Entrevista
com Henri Langlois
por Éric Rohmer
e Michel Mardore para os Cahiers du Cinéma
A entrevista que Henri Langlois concedeu
aos Cahiers no início dos anos 60, e aqui reproduzida, é
hoje considerada histórica. Depois de 30 anos de atividades incessantes
à frente da Cinémathèque Française, eis aí
o balanço provisório desta trajetória: nesse período,
Langlois não foi somente o fundador e o incansável diretor
da Cinemateca (falava-se em Cinemateca do Langlois); foi ele quem iniciou,
nos anos 30, todo movimento de criação das cinematecas que
culminou no estabelecimento dos principais arquivos de filmes do mundo,
influenciando as atividades desde o Japão até aqui no Brasil;
foi a ele talvez que mais diretamente se filiou uma geração
de cineastas, a nouvelle vague; foi ele enfim – e isto é
o que mais nos interessa aqui – quem melhor soube definir todas as funções
de uma cinemateca, como se pode ver em suas palavras quase nunca apaziguadoras.
Então, por que não publicar aqui uma versão traduzida
(devidamente editada, afinal são 25 páginas de conversa)
dessa entrevista? É essa a nossa maneira de prestar homenagem a
Cinemateca do MAM – uma instituição tão cara entre
nós da Contracampo – nesses seus 45 anos, e de voltar a um debate
esquecido, o da importância dos arquivos de filmes na agitação
e formação cultural das pessoas. (Juliano Tosi)
Entrevista com Henri Langlois
por Éric Rohmer e Michel
Mardore
(publicada originalmente na
Cahiers du Cinéma, número 135, setembro de 1962)
Inútil apresentar Henri Langlois a
nossos leitores. Todos puderam apreciar, de perto ou de longe, alguns
mesmo cotidianamente, a dedicação assídua com que
ele se desdobra na salvaguarda do patrimônio cinematográfico.
O que não deixa de surpreender é vê-lo não
menos preocupado em garantir o futuro do cinema do que em preservar seu
passado.
Nada mais que natural. Enquanto se acumulam
os anos que nos separam das experiências dos irmãos Lumière,
cada um pode constatar que tanto o gosto pelo antigo quanto o pelo novo
são cada vez mais fato do mesmo público, o das cinematecas,
dos cineclubes, das salas alternativas, dito em outras palavras, do grupo
de cinéfilos que não pára de crescer. São
os cinéfilos, e só eles, que, apesar de sua jovem idade,
suas posições, seus esnobismos, tem a tarefa de pronunciar
esse "julgamento da posteridade" diante do qual não há,
por assim dizer, ponto de apelação. Nós já
repetimos várias vezes aqui, que não existe arte do presente
e que se os filmes, seu tempo de "exploração"
terminado, retornassem à suas caixas de ferro claro, voltassem
à "fonte", os Cahiers não teriam mais razão
de ser, uma vez que nossos vereditos são apostas contínuas
sobre o futuro. Logo, é preciso que haja um futuro, ou seja, que
o passado não morra.
Alguns espíritos tímidos andaram
emitindo a opinião de que a atual evolução do cinema
arriscava de ser freada com a invasão de nossas telas pelas obras-primas
do passado, como se, à imagem da vida, somente a retirada dos velhos
pudesse assegurar a carreira dos jovens. Há aí um sofisma.
Nós diríamos, ao contrário, que as presenças
dos antigos é a garantia mesma do progresso dos modernos. Nós
vivemos em uma época de cultura e não podemos nos permitir
de sermos iconoclastas, como o foram, digamos, as épocas passadas.
Nossa arte, em todos os terrenos, é uma arte de referência
às formas de outros tempos. Se Bach ou Mozart desaparecessem –
eu ouço suas obras e tenho a recordação delas – o
desejo nos tomaria, a necessidade seria de refazer a trajetória
de Bach ou Mozart, enquanto que suas presenças no concerto, no
rádio ou na loja de discos nos autoriza e conduz a tentar outra
coisa. O mesmo para a pintura e a arquitetura. O vandalismo é tolo
porque é retrógrado e encoraja o pastiche, o plágio
(em termos de cinema: o remake). Se nossa época conheceu
uma aceleração da história, isso se deu em parte
porque nunca antes os instrumentos de investigação e de
conservação do passado foram tão precisos e abundantes.
