Às
coisas sérias
Claude Chabrol critica Janela
Indiscreta de Alfred Hitchcock em 1955
Chabrol
e Godard na redação dos Cahiers du Cinéma
...1 Seja como for,
penso que o lançamento de Rear Window é suscetível
de unificar a frente da crítica cinematográfica. Os próprios
críticos anglo-saxônicos, que desde há algum tempo
atacavam os filmes de Hitchcock, consideram Rear Window seriamente
e com simpatia. Na verdade, Rear Window apresenta, desde a sua
primeira visão, um centro de interesse imediato, digamos: mais
elevado do que a maior parte das obras precedentes, o que em si mesmo
é suficiente para o fazer entrar na categoria das obras sérias,
para além do simples divertimento policial.
Deste modo, não desejaria sublinhar
aqui o que se tornou já tão aparente: a má consciência
do personagem principal, ‘voyeur' no sentido menos brilhante do termo;
mas antes dedicar-me a esclarecer alguns elementos menos evidentes, mas
ainda mais interessantes, que enriquecem a obra com ressonâncias
muito especiais e permitem afastar as objeções e as críticas
provocadas por uma visão superficial de Rear Window na última
Bienal de Veneza.
Desde os seus primeiros minutos, Rear
Window apresenta-nos um conjunto de tocas de coelhos perfeitamente
isoladas, observadas a partir duma toca de coelho fechada e incomunicável.
Daí a concluir que o comportamento dos coelhos é ou deveria
ser o centro do interesse, vai apenas um passo rapidamente rompido, visto
que igualmente nada se opõe a esta interpretação
dos elementos presentes. Basta apenas admitir que o estudo deste comportamento
é feito por um coelho essencialmente idêntico aos outros.
O que conduz à idéia de um deslocamento perpétuo
entre o comportamento real dos coelhos e a interpretação
dada pelo coelho observador que, em definitivo, é a única
que nos é comunicada, visto que na continuidade deste comportamento,
continuidade multiplicada pelo número de tocas observadas, toda
a ruptura e todo a escolha nos são impostas. Se o coelho observador
é ele próprio observado com uma objetividade total, a de
uma câmara que não se autoriza a saída da toca deste
observador, somos forçados o admitir que todas as outras tocas
e todos os coelhos que elas contêm se resumem a uma deformação
múltipla da toca e do coelho objetivamente, isto é diretamente,
apresentado. Deste modo, em Rear Window, o outro lado do pátio
deve ser considerado coma uma múltipla projeção dos
problemas amorosos de James Stewart.
Os elementos constitutivos desta múltipla
projeção são, com efeito, outras tantas relações
emotivas possíveis entre indivíduos de sexo oposto, incluindo
mesmo a ausência de relações emotivas, traduzida pela
solidão respectiva de dois seres vizinhos, incluindo mesmo o ódio
finalmente assassino, passando pela fome sexual dos primeiros dias.
Posto isto, convém acrescentar a estes
elementos um outro, capital, que é o que se poderia chamar a tomada
de posição do autor, cuja tomada, combinando-se com os dados
artísticos impostos pela idéia, se desenvolvem diretamente
nos personagens apresentados, e manifesta-se abertamente cristão,
pela fé da evidência e o testemunho de três citações
evangélicas.
Devidamente estabelecidas estas premissas,
deixo ao leitor a conclusão deste silogismo que duma vez por todas
situa o clima moral da obra, para passar ao seu significado propriamente
dito.
A janela que dá para o pátio
compõe-se, como sublinha o genérico, de três partes.
Observemos esta trindade. A obra compõe-se, com efeito, de três
elementos, três temas, se se quiser, concomitantes e finalmente
unificados.
O primeiro é uma intriga sentimental
opondo e reunindo sucessivamente James Stewart e Grace Kelly. Ambos procuram
um terreno de entendimento, porque, se estão apaixonados um pelo
outro, os respectivos 'eu', um tudo-nada divergentes, são um obstáculo.
O segundo tema é de ordem policial,
situado, por sua vez no outro lado do pátio, e por conseguinte
com um caráter semi-obsessivo bastante complexo. Combina-se, de
resto, com grande habilidade com um tema da indiscrição,
que percorre toda a obra e lhe confere uma parte da sua unidade. Este
elemento policial apresenta além disso todos os caracteres habituais
das obras anteriores de Hitchcock, levados aos extremos limites, visto
que jamais se chega a saber se o crime não terá sido concretizado
pela única vontade de Stewart.
Finalmente o último tema é
mais complexo para ser definido numa palavra: apresenta-se como uma espécie
de pintura realista do pátio, embora realista seja um termo particularmente
mal escolhido para o caso, visto que esta pintura refere-se a seres que
são a priori entidades, projeções mentais.
O fim, aqui, é esclarecer, justificar e afirmar a concepção
fundamental da obra, o seu postulado: a existência da estrutura
egocentrista do mundo, estrutura de que a relação dos temas
entre si procura dar uma imagem fiel. Assim, o indivíduo é
o átomo altamente diferenciado, o par a molécula, o edifício
o corpo composto de um número X de moléculas, e ele mesmo
altamente diferenciado do resto do mundo. Os dois personagens exteriores
têm o duplo papel de confidentes inteligentes, um inteiramente lúcido,
outro inteiramente mecanizado, e testemunhas também comprometidas,
generalizando o exposto.
