Filmes
a descobrir, filmes a recuperar

Charada, de Stanley
Donen
Charade, EUA, 1963

Audrey
Hepburn e Cary Grant em Charada de Stanley Donen
Ok, não
posso deixar de admitir que o que primeiro me motivou a escrever sobre
esse filme foi o fato de ele reunir pela única vez os meus dois
atores roliudianos favoritos: Audrey Hepburn e Cary Grant. Mas também
porque, e é por isso que o artigo cabe na seção em
que está, o acho um filme subestimado. Parece-me que não
vem recebendo o tratamento merecido: absolutamente tudo o que li a respeito
o compara, em algum momento, a um filme de Hitchcock. Não que isso
não seja um elogio mas a longo prazo acaba se transformando em
estigma e mesmo preconceito, pois passamos a perceber Charada apenas
sob essa luz. E a comparação não é um dado
no filme, mas talvez até uma injustiça: há mais ali
do que apenas Hitch. O trailler de Charada o anuncia como
uma deliciosa mistura de comédia, romance e mistério. E
é bem por aí mesmo.
A intriga
se dá por conta do sumiço de 250.000 dólares. Regina
Lampert (Audrey Hepburn) está de férias e pensando em se
divorciar de seu misterioso marido, de quem, diz, não sabe muita
coisa, quando recebe a quase cômoda notícia de que está
morto. Fora assassinado. Ao chegar em casa a encontra completamente vazia
– seu marido havia, sem que ela soubesse, levado tudo a leilão
na véspera, e feito a enorme quantia de 250.000. A única
coisa que lhe resta é uma bolsa encontrada em companhia do morto
e que contém coisas sem valor como pasta de dentes, uma agenda
e uma carta selada. Desolada, ela vai para um hotel, por indicação
de Peter Joshua (Cary Grant), bonitão simpático que conheceu,
pensa ela, por acidente quando de suas férias. A partir daí,
de sua chegada ao hotel, Regina começa a ser perseguida por três
tipos estranhos, todos atrás do dinheiro que pensam estar em seu
poder; quase ao mesmo tempo ela recebe uma carta da Embaixada Americana
– o filme se passa em Paris – pedindo que se apresente lá à
hora do almoço. Mr. Bartholomew (Walter Matthau), um pretenso agente
da CIA, conta a Regina o motivo de toda a confusão: seu marido
e mais quatro companheiros de guerra haviam sido encarregados de entregar
250.000 dólares em um posto americano, mas decidiram passar a perna
no governo e enterrar o ouro, alegando terem sido roubados pelos nazistas.
Voltariam depois da guerra e dividiriam o ganho em partes iguais, mas
Voss, o marido de Regina, em um lampejo de esperteza (ou não) voltara
antes e se apropriara de toda a soma. Tendo conseguido viver incógnito
por durante vários anos, ele conseguiu até se casar, mas
finalmente descoberto, foi assassinado. A Embaixada solicitava a ajuda
da viúva para encontrar o dinheiro, pertencente, pois, ao governo
americano; os três esquisitos estavam atrás de sua parte
no roubo. A partir daí, mil peripécias se sucedem, entre
elas várias mudanças de nome por parte de Cary Grant, que
a cada minuto confessa ser uma outra pessoa diferente, e a aniquilação
um por um dos veteranos ladrões, até o verdadeiro desvendar-se
da trama: o dinheiro fora convertido em três selos, que estavam
justamente no envelope endereçado à Regina, na bolsa de
Voss; Bartholomew era na verdade Dyle, o quarto comparsa que se pensava
ter morrido na guerra, mas que voltara para se vingar e matar cada um
de seus velhos camaradas. E Cary Grant revela sua verdadeira identidade
no último minuto do filme: é Brian Cruikshank, da embaixada
americana – que consegue enfim recuperar seu dinheiro. O filme termina
com um pedido de casamento, e a hilária reação de
Regina, que diz querer ter muitos filhos, para lhes batizar com todos
os nomes do pai.
