Lynch e a palavra que mata


Patricia Arquette em Estrada Perdida

"Meu nome é uma palavra que mata" diz Paul Atreides, em determinado momento, em Duna. Seu nome é capaz de matar, é um discurso capaz de alterar a realidade. É essa relação entre discurso e real, bastante rica no que diz respeito à obra lynchiana que pretendemos analisar aqui.

Tomando como ponto de partida um pequeno texto de Michel Foucault, "A Ordem do Discurso", vemo-lo apontar que nós, modernos, estamos de tal forma certos da coalescência entre pensamento e discurso que nos é absolutamente claro ser a fala uma espécie de descrição do mundo, do que se nos apresenta. Não é, porém, assim que as coisas se dão, de fato. E o que tentaremos mostrar é como essa pretensa coalescência se esvai quando é Lynch que está em questão, ele e seus pequenos universos que se desdobram paralelamente uns aos outros. Nele emerge "o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhe impomos em todo o caso."

É por isso que Dale Cooper, o agente do FBI vivido por Kyle MacLachlan em Twin Peaks, é capaz de recolher depoimentos de muitos dos habitantes da cidade e chegar até conclusões que não só não o levam a lugar algum, como também se encontram fora da dicotomia falso/verdadeiro que rege a fala. Cada um dos depoimentos é violência, é torção do que é apresentado. Em um segundo momento, quando o agente transfere tudo o que ouviu com suas próprias palavras para seu gravador, esses discursos que não são e nem podem ser reais são por ele concatenados mas não levam a parte alguma senão a uma (mais uma) nova realidade que aparece a partir de novas torções.

É o discurso que não revela, mas que tem uma propriedade de rarefação do que há.

Gostaríamos de privilegiar o segundo momento de que há pouco falamos – o da escuta. Pois tudo o que é dito adquire a sua maior importância desde o momento em que é ouvido. Mesmo que o único público seja o que assiste ao filme – como nos monólogos de Frederick Treves refletindo sobre sua responsabilidade para com Joseph Merrick, o homem elefante, ou no surto desesperado de Marietta Pace, ao se arrepender de ter mandado Johnnie Farragut para a morte, em Coração Selvagem – é a partir do instante em que é escutada que a fala se torna aquilo que Lynch pretende que ela seja: criadora de mundos.

O papel da escuta nesse processo criador surge em toda a sua potencialidade em Veludo Azul, que começa justamente por uma indicação do procedimento que leva a palavra a se mover de fora para dentro, produzindo: é Jeffrey Beaumont encontrando a orelha cortada, símbolo da sua própria passagem de um mundo para outro, portal que ao ser transpassado confere uma outra dimensão à fala. E é ainda a partir do que sua namorada Sandy Williams (Laura Dern) escuta seu pai dizer sobre Dorothy Vallens (Isabela Rosselini) que o caso que passa a ser a realidade deles começa a se delinear.

Em Estrada Perdida temos talvez o melhor exemplo desse tipo de discurso, já que não há ali nenhum Dale Cooper desvendador de mistérios, mas apenas nós, a platéia, quem assiste a tudo e em vão tenta criar conexões para os acontecimentos. Assassinatos, fendas no tempo, nada pode se mostrar em sua totalidade; a palavra é quem cria.

Perguntado certa vez sobre esse filme, pela revista Positif, Lynch disse: "O filme é o que o filme é. Você pode interpretá-lo de diferentes maneiras. Ele não tenta desnorteá-lo intencionalmente. Há situações, mentalmente, que estão além de qualquer dúvida abstrata, mas nas quais ainda se pode reconhecer tudo. É sobre isso que o filme é."

"... nas quais ainda se pode reconhecer tudo." Alice Wakefield, a personagem de Patricia Arquette na segunda metade do filme, diz a Fred Madison, enquanto faz sexo com ele, segundos antes de ir embora e desaparecer: "You’ll never have me". Você nunca me terá.

É nesse sentido que Paul Atreides pode afirmar ser seu nome uma palavra que mata. Em Lynch vemos o discurso situado numa exterioridade selvagem, indomado e sentimos a força de "...sua pesada e temível materialidade."

Juliana Fausto