Filmes
a descobrir, filmes a recuperar
De Vento em Popa,
de Carlos Manga
De Vento em Popa, Brasil, 1957
Oscarito
em De Vento em Popa de Carlos manga
Mesmo depois de Paulo
Emílio Salles Gomes, a idéia de que a chanchada é
um gênero de cinema americanizado, não "autenticamente"
brasileiro, ainda persiste (como se "autenticamente" ainda tivesse
algum significado verdadeiro, longe da mistificação). Ao
contrário, seja por uma incapacidade em copiar (uma má desculpa
do mesmo Paulo Emílio) ou por uma enorme criatividade em roubar
o estilo dos outros para achincalhá-lo, o cinema brasileiro mais
dinâmico é e sempre foi o parodístico, o de mais acidez,
o de maior poder antropofágico. Quando da saída de Miramar,
Júlio Bressane reclamou para si um certo espírito oswaldiano
que não teria sido transposto às telas nem por Joaquim Pedro
em O Homem do Pau Brasil nem por Zelito Vianna em Os Condenados:
entretanto o filme de Bressane é pouco ou nada oswaldiano, e o
filme de Joaquim Pedro permanece a melhor adaptação de Oswald
de Andrade. Mas nem O Homem do Pau Brasil poderia ser mais oswaldiano
do que os paródicos O Império do Desejo, de Carlos
Reichenbach; Carnaval Atlântida, de José Carlos Burle;
ou De Vento em Popa, de Carlos Manga, de que falaremos aqui. Esses
sim, verdadeiros filmes "de exportação" na acepção
oswaldiana, ruminando linguagem estrangeira e traduzindo em "coisas
nossas, muito nossas".
De Vento em Popa
se constrói desde o primeiro momento através do embate entre
cultura clássica, afetadamente européia, e a cultura popular.
Num florido jardim, ouve-se uma voz tediosa que treina canto lírico.
Quando a câmara entra na casa, vemos a família pedante construindo
planos para o filho: ele foi estudar nos Estados Unidos para ser o primeiro
cientista brasileiro e dar ao Brasil a bomba atômica. Ao chegar
ao Rio de navio, deverá casar-se com a moça que está
cantando. Corta. O plano seguinte mostra a bomba do filho, aliás,
Cyll Farney: uma estridente bateria que toca jazz e rock'n'roll criando
um som atômico. Ele largou a escola e volta ao Brasil para criar
uma casa noturna, e para isso contará com a ajuda de Oscarito e
Sônia Mamede, a dupla Maracangalha, entusiastas do samba e do chachado
que estão clandestinos no navio. Tentando a chance de se apresentar
no navio, a dupla prega uma peça em Madame Frufru, famosa cantora
lírica (interpretada por Zezé Macedo) aparentada da moça
que deverá casar com o mocinho e, ao invés de uma tediosa
apresentação de música "culta" (no ensaio
até o pianista, ao executar o começo de uma ária,
dorme no teclado), tocará um chachado de embalo.
Enrascados no fim
da viagem de navio, Oscarito, Sônia Mamede e Cyll Farney criam sociedade
para enganar o pai-mecenas: criarão a casa de shows com o dinheiro
destinado pelo próprio pai à bomba atômica. A partir
daí, De Vento em Popa é um veículo privilegiado
para Oscarito desempenhar sua arte: entrado no filme como garçom
desastrado, ele deve transformar-se no americano expert em energia
atômica, barbudo e culto. É mais uma forma que a chanchada
tem de se rir da "arte culta", da dita sapiência dos aristocratas..
Essa resposta é
sintomática do momento em que se vivia. Nos circuitos "cultos"
do Brasil dos anos 50, cinema era coisa de vagabundos; muito mais o cinema
brasileiro, então, mera escória mal-acabada dos filmes estrangeiros.
Nada mais normal, então, do que um cinema popular reagir a isso:
mostrá-la apenas em sua pose, em sua forma de ser fingidamente
educada e elegante, infeliz e sem jogo de cintura. Isso aparece claramente
na figura interpretada por Dóris Monteiro, a candidata a esposa
do cientista "do barulho": ela não gosta verdadeiramente
do que faz; é apenas adestrada para transformar-se numa bela idéia
do que a época achava que era uma "esposa cultivada".
Assim que ela descobrir que não é dessa forma que ela conquistará
o galã, ela logo logo mudará de repertório e o ganhará
com uma modinha jazzística que ele próprio, sem saber, acompanha
ao piano.
Mas um momento de
De Vento em Popa é particularmente hilário e destruidor.
Na noite de estréia da boate, por ocasião da ausência
do astro Melvis Prestes, Oscarito se veste de rei do rock'n'roll e, com
uma guitarra desajeitada, que ocupa toda o dobro da extensão de
seu tronco, dança enlouquecidamente e canta a canção
"Calypso Rock'n'roll" (a canção não tem
nome, mas como só essa expressão é repetida ao longo
da música, tratamos de assim nomeá-la), resposta imediata
brasileira à entrada do rock no cinema americano. A acidez da interpretação
de Oscarito alcança o riso profundo, o achincalhe da alta cultura
que o Brasil, por síndrome de analfabeto, sempre aprendeu a conservar
como a maior porque não a detém. O riso de De Vento em
Popa consegue um engajamento estético que jamais um filme do
cinema novo à exceção de Glauber Rocha e de
Nelson Pereira dos Santos conseguiu: a adequação
perfeita com seu público e a confirmação de que nós
podíamos fruir verdadeiramente nossa cultura porque nós
a criamos, e ela é bela. De Vento em Popa também
é belo.
Ruy Gardnier
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