Uma Situação Colonial?



No dia 19 de novembro de 1960 aparece nas folhas do Suplemento Literário do Estado de São Paulo o artigo "Uma Situação Colonial?" Esse texto de Paulo Emílio representa a sua primeira tentativa sistemática de pensar o cinema brasileiro sob o viés de um subdesenvolvimento intrínseco às grandes produções sociais e culturais. Tentativa que depois vai se formalizar num dos textos mais importantes já feitos sobre cinema brasileiro, a saber, Brasil: Trajetória no subdesenvolvimento. Mas, antes de entrar como artigo em sua coluna no Suplemento Literário, "Uma Situação Colonial?" foi antes uma comunicação à Primeira Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica, ocorrida em São Paulo entre os dias 12 e 15 de novembro de 1960. Paulo Emílio Salles Gomes apresentou, além deste texto, mais uma comunicação, "A Ideologia da crítica brasileira e o problema do diálogo cinematográfico", já publicada no livro Paulo Emílio — Um Intelectual na Linha de Frente, org. Calil e Machado, publicado pela Ed. Brasiliense em 1986.

A comunicação "Uma Situação Colonial?", entretanto, jamais foi publicada como tal. O principal motivo, supõe-se, é a semelhança com o artigo publicado no Suplemento Literário. De fato, em todo o corpo do texto, as diferenças, mínimas, só são percebidas numa troca vocabular ou inversão de orações. Mas o que realmente importa na comunicação feita à Primeira Convenção são as conclusões ao final do texto, sumariamente omitidas do artigo. São cinco conclusões sérias e que colocam a mão numa ferida que muitos gostariam de deixar intocada. (Ruy Gardnier — agradecimentos CPDoc Cinemateca do MAM)

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O exame em bloco de questões tão diversas como, por exemplo, a situação do importador de filmes e a posição ideológica da crítica, pode, à primeira vista, causar certa estranheza. No entanto, o método inverso é que ofereceria o perigo de elucubrações artificiais e estéreis, porque destacadas da realidade. Em cinema, de forma ainda mais clara do que em outros terrenos da atividade humana, há uma solidariedade total entre as tarefas mais prosaicas e as construções mais finas.

O denominador comum de todas as atividades relacionadas com o cinema é, em nosso país, a mediocridade.

A indústria, as cinematecas, o comércio, os clubes de cinema, a crítica, a legislação, os quadros técnicos e artísticos, o público e tudo o mais que eventualmente não esteja incluído nesta enumeração, mas que se relacione com o cinema no Brasil, apresentam a marca cruel do subdesenvolvimento. Assim como as regiões mais pobres do pais se definem imediatamente aos olhos do observador pelo aspecto físico do habitante e da paisagem, todos os que nos ocupamos de cinema no Brasil dificilmente escapamos a um processo de definhamento intelectual, que mais cedo ou mais tarde acaba por imprimir características reconhecíveis à primeira vista. Mesmo os que, como se diz, vencem na vida, não se furtam à regra. Importadores e exibidores atingem a prosperidade, mas apenas como reflexos de realidades sociais situadas fora de nossas fronteiras. São incapazes de violar as normas envelhecidas de um jogo que há muito deixou de corresponder às exigências de nosso dinamismo nacional. Sua prosperidade não está condicionada ao processo de emancipação e enriquecimento da comunidade. A situação de coloniais implica em crescente alienação e no depauperamento do estimulo para empreendimentos criadores. Esses homens práticos não estão, na verdade, capacitados para nenhuma ação de conseqüências no quadro geográfico e humano brasileiro. Podem ter idéias e fazer projetos, mas sempre dentro dos limites estreitos ditados por uma situação externa diante da qual se sentem desarmados. Não encontrando canais para concretizar-se na realidade, a imaginação desses homens atrofia-se como qualquer outro órgão sem função. Guardam, todavia, suficiente lucidez para perceber suas próprias capitulações e até que ponto, apesar da prosperidade pessoal, foram vencidos. Daí a insatisfação em que vivem, imediatamente perceptível ao observador atento.

Outros, que às vezes são os mesmos do parágrafo anterior, prosperam na produção de filmes nacionais. Aqui a norma é igualmente a capitulação, apenas, os obstáculos apontados como intransponíveis, são o próprio público. Produzem determinado gênero de fitas que eles próprios desprezam, alegando ser o único tipo de cinema brasileiro que o público aceita. No fundo, esses homens, cuja atividade principal é, às vezes, a importação e exibição de obras estrangeiras, estão convencidos de que o público brasileiro é infenso ao cinema nacional. As películas que fabricam, aliás, não são propriamente cinema, para o público, mas o prolongamento de espetáculos que esse público admira no rádio, televisão e teatro ligeiro. Essas fitas brasileiras não se incluem na ração maior ou menor de cinema introduzida nos hábitos do povo. Tal necessidade é satisfeita pelos filmes estrangeiros. O que assegura o sucesso das películas a que nos referimos é o fato de não serem comparadas pelo espectador aos produtos de outros países. Cria-se assim uma harmoniosa combinação de pontos de vista entre os produtores e o público desses filmes