O cinema – e é esta a nossa angústia
– ainda está numa época bárbara, como as em que os
afrescos mais antigos das igrejas eram substituídos por rabiscos
num pedaço de pano, sobreposto ao trabalho anterior. Enquanto se
empilham os livros e discos, que se multiplicam as exposições,
possíveis graças a restaurações quase miraculosas,
o repertório da tela diminui. Nós, os velhos dos Cahiers,
nós saboreamos nossa sorte, devida à desordem do pré-guerra,
de termos adquirido bem rápido uma bagagem cinematográfica
de um volume apreciável. Mas os que têm hoje vinte anos foram
infinitamente menos favorecidos; filmes ainda frescos em nossa memória
– digamos Rio Vermelho ou Sob o Signo de Capricórnio,
mas eles são uma legião – são para eles maravilhas
tão inacessíveis quanto o Colosso de Rhodes ou o Templo
de Éfeso. Como a substituição da geração
atual de historiadores do cinema – todos qüinquagenários –
poderá se operar dessa maneira? Uma das lacunas mais graves que
comporta nossa revista, ligada, como nós sabemos, à "política
dos autores", são os ensaios sobre um cineasta. Como estudar
a obra de um diretor quando se conhece dela apenas um quarto, ou menos
que isso? Enfim, em nome de quê o amador de cinema se sente mais
prejudicado do que o amador da pintura, da música ou da poesia?
Se os motivos estão nos obstáculos técnicos, financeiros
ou políticos, nós tentamos, antes de tudo, conhecê-los
bem e informar os leitores, conscientes de nossos deveres, direitos e
poderes de jornalistas. Como salvar os filmes? E, uma vez salvos, como
difundi-los entre um público maior? É por essa dupla questão
que iniciamos nossa conversa com o diretor da Cinémathèque
Française. – E.R.
* * *
Para se poder mostrar uma obra antiga, primeiro
é preciso que ela exista.
Ou seja, é preciso tê-la conservado.
Para podê-la conservar, primeiro é
preciso tê-la colecionado.
O vandalismo consiste em esquecer disto,
e a tarefa primordial para uma cinemateca está na sua coleção.
Quer dizer, na pesquisa e na tomada de responsabilidade sobre filmes ainda
não salvaguardados.
O vandalismo consiste em se satisfazer com
pouco, em dormir bem quando se sabe que filmes estão sendo destruídos,
ou que estão desaparecendo, em pretender que o trabalho de coleção
de filmes antigos está praticamente encerrado. Esse é um
doce gracejo.
Quando não subsistem mais que dez,
cem ou mil filmes de um total que era de dez mil, eu penso que é
um escândalo e que nada está salvo, que a cinemateca que
estivesse satisfeita com essa situação contribuiria ao vandalismo
e seria mais que qualquer outro responsável pelo desaparecimento
de filmes, pois, por sua própria existência, ela apazigua
as consciências e constitui um álibi.
Que me importa que Nosferatu, O
Último dos Homens, Tartufo, Fausto, Aurora
e Tabu estejam salvos se restam a salvar Der Brennende Acker
e Der Januskopf, Phantom e Expulsion, Os Quatro
Diabos e City Girl. É isso que deve contar. É
essa minha obsessão.
Se as cinematecas chegam ao ponto de negligenciar
o trabalho de coleção do patrimônio em vias de desaparecimento
em proveito de outras atividades, afirmando para se justificar que o trabalho
de coleção está encerrado e que tudo que podia ter
sido tentado nesse terreno foi feito, eu acredito que está mais
do que na hora de criar um escândalo e de citar os títulos,
a longa enumeração de todos os filmes que não se
sabe mais onde estão, que só vivem nas recordações
de algumas pessoas e que ainda estão em tempo de serem procurados,
encontrados, conservados.
O que você chama de "conservar"?
É ter a cópia ou poder tirar novas cópias?
Seria simples se o suficiente fosse ter,
ou mesmo simplesmente estar autorizado a fazer novas cópias.
O problema é que nós não
temos idéia do que aconteceu com a maior parte dos filmes.
O problema é antes de tudo determinar
quem detém e onde se encontram os filmes, em que locais, em que
país, existe ainda uma possibilidade de os conseguir.
Em seguida, é preciso convencer os
que possuem a cópia de confiarem em você, confessar que eles
é que são os donos da cópia, levá-los a confiar
em você, prometer-lhes segredo, para assim poder cuidar, assegurar
a vida dos filmes. Enfim, poder vê-los, saber que eles têm
valor, finalmente estar autorizado em fazer novas cópias e projetá-los.