Bem ao
gosto de Hitchcock, podemos pensar em um primeiro momento. O fato de possuir
Cary Grant em um papel bem parecido com o que interpretara em alguns filmes
desse diretor pode ajudar na associação. Mas cai por terra
se lembrarmos que Grant desenvolvera uma persona, e era sempre
em torno dela que construía seus personagens. Costuma-se, em se
formando tal juízo apressado sobre Charada, esquecer algo
essencial: o diretor aqui é Stanley Donen. Que já havia
trabalhado com os dois atores em filmes como Cinderela em Paris
e The Grass is Greener. Filmes bem distintos um do outro tanto
quanto são distintos deste de que falamos, mas que possuem pelo
menos um ponto em comum: o toque de Donen. O senso de humor sagaz, os
cenários elegantes, as personagens cheias de classe e a um passo
do caricatural. E, embora a polícia francesa apareça um
tanto ridícula, como adorava Hitch, Cary Grant, um outro representante
da justiça, esbanja brilhantismo e charme.
Bom,
tendo passado por esta que é uma verdadeira onda de dificuldade,
espero, com êxito, há ainda duas ou três pequenas coisas
que gostaria de dizer sobre Charada:
1) Há
uma cena, logo no início de Charada, que, me parece, traduz
todo o filme. Regina Lampert, a personagem de Audrey Hepburn, está
sentada almoçando quando a música nos faz perceber que alguma
coisa está prestes a acontecer. Alguém, de quem só
podemos ver pedaço do braço e a mão, aponta uma arma
em direção à moça. O dedo aproxima-se do gatilho
à medida em que a melodia deixa claro cada vez mais o perigo iminente,
até que, gatilho apertado, um longo esguicho de água molha
todo o rosto de Regina, quase ao mesmo tempo em que podemos ver todo o
corpo de um menino, autor do "tiro", que logo se saberá,
trata-se do filho de uma amiga dela. É esse sentimento que pautará
todo o filme: nada é o que parece ser à primeira vista.
Nem a esposa, porque ela não conhecia o marido, nem Cary Grant
e suas milhares de identidades e nem mesmo os selos, que Regina chega
a dar para o filho de uma amiga, pensando não valerem coisa alguma
e que emergem como o objeto do desejo de todos no filme. O título
do filme, Charada, ele traduz tudo isso. Em inglês, Charade
diz, além do significado habitual que lhe damos, adivinha, também
truque, farsa. E é sobre isso que o filme é.
2) A
música. Henry Mancini, como sempre, fez um trabalho esplendoroso,
a trilha está em perfeita simbiose com a ação, e
nos momentos de maior tensão, forte ao mesmo tempo que econômica.
Mancini sempre soube como balancear as canções propriamente
ditas com o arrebatamento do jazz – mas um arrebatamento sempre raro,
sua marca registrada. E Charada é um belo exemplo disso,
de como a música cabe perfeitamente nos momentos de comédia,
como nos de suspense e romance.
3) E,
finalmente, sobre a parceria Hepburn/Grant, que, haviam tido a oportunidade
de trabalhar juntos pelo menos um par de vezes: o galã havia sido
convidado para ser o jornalista em A Princesa e o Plebeu, papel
que acabou ficando com Gregory Peck. Mais tarde, também declinou
de Sabrina e o chatinho Linus Larrabee ficou por conta de um Humphrey
Bogart não muito satisfeito (e que chegou a dizer, quando perguntado
sobre Audrey, que "ela é ok, desde que você não
se importe em refazer uma cena 20 vezes). Mas todo esse tempo de espera
acabou por valer a pena: o casal não podia estar melhor. Grant,
com 59 anos, está mais galante do que nunca e não tem problema
algum em seduzir Audrey, 25 anos mais jovem. Protagonizam cenas maravilhosas,
como a que em que Grant toma banho de terno ou aquela em que se conhecem:
Grant solta um cliché ("Não nos conhecemos de
algum lugar?) ao passo em que Audrey responde "Já conheço
gente demais. Só posso conhecer mais alguém se uma pessoa
da lista de conhecidos vier a morrer"(e seu marido de fato morre...),
seguida de Grant, que diz "Caso alguém vá para a lista
terminal, por favor, deixe-me saber", enquanto vira as costas para
ir embora. Ouve um grito, "Quitter!", algo como "Você
desiste fácil!". Grant então se volta para ela e assim
sua amizade começa. Do mesmo modo como se percebe por todo o desenrolar
de Charada, não se pode crer na primeira coisa que se escuta
ou na primeira coisa que se vê.
Aliás,
na cena do revólver, Donen confessou anos mais tarde, ter usado
um homem para a primeira vez em a mão que o carrega aparece, e
somente um menino quando este surge de corpo inteiro, de modo a confundir
o espectador ainda mais.
Juliana Fausto
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