brasileiros. Para ambos, cinema mesmo é o de fora, e outra coisa é aquilo que os primeiros fazem e o segundo aprecia. Essa situação suscitou no produtor uma mentalidade particular, uma dissociação de natureza quanto às fitas fabricadas dentro e fora do país. Ele se interessa por uma legislação de amparo ao cinema nacional mas não passa pela sua cabeça que o objetivo final possa ser o de colocar o produto brasileiro em pé de igualdade com os estrangeiros. Seu horizonte está restrito à criação de condições favoráveis ao prolongamento e ampliação de suas atividades habituais. Na medida em que são apenas produtores, esses homens não se encontram, como os importadores e exibidores típicos, completamente alienados dos interesses da comunidade a que pertencem. Sua alienação refere-se ao próprio cinema.

Esse tipo de filme brasileiro é, pois, mau, porém oferece alguma compensação financeira. As fitas com intenções artísticas, além de não serem boas, malogram na bilheteria. A razão é óbvia. O público compara e se retrai diante de um cinema que os estrangeiros fazem muito melhor. E assim chegamos ao outro setor da cinematografia nacional, o dos homens que nutrem ambições desenvolvimentistas no terreno artístico e industrial. Esses produtores, diretores, técnicos ou artistas são pessoas vinculadas ao movimento de crítica e cultura cinematográfica. A primeira observação a ser feita é que, com freqüência, não são os mesmos de há alguns anos atrás. Além disso, o seu número decresceu. Esse desfalque nos quadros e a sua instabilidade refletem uma situação brasileira bastante contraditória. Como em toda parte, o cinema exerce no Brasil uma atração muito grande sobre a juventude, mas não lhe oferece condições normais de atividade. O entusiasmo se arrefece e muitos são compelidos a procurar outra profissão, se possível em áreas próximas, pois a decisão de abandono, às vezes dolorosa, é raramente encarada como definitiva. As fidelidades que o cinema provoca, ajudam a compreender certa continuidade de esforços que, apesar de tudo, tem sido assegurada. Os que teimam em permanecer não o fazem, contudo, impunemente. O desgaste é grande e se traduz por uma constante lamentação. O sistemático malogro dos empreendimentos gera a frustração, e esta é má conselheira. Embora esses homens conheçam a raiz do mal— pois cabe-lhes o mérito de terem metodicamente esclarecido, através de inquéritos, monografias e relatórios, a conjuntura cinematográfica brasileira - cada vez que o insucesso acolhe um filme no qual estão empenhados, não resistem ao reflexo automático de individualizar culpados dentro da própria equipe técnica e artística, entre distribuidores e exibidores, ou na redação dos jornais. A amargura envenena a atmosfera, e a energia e o tempo gasto em mesquinharias é um precioso capital dilapidado.

O ramo de atividades especificamente culturais não fica imune ao clima reinante na cinematografia brasileira. Os responsáveis por um dos problemas fundamentais, o da cinemateca, são obrigados a concentrar a parcela maior da força de pensamento e trabalho muito menos nas tarefas educativas e culturais do que no esforço para criar condições que possibilitem essas tarefas. A ação junto aos poderes públicos municipais, estaduais e federais, executivos e legislativos, exige um tipo de perseverança que atinge os limites do encarniçamento. Não há outra maneira de enfrentar o ritual e o ritmo processual brasileiro, reflexos de um sistema burocrático totalmente ultrapassado e que cria os maiores obstáculos ao funcionamento eficaz dos poderes públicos. A paciência e a teimosia passam por virtudes, e o são quando gratificadas progressivamente com resultados palpáveis. A longo prazo, entretanto, a ação sem conseqüências ponderáveis provoca certa secura capaz de alterar profundamente uma personalidade. A missão cultural e educativa de uma cinemateca necessita de espíritos abertos e oxigenados. Anos a fio de desgaste num labor ingrato podem muito bem, chegado o momento das autênticas realizações, tornar inadequada para prosseguimento da tarefa uma pessoa que para ela se preparou durante dez anos. Ainda aqui deve-se levar em conta o que isso significa como desperdício de energia social.