O animador de uma cinemateca é uma
espécie de encantador de serpentes? Um flautista de Hamelin. É
muito duro.
E quando eu penso nos filmes, eu não
penso somente nas cópias, mas no negativo original.
Pois só a sobrevida do negativo original
pode garantir a sobrevida, em toda sua beleza original, da obra de arte
cinematográfica.
O objetivo mais difícil e o mais essencial
é garantir a sobrevida o máximo de tempo possível
do negativo original, obter o poder de se encarregar dele.
Resumindo assim o problema: qual é
o estado atual do arquivo de negativos em todo o mundo? Existem negativos
destruídos? Ou ainda podemos guardar a esperança de tirar
cópias do negativo de qual filme for?
De qual filme for? Com certeza não.
Milhares de filmes já tinham desaparecido
antes da criação, entre 1935 e 1936, das primeiras cinematecas
dedicadas a conservação da arte cinematográfica:
o British Film Institute, o Museum of Modern Art Film Libray, a Cinémathèque
Française e a Cinemateca da Escola de Cinema de Moscou (VGIK).
Além do mais, milhares de negativos
desapareceram por todo lugar no mundo sem que ninguém tenha realmente
tentado cuidar da sua sobrevida, e que poderiam ter sido conservados se
houvesse uma verdadeira preocupação.
Na verdade, quando as primeiras cinematecas
foram fundadas, havia ainda quase tudo: uma prospeção pelo
mundo todo teria permitido reencontrar e salvar tudo.
O que eu poderia fazer se, em 1934, as pessoas
tivessem levado em consideração a Cinémathèque
Française, na época de sua criação, se tivessem
lhe dado os meios que eu só pude dispor dez anos mais tarde, quando
já tinha salvado, graças à Associação,
cinqüenta mil filmes?
Atualmente, a Cinémathèque
Française consegue cuidar de várias dezenas de milhares
de negativos originais.
Eu não tenho a impressão que
existam hoje tantas cinematecas quanto deveria haver, e certamente menos
ainda nos países onde a indústria cinematográfica
não é uma industria do Estado.
Mas esses resultados me dão ainda
mais coragem e liberdade para colocar o problema de maneira violenta.
Afirmando que esse resultado não é nada, que juntando tudo
que está nas mãos das outras cinematecas, isso ainda não
é nada, que o conjunto de cinematecas do mundo inteiro não
conseguiu ainda proteger, reunir, salvaguardar, a tomar sob sua responsabilidade
a décima parte das obras cinematográficas dignas desse nome.
E a cada ano a situação se
torna mais trágica, pois nós estamos passando por uma corrida
contra o relógio em que o que está em jogo é a morte
de filmes abandonados, perdidos ou presos por pessoas que negligenciam
no cuidado de sua sobrevida.
Essa é a única, a verdadeira
preocupação, o único grande problema das cinematecas
dignas desse nome, conscientes de sua razão de ser.
Vergonha para aqueles que se escondem por
detrás dos princípios de escolha e de seleção
para se esquivar dessa tarefa, que se escondem por detrás de uma
falsa cultura para mascarar a cumplicidade de sua indiferença,
de sua preguiça, ambições sociais, de sua sinistra
satisfação de si mesmo.
Em 1934, um jovem de vinte anos podia ter
conhecido e visto tudo, uma vez que era suficiente ter freqüentado
os cinemas de bairro durante sua infância e adolescência;
em seguida, esse homem pode ver os principais filmes filmes produzidos
no momento.
Qual é no então o jovem que
pode atualmente dispor de uma visão semelhante? Qual é a
cinemateca que lhe dá essa possibilidade? Nenhuma, nem mesmo a
Cinémathèque Française, nem todas as cinematecas
reunidas. E no entanto, eu continuo acreditando que com um pouco de vontade
e energia, bastante trabalho, um pouco de compreensão e a ajuda
da opinião pública, ainda é possível procurar,
encontrar, salvar.
Em sua coleção de milhares
de filmes, são muitos os negativos? Há como obter muitos
filmes novos? Em que medida uma companhia pode destruir o que possui?
O problema da coleção de filmes
é complexo, pois o cinema é uma indústria e o negativo
tem um valor considerável e inalienável.
