
Central do Brasil
de Walter Salles
Quando, revendo Central
do Brasil, sobem os créditos e Cartola começa a cantar
"Preciso me Encontrar", temos algumas certezas: a) o filme de Walter
Salles não tem nada a ver com o estupro estético que fizeram
crer; b) do ponto de vista do espetáculo (e só sob esse
ponto de vista), é a mais perfeita obra brasileira feita na década;
c) todos os momentos "problemáticos" do filme (assassinato do
pivete, mudança de comportamento de Dora, a procissão)
não desencadeiam problemas nem éticos nem estéticos
nem narrativos, como já se fez crer; e d) embora talvez seja
o filme de Walter Salles melhor realizado, Central do Brasil continua
tendo alguns dos problemas básicos de suas obras anteriores e
posteriores.
Desagrada a muita gente o
fato de Central do Brasil ter sido premiado no exterior e ter
sido vendido como a bandeira e a solução para o cinema
brasileiro. Ora, quem puxou essa bandeira não foi Walter Salles,
muito menos a produtora do filme, Videofilmes. O ódio da classe
cinematográfica e da juventude intelectual, que deveria ter se
dirigido à imprensa, dirigiu-se ao filme e perdeu-se muito tempo
discutindo bobagens.
O que é então
Central do Brasil? É um filme pensado para grande público
que conta a história de uma senhora carioca que leva um menino
órfão até o Nordeste. Ela tem uma moral duvidosa
e viveu em banho maria boa parte da vida por ressentimento do pai; ele
acaba de perder a mãe e não tem para onde ir. A estranha
dupla de opostos opera então uma mítica viagem de volta
ao princípio do Brasil, a um novo ponto em que tudo pode recomeçar
do zero (Dora ganhando dinheiro quando está sem um puto). Essa
viagem de volta tem um desejo político ingênuo, de uma
ingenuidade questionável, só menos questionável
que o movimento de câmara que sobe ao entardecer por cima das
casas pré-fabricadas e que prefigura com orgulho um futuro de
Brasil homogêneo, asséptico e em certe medida falseador.
Mas o que mais preocupa em
Walter Salles é a dupla postura em relação a seus
personagens: num primeiro momento, ele parece jogá-los à
diferença absoluta, parece que os desvencilha de sua cotidianidade,
de seu habitual modo de ser e os coloca numa estrada, lugar mítico
da mudança (geográfica, mas também mudança
de vida). Mas a partir dessa estrada, ele passa a vigiá-los de
perto demais, como um pai que deixa o filho ir até a portinha
de casa. Os personagens de Walter Salles parecem trapezistas que voam
com a rede embaixo. O espectador sempre está seguro de que nada
acontecerá de mal a ele, nada de mal acontecerá ao Brasil,
mesmo que haja um certo pessimismo embutido (Vasconcellos que morre
em O Primeiro Dia). O papel do pai cuidadoso, em termos estéticos,
é a música que exerce em Central do Brasil: ela
está em todos os lugares, impedindo os personagens de se relacionarem
a sós com o espectador, sempre como uma codificação
predeterminada (enternecimento, condescendência, etc.), minando
o forte potencial das situações e dos atores.
Mas não há propriamente
uma impostura social em Central do Brasil.O qu há é
uma ingenuidade um tanto desagradável, uma estratégia
narrativa equivocada e manipuladora que teima em colocar uma visão
idealizadora e deformadora do Brasil. Mas nada que tire do filme um
certo brilho, nada que faça de Walter Salles um conspirador do
cinema como já quiseram fazer crer.
Ruy Gardnier