Se quisermos arriscar uma comparação
musical para esclarecer a relação dos temas, pode dizer-se
que os três se compõem das mesmas notas, mas expostas numa
ordem diferente, e em tonalidades diferentes, servindo cada um de contraponto
aos outros. Uma tal comparação não é excessiva,
visto que seria fácil determinar, no ritmo da obra, quatro 'tempi'
diferentes, ou quatro formas constituintes, definíveis em termos
musicais. Como convém a uma obra tão elaborada como esta,
encontra-se em Rear Window um momento de cristalização
dos temas numa única lição, um gigantesco acordo
perfeito: a morte do cãozinho. Esta seqüência, a única
que é tratada à margem do ponto de vista narrativo enunciado
mais acima (a única em que a câmara desce ao pátio,
quando 0 herói não se encontra lá) é, a partir
de um elemento em si mesmo pouco dramático, duma intensidade trágica,
comovente. Creio que uma tal veemência, uma tal seriedade possam
parecer um pouco deslocadas na circunstância: um cão é
apenas um cão e a morte de um cão pode parecer um acontecimento
cujo lado trágico não tem relação com as palavras
pronunciadas pela dona do animal, e as próprias palavras: 'Não
podemos estar mais perto uns dos outros, entre vizinhos?', que resumem
o sentido moral do filme, parecem algo desajeitadas e sobretudo ingênuas
para justificar um estilo tão solene. Mas essa deslocação
anula-se a si própria, porque o tom não deixa subsistir
qualquer dúvida, e dá às coisas e sentimentos a sua
intensidade real: trata-se do massacre de um inocente e de uma mãe
que chora o seu filho2, e invectiva.
Desde logo, as implicações
desta cena são vertiginosas, onde as responsabilidades se perseguem
umas às outras em todos os planos imagináveis e condenam
um mundo monstruosamente egocêntrico, onde todos os elementos, em
todos os escalões, se enclausuram numa ímpia solidão.
Enquanto que no plano dramático ela
apresenta o duplo interesse de um salto policial, exasperando a suspeita,
e a ilustração de um tema caro ao seu autor: a materialização
de um ato criminoso indiretamente desejado (no caso preciso: esta morte
confirma as esperanças de Stewart.
Deste ponto de vista, a cena do confronto
entre o assassino e o 'voyeur’ apresenta um grande interesse: a comunicação
procurada pelo primeiro, 'Que quer de mim2' seja chantagem ou confissão,
compromete o segundo que a recusa no reconhecimento da sua abjeção
e autentifica, em certa medida, a sua responsabilidade. A recusa de Stewart
ilumina assim a razão profunda da solidão do mundo, que
se verifica ser acima de tudo a ausência de comunhão entre
os seres, numa palavra, a ausência de amor.
Outras obras de Hitchcock, tais como Rebecca,
Under Capricorn ou Notorious mostraram o aspecto inverso
do problema, a saber, o que pode ser a força do amor; e este aspecto
não está apesar de tudo ausente de Rear Window em
que a personagem encarnada por Grace Kelly apoia a sua preciosa ambigüidade
numa oposição entre o seu 'possível' e o seu 'ser'.
Sendo o 'possível' justamente a irradiação tangível
da sua beleza e do seu encanto, suficientemente poderosa para transformar
a atmosfera triste e solitária do quarto do doente num jardim de
flores onde a cabeça de James Stewart repousa num plano inesquecível:
a introdução em simultâneo com a donzela dessa poesia
inefável que é o amor entre dois seres, justificada além
disso, essa poesia, por uma brincadeira de autor inteligente, no conjunto
da obra que dá, na atmosfera sufocante de Rear Window, que
é a própria atmosfera da nossa cloaca, uma visão
fugitiva do nosso paraíso terrestre e perdido3.
Não querendo repetir o que é
evidente, deixo ao espectador o cuidado de apreciar, neste filme, a perfeição
técnica e a extraordinária qualidade da cor.
Rear Window dá-me a satisfação
de acolher a lamentável cegueira dos céticos com uma doce
e misericordiosa hilaridade.
Claude Chabrol
in Cahiers du Cinéma, n.° 46,
Abril de 1955 Tradução de Manuel Cintra Ferreira, com modificações
de Ruy Gardnier
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1 Ninguém ignora que os Cahiers du Cinéma se debruçam com regularidade sobre
o ‘caso’ Hitchcock e os sarcasmos dos nossos colegas acerca disso. De Georges
Sadoul a Denis Marion, de Jean Quéval a George Charensol, nenhuma ironia
nos foi poupada. Procurou-se mesmo fazer chicana pelos terrenos mais movediços:
até quererem fazer crer que um dia traduzi ‘larger than life’ por metafísico,
do que todos os que me conhecem sabem que sou incapaz.
2 O casal do cão representa além disso o casamento estéril, no espírito
de Stewart; o que explica que o cão não seja de fato uma criança. Desde
Sabotage que Hitchcock desconfia terrivelmente das mortes de crianças, que
uma sensibilidade normal tem dificuldade de suportar.
3. A última seqüência de Rear Window é característica da maquiagem
de uma cena no seu contrário, em que Hitchcock passa por mestre. As coisas
voltam à ordem, e duas notações divertidas fazem um ‘happy end’; de fato,
trata-se pura e simplesmente de uma constatação terrível: as coisas e as
pessoas ficaram as mesmas, cegamente.
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