Cada caso é um caso. Tudo é
uma questão de confiança, de estima mútua entre o
produtor e o responsável pela cinemateca. Existe nessa relação
uma linha tênue que pode se romper por quase nada, um passo em falso,
uma proposta infeliz. Mas o resultado está aí, e se os Poderes
jamais sonharam em proibir a destruição de negativos montados,
eu nunca conheci produtores que destruíram de bom coração
uma obra, a não ser por uma necessidade imperativa; a maior parte
das destruições são fortuitas, conseqüência
de falências, do fim de uma produtora, do esquecimento; na verdade,
o filme, se não for constantemente fiscalizado, pode se perder.
A maior parte das perdas de filmes nos Estados Unidos foi de morte física,
acidental.
Na verdade, o drama é que cada
vez que um movimento de opinião se desenvolve a favor da conservação
das obras cinematográficas, ele nunca é desinteressado.
Há dois anos, eu vi um professor que, em nome das conservação
dos filmes, se agitava e se preocupava com a destruição
de cópias dubladas de filmes estrangeiros em seu país, mas
que se recusava a me seguir quando eu tentava fazê-lo observar que
a conservação dessas obras só poderia ser feita a
partir do original. Ele só se interessava na sobrevida das cópias
que lhe eram úteis, e indiferente ao resto.
O maior obstáculo ao trabalho de conservação
das cinematecas é de ordem psicológica.
Ele está no medo da perda da posse
no roubo.
As cinematecas são confiáveis?
Por que você me faz essa pergunta?
Acontece que as quatro cinematecas que foram
fundadas por volta de 1935-1936 surgiram numa época em que a opinião
era de que os filmes mudos, à parte os de Chaplin, não tinham
nenhum valor. Se interessar então pela sobrevida da arte muda exigia
como que uma crença.. Sobre essa opinião e essa crença,
é que se estabeleceu o modus vivendi que permitiu o sucesso
da Cinémathèque Française.
Nós éramos uma espécie
de oásis onde o cinema não era mais uma mercadoria, mas
uma arte. Um lugar de alta estima do cinema tido por um valor puramente
espiritual, e no seio do qual comungava toda uma profissão.
Pois nessa profissão todos têm
orgulho do que fazem e, não importa o que digam, eu não
conheço nenhum produtor que seja cínico em relação
a seus filmes.
Assim, dentro da Associação
que nós criamos cada um se sentia feliz por contribuir com a arte
pura.
Toda cinemateca ligada a esse princípio,
a essa ética, a essa crença, vai inspirar a estima e o respeito
e, dessa forma, vai se desenvolver.
Foi por ter sempre considerado nosso trabalho
como um ato gratuito e totalmente desinteressado nos seus fins, que a
Cinémathèque Française viu tantos filmes lhe serem
confiados.
Nós não tínhamos um
centavo, mas assim mesmo conseguimos salvar tudo, somente com nossa autoridade
moral.
Porque os subsídios foram posteriores,
eles não vieram antes do sucesso da salvaguarda do patrimônio
cinematográfico que havia então na França. O trabalho
de salvaguarda foi bem sucedido, apesar da ocupação, graças
ao respeito que um trabalho de coleção totalmente desinteressado
impunha nas pessoas.
Se antes da guerra nós tivéssemos
um pouco de condições materiais, filmes hoje desaparecidos
ainda existiriam: Der Brennende Acker de Murnau, Scherben
de Lupu Pick, Johan de Stiller, Thérèse Raquin
de J. Feyder, Sperduit nel Buio de Martoglio. Faltava dinheiro.
Mas com um pouco de sabedoria e engenhosidade, O Anjo Azul, A
Caixa de Pandora, Nosferatu, Le Vieux Manoir, Visages
d’Enfant (N.E. de Jacques Feyder, 1925) puderam sobreviver.
Ora, outras cinematecas já dispunham
de créditos importantes desde antes da guerra e poderiam ter salvado
muito coisa: por que eles não o fizeram? Porque eles ainda pensavam
em escolher, enquanto era preciso pensar em se conservar tudo.
Nós também, na época,
pensávamos que nossa tarefa era a de colecionar os que nos parecessem
ser os melhores filmes, como numa coleção de obras de arte.
Essa é uma posição monstruosa,
em razão do contexto que faz com que um quadro de Renoir exista,
mesmo se ele não está nas mãos da Tate Gallery, do
Frick Museum ou exposto na Jeu de Paume. Enquanto que um Méliès
ou um Griffith, quando não estão nas mãos de uma
cinemateca, têm poucas chances de sobreviver.