As instituições que promoveram durante os últimos seis anos os grandes ciclos de projeções culturais, manifestam um justificado orgulho por esses empreendimentos. Os Grandes Momentos do Cinema, a Homenagem a Erich von Stroheim, a Retrospectiva do Cinema Internacional, os Dez Anos de Filmes sobre Arte e os Festivais Históricos dedicados ao cinema norte-americano, francês e italiano são com efeito manifestações que não temem a comparação com o que se tem feito de melhor, no gênero, nos países mais adiantados do mundo. É preciso, contudo, convir que se o mérito dessas iniciativas cabe à Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e à Cinemateca Brasileira, de São Paulo, elas só se tornaram possíveis graças à generosidade das cinematecas estrangeiras para com as congêneres brasileiras. Trata-se de etapas importantes no processo cultural cinematográfico brasileiro para o aperfeiçoamento dos quadros técnicos e artísticos da indústria e para dar à crítica, sobretudo a mais jovem, as perspectivas históricas que lhe faltavam. Ao mesmo tempo, porém, não é esse evidentemente o trabalho que se espera das cinematecas no terreno da difusão. Esses grandes festivais cinematográficos foram reservados para setores privilegiados do Rio e de São Paulo, ao passo que a verdadeira tarefa educativa impõe a sua extensão horizontal e vertical, a toda a comunidade brasileira, através de escolas, museus, sindicatos e órgãos espontâneos de cultura como os clubes de cinema. O cinema é, no nosso tempo, a única arte democrática e popular; é escandaloso que as oportunidades de elevar o nível de apreciação estejam exclusivamente reservadas a uma minoria geográfica e social da comunidade brasileira. As cinematecas têm a desculpa de precisarem conciliar o trabalho cultural de difusão com os problemas de manutenção, enquanto não entrarem em vigor os acordos previstos com os poderes públicos. Essa explicação por si só revela até que ponto deixou de obter ainda reconhecimento a função das cinematecas no panorama geral de nosso subdesenvolvimento.

Á primeira vista, os que se dedicam sobretudo a escrever sobre cinema, críticos e ensaístas, não seriam necessariamente atingidos pelo clima depressivo que envolve os outros setores. Um exame um pouco mais acurado demonstra, como era de esperar, que não há fuga possível da geografia e do tempo. A situação da crítica não deixa de oferecer semelhanças, num plano diverso, evidentemente, com a dos importadores e exibidores de filmes a que fizemos referência. Como estes, o crítico cuida de algo que recebe passivamente e sobre o qual não possui elementos de influência. O crítico do New York Times dialoga com Kazan e o de France Observateur com Clouzot. A crítica e o diálogo marcam os cineastas e camadas ponderáveis do público. Por motivos óbvios, o crítico brasileiro não dialoga com os autores das obras importadas. Sua possibilidade limita-se, na melhor das hipóteses, a influir sobre os distribuidores ou a censura. O crítico não nutre ilusões acerca de um público cujo subdesenvolvimento se manifesta também na apreciação cinematográfica. Esse estado de espírito o conduz a transformar a crítica em simples conversa pública a respeito de seus entusiasmos e ojerizas. Seu único diálogo é com os confrades e num tom que ignora os leitores eventuais. A falta de comunicação na comunidade faz tender o crítico ou ensaísta a orientar o seu espírito, cada vez mais, para as coletividades onde nascem os filmes que aprecia. Assim como a prosperidade do importador está condicionada a realidades econômicas estrangeiras, o enriquecimento cultural do crítico gira progressivamente na órbita de um mundo cultural distante. Como o primeiro, acaba marcado pelos sintomas da alienação. Esse fenômeno lança alguma luz sobre a ambigüidade das posições do crítico brasileiro frente à produção cinematográfica de seu país. O filme nacional é um elemento perturbador para o mundo, artificial mas coerente, de idéias e sensações cinematográficas que o crítico criou para si próprio. Como para o público ingênuo, o cinema brasileiro também é outra coisa para o intelectual especializado. Atacando com irritação, defendendo para encorajar, ou norteado pela consciência de um dever patriótico, o crítico deixa transparecer sempre o mal-estar que o impregna. Todas essas posições, particularmente o sarcasmo demolidor, são véus utilizados para esconder o sentimento mais profundo que o cinema nacional suscita no brasileiro bem formado — a humilhação.

Esse panorama sucinto de diversas categorias da cinematografia brasileira sugere claramente que a mediocridade reinante não emana das pessoas empenhadas nas diferentes tarefas, mas é a conseqüência direta de uma conjuntura muito precisa. Através do exame de condição dos distribuidores, exibidores, produtores, encarregados de cinematecas, críticos e ensaístas, delineiam-se com exatidão as linhas de uma situação colonial. Se introduzirmos, cedendo ao gosto da imagem, um comentário a respeito das chamadas co-produções, isto é, a utilização por cineastas estrangeiros de nossas histórias, paisagens e humanidade, caímos plenamente na fórmula clássica sobre a exportação de matéria-prima e importação de objetos manufaturados.

Conclusões:

a) a situação da cinematografia brasileira, em seu conjunto econômico-cultural, é caracterizadamente colonial.

b) as soluções parciais de problemas podem e devem, ser tentadas e estimuladas, desde que haja a plena consciência de seu caráter de etapas tendo em vista as soluções globais, as únicas realmente fecundas.

c) As soluções globais são aquelas que criarão as condições básicas indispensáveis à cinematografia brasileira para emancipar-se do estatuto colonial.

d) É dever da crítica brasileira familiarizar-se com os problemas econômicos e legislativos da cinematografia brasileira, e participar do esforço para resolvê-los.

e) Participando desse movimento de soberania, a crítica cinematográfica brasileira contribuirá para fazer secar as fontes de sua alienação e operará a própria transcendência a um nível superior de integração e desenvolvimento.

Paulo Emílio Salles Gomes