Quem conspira sempre alcança


Regina Casé em Eu Tu Eles de Andrucha Waddington

A acolhida favorável de Eu Tu Eles pela imprensa não vem de hoje. Uma reportagem enorme, desproporcionada até, feita numa edição regional da revista Veja, causou um certo frisson: trataria-se mesmo de um grande cineasta, do começo de uma geração inédita no cinema brasileiro, aquela dos cineastas/publicitários, que deu Adrian Lyne e Ridley Scott nos EUA? As realizações anteriores de sua produtora, a Conspiração Filmes, não levavam a crer. A fama da produtora de copiar sistematicamente os videoclips estrangeiros – que não é sem razão – e o baixíssimo nível dramático das duas produções cinematográficas em longa-metragem anteriores da Conspiração (uma delas assinada Andrucha Waddington, o filme Gêmeas) não fazia imaginar vôos mais altos.

Em Cannes, mais polêmica. Enquanto Estorvo, filme do cineasta Ruy Guerra, tinha uma recepção fria e desgostosa por parte da imprensa internacional, Eu Te Eles parecia seduzir mais de um na mostra paralela Un Certain Regard. Na cobertura brasileira do festival, a tal guerra nova-geraçãoXcinema-novo assumiu ares patéticos quando a imprensa preferiu ficar jogando um filme contra o outro e apontando os erros estratégicos de lançamento do filme de Guerra em Cannes.

O certo é que, aos olhos brasileiros e depois de dois filmes vazios, há um certo mal-estar e uma grande má disposição com Eu Tu Eles. Como com Central do Brasil, é preciso pensar não só no que o filme é, mas igualmente naquilo que ele representa e representará para os setores conservadores da imprensa: solução para o cinema no Brasil, críticas e mais críticas aos artistas do cinema novo, etc.

Feitas todas as ressalvas, é preciso que se diga: Eu Tu Eles é um belo filme. Um mergulho num território estranho, numa terra estranha (não só a nós, mas igualmente ao cineasta), que é também o mergulho mais estranho ainda de um profissional de videoclip e publicidade – de uma profissão que hoje chafurda na busca de efeitos visuais e direção de arte "impercável" – no mundo da dramaturgia. Pois, mesmo que carregue um bocado nas cores para criar um retrato realista, é de dramaturgia e é de realidade que Eu Tu Eles nos fala.

Esquisita coincidência um artista publicitário nos falar de realidade. Pois realidade, segundo uma bela definição de Peirce, é aquilo que surpreende ao vir de fora; a realidade é como que um princípio absoluto de diferença, de diferenciação. E nada mais estranho que um profissional da publicidade, logo um artista do clichê (para o que tem de melhor e o que tem de pior), nos falar sobre realidade.

Eu Tu Eles narra a história de Darlene, uma bóia-fria que chega num árido vilarejo nordestino. Por uma ou outra peripécia do destino, ela terá que se abrigar na casa de um sujeito com quem ela acabará casando. Mais tarde, ela se engraçará com um camponês e terá o primeiro filho da casa. Logo depois, terá outro filho com o primo do marido, que mora na mesma casa. Por fim, terá seu terceiro filho com um bóia-fria que pede abrigo na casa. Mais que a história dos três filhos de Darlene, contudo, a aposta do filme reside nesse intrincado jogo psicológico do desempenho de papéis sociais num lugar em que os códigos de sociedade que o ocidente vive não servem mais.

A esse respeito, o personagem de Lima Duarte é o mais perfeito. Ele se casa por uma necessidade de status: já tem uma casa que permite sustentar mais gente e tem um dinheiro sobrando; precisa, entretanto, de alguém que lhe faça companhia e cuide das coisas de casa. Não liga muito, ou liga muito pouco, para a vida sentimental de Darlene. Em compensação, lutará como um boi louco para que ela permaneça na casa a qualquer custo (inclusive da forma surpreendente da cena final). O que impressiona e mais agrada em Eu Tu Eles é que todas as situações, todo o jogo polígamo é menos amoroso do que econômico. Eu Tu Eles mostra como, a partir de uma situação dada e de papéis que cada personagem deve desempenhar, os fluxos de desejo vão se comportar para além de qualquer regra ou tabu social.

Sob esse aspecto, Eu Tu Eles é realista: assume os métodos de interpretação dos atores e atende a uma lógica naturalista. A escolha foi boa: Lima Duarte, Stênio Garcia, Regina Casé e Luís Carlos Vasconcelos desempenham excelentemente seus papéis, com uma força física muito forte (enquanto Gêmeas nem deixava perceber que os personagens tinham um corpo). A câmara é inteligente: sabe que o jogo já está ganho com esses atores, e que basta filmá-los para que tudo aconteça bem. E acontece.

No plano dos amientes, por sua vez, o segundo filme de Andrucha Waddington é, espertamente, hiper-realista. Eu Tu Eles prefere não entrar no jogo do realismo tout court, se inscrevendo antes na história do cinema brasileiro de gênero do que no cinema quase-documental: está mais para O Cangaceiro de Liam Barreto do que para Vidas Secas. A escolha foi, mais uma vez, boa: Eu Tu Eles não quer fazer denúncia, não se quer um filme-tese. Quer, em todo caso, respeitando a função social do espetáculo, expressar ludicamente a multiplicidade cultural brasileira. E consegue.

Ruy Gardnier