Além disso, quanto mais as cinematecas
avançam em seu trabalho, mas elas desenvolvem seus conhecimentos,
mais recuam as fronteiras dessa terra ignota que é o passado
do cinema, mais nós nos damos conta em que medida o tempo modificava
as noções anteriores.
A cada instante nós tomamos consciência
de nossa ignorância, e com ela de nossas responsabilidades.
Foi por isso que nós percebemos logo
que era preciso tentar conservar tudo, salvar todos os filmes, mantê-los,
renunciando o papel de amador de clássicos.
Graças a essa tomada de consciência,
nós pudemos evitar na França o desastre que teria sido o
desaparecimento para sempre de uma boa parte do patrimônio cinematográfico.
Em 1937, Nana de Jean Renoir não
tinha nenhum prestígio, era inimaginável na época
que fosse um bom filme. Nós então projetamos Nana
e o filme de repente apareceu como ele é, ou seja, uma obra de
um porte infinitamente grande.
É, por exemplo, o mesmo julgamento
definitivo, categórico, absoluto, míope e conforme a opinião
arraigada que se tinha sobre esses filmes da época, e que dizia
que Boudu Salvo das Águas era um filme ruim de Renoir.
Essa reputação de indignidade
era tamanha que mesmo tendo conseguido salvar uma cópia de Boudu
nunca me viria à cabeça colocar o filme na programação.
Vocês imaginam minha surpresa quando eu descobri a obra-prima que
é Boudu, como vocês mesmo notaram nas exibições
mais recentes.
Nós vivemos então um período
de descobertas.
Isso faz da gente mais humilde, proíbe
os preconceitos.
Mas vocês acham que as pessoas aprenderam
alguma coisa?
A moral da história ainda não
foi percebida.
Há algumas semanas, o comitê
de conservação de filmes de uma cinemateca importante e
séria discutia o mais friamente possível, durante 45 minutos,
se era conveniente ou não salvaguardar O Homem de Aran.
Que tempo perdido!
Você aceita todos os filmes que
lhe oferecem?
Tudo, absolutamente tudo.
Se a Cinémathèque Française
fizesse uma seleção, onde estaríamos?
Como a Biblioteca Nacional, nós aceitamos
tudo que nos é oferecido.
Nós não somos Deus, não
temos o direito de acreditar em nossa infalibilidade, e, além do
mais, segundo qual critério?
Há a arte e há o documento.
Há filmes ruins que continuam ruins,
mas que, com o tempo, podem se tornar extraordinários. Com que
direito rejeitar, por exemplo, La Caserne en Folie? Para mim, é
uma coisa fabulosa, um monumento. Uma espécie de monstro sagrado
que resume em si tudo o que foi um certo cinema; mais o tempo passará,
mais ele será formidável.
E há os filmes que parecem não
tem valor e que o tem, pois o tempo lhes fornece um estilo invisível
hoje, outros que parecem ridículos e que, em alguns anos, irão
reencontrar sua magia.
Com o tempo, todos os valores se modificam:
o que parece de bom gosto se torna entediante, o que parece extravagância
se torna harmonia.
Pense nos filmes desconsiderados pela crítica
e pelos historiadores e que a gente descobre hoje que se trata de uma
das grandes obras-primas.
Como podemos nos permitir de julgar? Só
o tempo pode decidir.
E além do mais, porque recusar algo
que não nos custa nada?
Os filmes, vocês os recebem ou eles
são comprados?
A princípio, a Cinémathèque
não compra filmes. Todo nosso sucesso está numa relação
amigável que permitiu os resultados de que nos orgulhamos. Tudo
está baseado na confiança.
Sob quais formas os filmes são
preservados? Negativos? Positivos? Contratipos?
Sob toda forma. Sob a forma que nos foi possível
salvar.
Se não existe mais o negativo mas
ainda há uma cópia, o filme está salvo.
Mais vale uma cópia envelhecida do
que nada.
Mas há pessoas que não compreendem
isso e nos reprovam o estado dos filmes que aceitamos, mas o que eles
querem que façamos se não há nada mais do que aquilo?
Não vem a cabeça de ninguém
reclamar que a Vênus de Milo não tenha mais braços,
pois todos percebemos o milagre que é uma obra dessas estar nas
salas do Louvre.
