Os
Pequenos Príncipes
Um breve comentário sobre
o vencedor da competição brasileira do Festival "É
Tudo Verdade 2000"
O Rap
do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas
de Paulo Caldas e Marcelo Luna
Em seu mais recente filme: O Rap do Pequeno
Príncipe Contra as Almas Sebosas, Paulo Caldas e Marcelo Luna
exibem uma linguagem ousada para o gênero do documentário
ao utilizarem elementos da linguagem de ficção. Podemos
tomar essa atitude não só como uma defesa por parte dos
realizadores, do caráter não real do documentário
em si, como também uma louvável apologia à essa impossibilidade
do real.
Ao longo de sua história, o documentário
despiu-se de seu caráter de registro histórico, para assumir
um papel de agente e interventor de alguma realidade, provocador de algo
que não seria, sem ele. Assumiu-se que o processo de filmagem é
transformador do que quer que exista antes dele. Os realizadores desse
Rap porém, chegam a ultrapassar essa proposta (já tão
exposta à nos pelo Cinema-Verdade), ao reconstituir relatos orais,
passados e portanto não documentáveis, como uma espécie
de ilustração do imaginário de seus entrevistados.
Tomemos como exemplo cenas como a inicial, na qual a câmera é
um personagem que foge, ou a que nos descreve (freneticamente) o caminho
diário e perigoso da ponte e até mesmo a cena em que vemos
somente uma arma contra o céu atirando. São momentos importantes
por se assumirem como ficção ( já que resultam de
um processo oral) e por se encaixarem na proposta de um filme essencialmente
estético. Definitivamente não é um filme em cima
da oralidade, e sim da estética.
As letras de música não são
tomadas como relatos, são ilustrações, discursos
vazios por serem prontos e correspondentes com o que se espera deles.
Não há fator surpresa justamente por serem falas demasiadamente
coerentes com as imagens que as antecipam. O filme se apoia portanto na
estética (no caso a hip hop) por que sabe que seu discurso é
fraco. Fracos também serão seus personagens principais,
por se apresentarem prontos para a câmera.
Tendo isto em vista, uma das melhores idéias
do filme é assumir que os dois personagens principais já
são mitos construídos-pré-filmagem e que por isso
devem ser apresentados como personagens fechados em si mesmos. Poderíamos
identificar aí o estabelecimento de uma relação de
identificação entre espectador e personagem parecido com
o que ocorre na ficção. Os realizadores parecem perceber
que a ausência do processo de construção dos personagens
ao longo do filme, impede esse processo de identificação
e consequentemente, o envolvimento do público com a narrativa.
Seria possível então tentá-lo através do processo
inverso: o de desconstrução desses personagens a fim de
desmitificá-los e aproximá-los entre si e entre o espectador.
Ao tentar seguir esse segundo caminho os
diretores fracassam. É o caso do personagem de Hélio. Ele
só é caracterizado por seus poucos depoimentos e pela figura
de sua mãe, como uma tentativa de construir uma nova imagem para
ele, mais parcial, menos senso comum. A mãe se tornaria uma pessoa
chave para se entender "o pequeno príncipe", porém
surpreende por inverter a expectativa e apenas continuar afirmando a imagem
de justiceiro e assassino de seu filho. É a mãe, sim, que
ganha importância ao longo do filme, pois realmente foge do que
se espera dela, é um personagem expressivo. Seu papel porém,
é secundarizado e limitado pelos planos detalhes de seu rosto que
impedem intencionalmente qualquer envolvimento do espectador em relação
à ela e assim, qualquer desvio da atenção dos personagens
escolhidos.
Além disso não é dado
ao criminoso a oportunidade de modificar sua imagem (desconstrução),
está "preso" nela, assim como no espaço que limita
sua própria comunicação com a equipe de filmagem.
É claramente visível que não se sente à vontade
em frente às câmeras devido à situação
de exposição na qual se encontra.
Esse mal estar já não acontece
com o outro personagem principal, pois dá-se liberdade total para
ele apresentar frente à câmera (diante da qual se sente muito
bem) seu personagem já bolado e com todo um discurso pronto, o
do movimento Hip Hop. A desconstrução desse personagem também
se torna problemática por ele não apresentar fator surpresa
algum, afirmar tudo o que já se esperava dele, e utilizar-se de
símbolos/clichês para sustentar sua "autenticidade"
(como é o caso das tatuagens que exibe orgulhosamente nas costas:
Che, King, e Malcolm X).
Essa desconstrução proposta
poderia ainda ter diminuido a grande distância que separa os dois
pólos do filme e mostrar que ela não é tão
grande assim, que os dois jovens tem algo mais além de morarem
no mesmo bairro: o desejo de justiça frente a essas "almas
sebosas", "Pequenos Príncipes" indignados frente
à elas. Ambos são respeitados na comunidade, porém
a diferença é que um expressa esse sentimento com a música
enquanto o outro faz justiça com as próprias mãos.
Caso a desconstrução tivesse ocorrido, a cena final de aproximação
dos dois não seria tão ineficiente pois esta grande distância
entre eles se tornaria menor.
O caminho tomado pelos diretores evidencia
o isolamento desses dois personagens em pólos opostos, porém
o filme é tão cuidadoso para não se tornar maniqueísta,
que acaba camuflando essas diferenças em um encontro apenas espacial,
onde não há nada a ser dito. O Rap do pequeno príncipe
é isto: imagens que se calam, um discurso que não quer a
si mesmo. Um pouco contraditório com a postura de um rap, não?
Marina Meliande
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