáculo, que segue mais a linha americana, o que significa que você não expõe mais permanentemente o seu acervo; você faz uma releitura do seu acervo, cria pontos de destaque, e faz uma campanha maciça de publicidade em torno do museu. Você leva a pessoa não pela importância do acervo, mas porque aquilo está como informação nova dentro de um circuito até mesmo jornalístico de conhecimento. Aí você sustenta a instituição pela venda de bilhetes. É aquela coisa: três milhões de pessoas viram a exposição de Picasso na Tate Gallery ou coisa que o valha. Esses dois modelos de alguma maneira foram aplicados no Brasil e ainda estão sendo aplicados. Por exemplo, o Instituto Moreira Salles segue um pouco essa linha européia: um espaço novo que de alguma maneira recupera um sítio importante, a casa de um ex-embaixador, extremamente rico, a casa é um marco do modernista etc. E você tem uma tentativa de atração por conta de uma contínua renovação da exposição que está ali, mas aquilo trem uma identidade. Ou você tem coisas como as megaexposições do Museu nacional de Belas Artes, como Monet, que tenta atrair publicitariamente o público por conta de uma afirmação na imprensa de que aquilo é importante. Quais são os problemas dessas duas vertentes, que atingiram as cinematecas de uma maneira semelhante? A gente não pode esquecer que nos anos 70, de uma maneira geral, as cinematecas começaram a ter problemas de público. Ficou famosa a história do National Archives, que é a principal cinemateca da Grã-Bretanha, que chegou a ter um espectador para ver Cidadão Kane. Porque na verdade todo mundo já tinha ido ver Cidadão Kane dentre o público que freqüentava aquele espaço. Na verdade, o modelo antigo de cinemateca é um modelo muito intenso, ele passava os clássicos de uma maneira muito intensa, desde o início do cinema até Eisenstein, Welles, Visconti, etc. Ou seja, a mesma geração via e revia aquilo algumas vezes , o que foi importante num determinado momento da história do cinema mas se esgotou. Algumas cinematecas pressentiram isso, e houve inclusive um grande debate que chegou até o início dos anos 90 entre você renovar as formas de gerenciamento da cinemateca, as formas de lidar com o acervo, as formas de difundir esse acervo, ou permanecer atrelado ao velho modelo, chamado de modelo Langlois, como um culto do cinema, um culto, digamos, sem nenhuma racionalidade mais explícita. E as próprias cinematecas, que na grande parte das vezes são ligadas ao Estado, no Brasil temos uma ligada ao Estado que é a Cinemateca Brasileira – o MAM é uma entidade privada – elas se viram na necessidade de se adequar a um modelo de estado também em fase de transformação. O Estado passou a adotar táticas de reengenharia, passou a terceirizar uma série de serviços, e passou a cobrar uma eficiência no retorno do investimento. O investimento em cultura não poderia mais ser feito a custos perdidos; aquilo deveria ter um retorno prático de auto-sustentação da instituição, inclusive de suas tarefas futuras, o que para um país para o Brasil é uma coisa extremamente problemática na medida em que o próprio Estado não se auto-sustenta. E os recursos que foram aportados para a preservação cinematográfica sempre foram muito pequenos face aos recursos que são necessários pela própria natureza da conservação, da preservação audiovisual de uma maneira geral. Esse debate começou a ser revisto nos anos 90. Começou-se a se discutir se era tão válido assim do ponto de vista cultural, ou seja, do ponto de vista do conhecimento, você fazer releituras do acervo que na verdade estavam condicionadas por elementos externos às próprias obras. Era o fato de um quadro do Van Gogh ter sido vendido por um milhão de dólares que chamava a atenção. Não era a qualidade intrínseca da obra nem era a inserção dessa obra dentro de uma cadeia histórica. Então, qual é a compreensão que o público podia ter daquilo? O público ia lá, via que valia um milhão de dólares, não sabia por que valia um milhão de dólares, e muito menos ele descobria o que significava aquela obra na concepção do