Ninguém percebe – porque o cinema
é um produto cotidiano – o milagre que foi a descoberta, em um
mercado de velharias, de uma cópia colorida do Palácio
das Mil e Uma Noites de Méliès, mesmo que faltem o começo
e o fim.
Nesse terreno, existe uma confusão
terrível, e as pessoas confundem as cinematecas com salas comerciais
e fazem um escândalo, sem nenhuma noção da realidade,
quando falta uma cena do filme.
Quando vocês recebem filmes recentes,
as cópias chegam em bom estado?
Em outros tempos, era bastante fácil
conseguir uma cópia usada em bom estado, cuja projeção
permitiria alguns anos mais tarde ter uma boa idéia do valor da
obra.
E ninguém nunca nos recusou, até
hoje, de fazer uma cópia de um filme novo, desde que se trata-se
somente de conservação.
Mas o que me interessa mais é o negativo
original, porque, no dia que for preciso transferir o filme para um novo
suporte, é melhor ter em mãos o material original do que
uma duplicata.
Qual é exatamente a data da morte
química de um filme?
Na época da fundação
da Cinémathèque Française me diziam: "Você
é louco! A vida de um filme não passa os cinqüenta
anos. Os negativos de Louis Lumière não vão mais
existir. Então, qual o sentido?"
Nós estávamos em 1935, agora
em 1962 e os negativos originais de Lumière continuam existindo.
Enquanto um filme existir, nós não
temos o direito de renunciar à sua conservação.
Destruir cópias antigas, em decomposição
mas ainda não completamente destruídas, é simplesmente
a prova de que não se compreende nada sobre a essência da
arte cinematográfica.
O pior inimigo são os preconceitos,
esse preconceitos que deixaram que tantos filmes fossem destruídos
em tantos países!
Foram necessários anos de esforços
para que se percebesse que uma cinemateca deve em primeiro lugar cuidar
da salvaguarda do cinema nacional. Dá para imaginar o desprezo
com que vários países tinham pela sua produção
local e isso continua. Mesmo nos Estados Unidos, o cinema americano é
com freqüência desconhecido e às vezes mesmo desprezado
em alguns meios, que assim imaginam estar dando uma prova seu espírito
crítico e de intelectualidade.
No momento, a situação dos
filmes antigos americanos é quase trágica. Está na
hora de falar isso, pois ainda há tempo de salvar o que há
em Hollywood.
Felizmente, eles acordaram in extremis.
É preciso salvar a arte americana
do século XX, que é a arte cinematográfica.
Mas o problema é o grande desprezo
e o desconhecimento pelo cinema nos Estados Unidos.
Por que Le Calvaire de Lena X e Forfaiture
(N.E. de Marcel L’Herbier, 1937) não foram copiados quando teria
sido tão fácil fazê-lo? Por que um único filme
mudo de John Ford existe no catálogo das cinematecas? Não
é uma monstruosidade pensar que, de sessenta filmes mudos de John
Ford, um único, só um, foi inventariado pelas cinematecas?
Mas outros filmes mudos existem ainda e podem ser salvos.
Mas para salvar o cinema americano, tem que
se amar o cinema americano, é preciso ter o gosto por esse imponderável,
esse frescor, essa vivacidade do milagre que é William Hart. É
preciso não ter vergonha de Cecil B. de Mille, saber amar Hollywood.
Tem que ser um pioneiro.
E o problema da difusão?
É o mais difícil, principalmente
porque ele parece o mais fácil.
A difusão da cultura cinematográfica
é uma arte, não deve ser uma profissão.
Uma arte tanto mais difícil de exercer
uma vez que a palavra se presta a um equívoco: qualquer pessoa
podendo exibir qualquer coisa, mesmo o pior, e sob qualquer finalidade.
Não basta somente ganhar a confiança, é preciso merecê-la.
Para mim, toda cinemateca que se serve da
cultura cinematográfica, em vez de servir a ela, corre o risco
de se perder.
Difundir é servir.
Por exemplo, em Nova York, numa homenagem
ao cinema francês, eu tentei surpreender e mostrar os aspectos desconhecidos
do cinema francês. É assim que se comportam em todos os museus
do mundo as pessoas que organizam exposições que permitem
descobrir essa ou aquela obra normalmente não lembrada.
Só que a preocupação
com o sucesso descartou ótimos filmes franceses, que hoje vocês
conhecem tão bem porque os "descobriram".
Uma única coisa interessava meu colega,
a certeza de ter um bom público, o que levava direto à exibição
de filmes arqui-conhecidos e de preferência falados.