artista, no movimento em que ela se inseriu na história da arte. Ou seja, você começou a reavaliar se essa estratégia, que é uma estratégia quase suicida de auto-sustentação, era tão válida assim do ponto de vista social. Qual é o retorno que você está dando para essa sociedade, se na verdade você está procurando apenas sobreviver financeiramente? Os museus foram inseridos dentro do mercado de entretenimento. Da mesma maneira, as cinematecas começaram a produzir mostras dos cineastas mais importantes e começaram a fazer circular essas mostras. Isso é interessante, é até importante em grande medida, mas e o resto? Porque na verdade você só fazia isso com os cineastas ditos importantes, você não circulava mostras temáticas e você Não circulava mais o resto do acervo, que é a maior parte. Ou seja, você estava tirando de circulação um conjunto de obras que poderia até não ser importante do ponto de vista artístico strictu sensu, mas que do ponto de vista cultural era fundamental. Até porque a compreensão na área cinematográfica é muito mais lenta, porque a produção é vastíssima, mesmo num país como o Brasil. Então você precisa ter um contato muito grande com essas obras durante um certo tempo para poder efetivamente digeri-las, contextualizá-las, defini-las de alguma maneira. A o se abrir mão desse tipo de difusão e concentrar a difusão em mostras biográficas, você estava criando um tipo de situação em que inexistia uma política cultural ou era uma política cultural monolítica, você acabava desinformando, de uma maneira geral, o seu público, porque mesmo para compreender esse ou aquele cineasta é preciso ter o "em torno". Então, começou a se rever isso, começou a se discutir a validade dessa proposta, ainda que a premência da situação financeira seja grande, e começou-se a se perguntar se não haveriam alternativas. Essas alternativas passam por uma questão extremamente delicada. O modelo que se está tentando implementar mais recentemente é de que uma ou duas grandes corporações, grandes empresas, adotem a instituição, mas adotem a instituição dando liberdade para que ela efetivamente gerencie o seu acervo, as suas políticas de preservação, de difusão, baseado em critérios internos, baseado no que ela acha que é a melhor forma de evidenciar esse conhecimento, e não na necessidade publicitária de merchandising que essas empresas têm. Ou seja, é uma necessidade de você explicar e convencer os dirigentes dessas empresas de que o ganho cultural, e aí é o ganho cultural, no sentido próprio da palavra, ou seja, o ganho em desenvolvimento humano e social que você possa ter a partir de uma coisa dessa natureza é muito maior do que o ganho eventual e momentâneo que ela possa ter com um tipo de mostra ou exposição que tenha uma enorme repercussão na imprensa, mas que daqui a seis meses não signifique mais nada. E efetivamente, você para trabalhar a história, trabalhar o passado de uma maneira rica, você tem que trabalhar todo o seu acervo de alguma maneira, encontrar formas de evidenciar quais são as relações, quais são as conexões que aquele conjunto de obras que estão sob a sua guarda têm entre si e com a história mais geral. Ou seja, significa um grande trabalho de pesquisa interna sobre o valor, o alcance e o conhecimento que aquele acervo posas gerar. Isso efetivamente necessita de um suporte externo, um suporte não-interessado. Agora, esse suporte financeiro não pode vir baseado nessa idéia de um museu dinâmico mas que na verdade é um museu shopping center. E, na verdade, ao longo dos anos 80, em países mais pobres, como o Brasil, que não tinham a capacidade de ficar construindo museus, a gente saiu criando centro cultural, que era uma espécie de paliativo, porque o centro cultural a princípio não tem acervo, ele se dedica a difundir acervos alheiros, mas o fazia de uma maneira bastante problemática, porque adotava um pouco essa estratégia daquilo que podia ter uma repercussão pública imediata, ou seja, só apostava nos grandes nomes. Raramente prestava atenção ao fato de que você tem na verdade hoje uma multiplicidade de manifestações e um acervo geral histórico acumulado que é extraordinário, e que é muito mal conhecido e muito mal entendido, e que não tem ainda por parte do público o interesse que seria necessário. Porque as pessoas só se mobilizam a partir dessa repercussão, elas não se mobilizam mais a partir de uma necessidade de conhecimento balizada pelo que ela está vivenciando, pelas lacunas pessoais, etc. Há uma ou duas gerações que não souberam valorizar o desconhecimento de determinados assuntos como sendo uma necessidade. Algo que inclusive as corporações começarem a acordar, verificando que a eficiência do empregado está numa relação direta da sua cultura pessoal, e cultura ampla, não é o conhecimento técnico especializado que ela tenha para fazer o trabalho cotidiano. Porque inclusive essas soluções do trabalho cotidiano inclusive dependem de uma capacidade de invenção, de imaginação, etc. E que ela só vai ganhar tendo contato com o que lhe é externo. Esse entendimento também está sendo obtido mais recentemente, inclusive da parte das grandes empresas. Ou seja, o investimento delas em cultura não pode ser um investimento imediato. Tem que ser um investimento a longo prazo porque elas estão melhorando a qualidade de vida da população de uma maneira geral. E melhorando essa qualidade de vida da população, ela está melhorando o desenvolvimento sócio-econômico-educacional do país, o que significa que elas mais na frente só tendem a ganhar com isso, porque a qualidade do empregado que ela vai ter é muito melhor. Não é mera caridade uma grande empresa investir nisso. Ao contrário, é de uma enorme consciência sobre o que significa o processo econômico hoje, o mercado hoje, o que significa qualificação de mão-de-obra hoje. Uma empresa moderna só pode entender o seu futuro se ela compreender como funcionam esses mecanismos. Se não, ela está fadada a em algum momento a ser ultrapassada pelas outras, porque o corpo de funcionários dela vai envelhecer com ela. Ou seja, a tal da renovação, a busca do novo, passa na verdade por um processo relativamente organizado, por um processo que incorpora todas as instituições da área da cultura, um processo que incorpora inclusive as cinematecas, porque as cinematecas têm nesse momento histórico um papel privilegiado porque lidam com todas as interfaces do audiovisual, desde o mais antigo, a coisa da película, até o mais moderno, que é o digital. Então, a cinemateca se coloca como um parceiro privilegiado para realizar um trabalho de longo alcance, de amplo alcance, porque uma cópia pode viajar para vários cantos do país, ou seja, ela não está presa ao espaço da cinemateca. Esse é um aspecto importantíssimo nesse tipo de discussão, e que tem ainda um caráter múltiplo. Enquanto que um quadro viaja, mas viaja só ele sozinho, um filme pode ter cinqüenta cópias, e aí você pode difundir isso nacionalmente. O que num país como um Brasil, pelas últimas experiência que a gente vêm conhecendo, é fundamental. O filme da Laís Bodanski e do Luís Bolognesi (Cine Mambembe – O Cinema Descobre o Brasil), demonstra essa impossibilidade de uma série de populações do interior, ou até de periferias das grandes cidades, de ter acesso a isso. Ela não tem acesso a isso via televisão, que é o meio que está mais próximo delas, e dificilmente vão ter acesso a isso via computador, pelo menos num momento mais próximo da gente, e o que poderia ser feito, para as cinematecas atuarem dentro desse processo, revelando um pouco desse passado inclusive muito recente, porque desaparece muito rápido das telas, não é feito porque ainda não se descobriu o potencial que uma cinemateca tem de interferir nesse processo para mostrar um aspecto que eu acho fundamental, que essa idéia do museu-centro cultural supostamente dinâmico, calcado no imediatismo, é um modelo furado, porque é um modelo que não contribui do ponto de vista social, político e econômico, não contribui para um desenvolvimento maior. E cultura é na verdade não só informação, cultura é transformação, cultura é conhecimento. Saber que existe tal