A curiosidade, nós sabemos, é
uma característica de poucos. Vocês sabem quantos somos na
rua d’Ulm quando é exibido um filme desconhecido pela primeira
vez; mas como um organismo cultural, é para isso que existimos,
e é inimaginável pensar que um museu se recuse a expor uma
obra de grande qualidade sob o pretexto de que ela não faz público.
Nós não somos uma sala comercial.
Temos uma função de informação e pesquisa.
Nós devemos ter a coragem de mostrar as obras, para que vocês
possam julgá-las.
Independente da coleção, uma
cinemateca é um museu com uma sala de projeção; nesse
museu é preciso poder iniciar as massas, assim como poder dar a
satisfação as cem pessoas que se interessam passionalmente
pelo patrimônio cinematográfico.
É também um centro de irradiação
presente em todo lugar sob a forma de manifestações temporárias,
em todo lugar em que seja possível a expansão da cultura
cinematográfica.
Mas tudo isso, é um ideal.
O que me interessa, é que filmes novos
sejam feitos. É que o cinema vá para frente. Para mim, a
difusão de cultura pelas cinematecas consiste em criar o futuro,
pois uma cinemateca é o museu de uma arte viva, um museu que não
é somente do passado, mas do futuro. A vitória da Cinémathèque
é de ter tornado possível Os Incompreendidos, Nas Garras
do Vício, Paris nos Pertence, O Signo do Leão,
Acossado, assim como Le Rideau Cramoisi, Paris 1900,
de ter ajudado Resnais et Rouch, de antes ter contribuído em Milão
e Roma, entre 1938 e 1939, em seu início, às fontes do neo-realismo.
O erro de vocês da nouvelle vague
foi abandonar os jornais; vocês tinham que continuar produzindo
e escrevendo.
É complicado continuar a falar
dos outros quando você também dirige seus filmes.
Que escrúpulos! Delluc, L’Herbier,
Epstein nunca o tiveram. Se eles tivessem, estariam mortos. E o surrealistas,
se eles não tivessem cantado seus elogios mútuos nas próprias
revistas em que escreviam, se eles não tivesse feito todo o barulho
em torno de si mesmos, vocês acreditam que eles poderiam ter existido?
Se eu digo isso a vocês é porque
o futuro do cinema conta mais do que seu passado, que o problema da preparação
da cultura cinematográfica vai ser posto, mas de uma maneira diferente,
a partir do ensino nas escolas dos clássicos do cinema: pois no
dia em que uma criança puder reviver nas sala de aula a trajetória
do cinema, do nascimento com Lumière até os filmes de Kurosawa,
em que ele aprenderá a ver e que passará por uma formação
que lhe mostre a experiência que levava o público das feiras
a ver Zecca e o de hoje a assistir Buñuel, nesse dia, as cinematecas
deverão dar mais um passo a frente.
O drama de vocês da nouvelle vague
é de não ter sabido definir o grupo de vocês, de ter
perdido Bazin, perdido em Truffaut o "crítico da geração".
Era preciso ter a coragem de dizer: "Não, você não
faz parte do nosso grupo". Além do mais, entre 1915 e 1922,
a vanguarda francesa se resumia a três ou quatro diretores e ninguém
ria quando Abel Gance, ou G. Dullac, ou L. Delluc, dizia: "Eu sou
a vanguarda".
Era preciso impedir os jornalistas de misturar
os filmes e as pessoas, não ter medo de formar um "clã".
Isso não é tão fácil
de se definir.
Vocês acham? Vocês acham que
é difícil encontrar um denominador comum nos filmes de um
certo grupo, quando é evidente que há neles um retorno às
fontes, à inspiração direta, à supremacia
do olhar?
Quais são os critérios que
guiam a escolha da programação?
Eu não sigo nenhum critério.
Eu tenho ao mesmo tempo o respeito pela opinião pública
e o desrespeito pelo convencional.
Eu acho que, quando um filme não pode
ser exibido em outro local, é preciso que ele seja mostrado na
Cinémathèque Française, mas jamais me viria a idéia
de excluir um filme do programa simplesmente por causa do meu próprio
gosto. Eu não tenho, no entanto, nenhuma falsa vergonha de exibir
um filme que me agrada.
Eu só lamento uma coisa, é
de nem sempre ter os meios para tirar cópias de todos os filmes
que seria preciso programar.
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