ou tal obra, saber que aconteceu tal ou tal coisa em si mesmo não representa nada. Discutir aquilo e gerar conhecimento a partir daquilo é que é transformar. Porque inclusive a tão propalada formação do cidadão crítico na verdade é uma falácia, uma quimera, porque hoje na verdade você tem um caminho de mão única. Eles recebem a informação, recebem as novidades, incorporam mas não fazem nada. É estéril, boa parte da esterilidade da cultura brasileira hoje vem das conseqüências desse modelo. Então, a cinemateca na sua área específica, que é o audiovisual, tem um papel fundamental de contribuição para esse processo. E no caso específico da Cinemateca do MAM, que vive como instituição privada, ou seja, que tem a necessidade enorme de recursos externos, ela já se viu confrontada com essas duas realidades de num determinado momento se pautar por aquilo que o público gostaria de ver – o que é um erro – e num outro memento, por uma tentativa de criar ali um espaço mítico que se vendesse por si próprio e que traria uma informação que na verdade não existia. Você vai ver os grandes clássicos do cinema, mas que grandes clássicos são esses? Foram clássicos numa determinada época, será que eles continuam? E é aquele negócio: se eles continuam, quem está discutindo isso e a partir de que premissas? Em relação ao cinema brasileiro, a Cinemateca foi uma caixa de ressonância enorme há 25 anos atrás, e hoje isso se perdeu completamente. O meio cinematográfico encontrou outros espaços, outros caminhos, para se poder discutir o mundo. Mas esses caminhos ainda são muito poucos, muito restritos. E aquela coisa, você ficar preso a um lançamento, a uma pré-estréia ou a um único debate é você dar uma dimensão muito pequena à sua obra para um país que é muito grande. Então os canais de difusão têm que ser ampliados, e nisso tem que se incorporar a cinemateca também. É preciso que o meio cinematográfico preste atenção a isso. Porque está negligenciando um espaço que pode e deve ser aproveitado, que é o espaço que inclusive vai retrabalhar a obra desses realizadores não apenas num determinado momento, mas várias e vezes ao longo desse momento. A cinemateca inclusive vai chegar num determinado ponto dessa história em que vai ser o único depositário. Então é um espaço q eu tem que ser aproveitado. Enfim, esse é um debate muito importante, talvez até crucial. O caminho que a instituição tem que tomar, premida por um lado pela sobrevivência econômica e por outro por seu papel mesmo de transformador social, e que nesse momento ainda não tem uma definição clara. Num país como o Brasil o Estado tende a recuar na sua função de promotor de cultura, o que ;é um erro. O país ainda não é um país desenvolvido, nem tem uma iniciativa privada suficientemente forte e esclarecida a ponto de sustentar por si só. Por outro lado, independentemente do estado, as poucas iniciativas que surgiram na área privada lidam com uma realidade que é absolutamente nefasta, que é a realidade do mercado. O mercado não só esmaga como alija, que é essa coisa de estar à margem. As iniciativas privadas quase sempre caem numa determinada margem, o mercado cinematográfico em que os filmes brasileiros se inserem hoje é um mercado marginal. Eles raramente chegam ao mercado propriamente dito, e quando chegam ficam uma, duas semanas no máximo, sem direito a um retorno. Na televisão os filmes brasileiros não passam regularmente, ao menos não na televisão aberta. Na televisão fechada, eles foram de uma certa maneira colocados num gueto, um gueto importante, mas ainda assim um gueto, que é o Canal Brasil. E esses circuitos não têm perspectiva de ampliação. Muito pelo contrário, eles podem sofrer uma forte retração. Essa é uma discussão complexa, complicada, politicamente explosiva até, mas fundamental, porque significa a própria sobrevivência e o encaminhamento correto que se dá a esse trabalho, porque o trabalho cultural tem uma finalidade muito definida nesse panorama de desenvolvimento de uma determinada sociedade.

Depoimento tirado no dia 22 de julho de 2000 por Ruy Gardnier