Notas
para um trabalho minucioso:
O Primeiro Dia de Walter Salles
O
Primeiro Dia, filme que constitui a série 2000 visto por..., foi
o estopim de um projeto, cujo principal intuito se reflete em meu gosto
pessoal: não aprecio os filmes de Walter Salles. Mas, antes de contemplar
esse desejo, busquei refletir acerca do caráter reiterativo e estilizado
desses filmes. Mais ainda: observei em seu "gosto" pela pobreza
e pelo periférico, algo bastante diverso da "estética
da fome" e do neorealismo, fontes incluídas por WS como "influências".
Em minha embrionária opinião, esses filmes tangem uma visão
de Brasil que reitera uma série de valores problemáticos,
que vão desde os preconceitos sublimados, isto é, preconceitos
de classe pouco evidentes, até a alienação que aponta
um tipo de cinema como via única e privilegiada na "captação
de recursos". De modo que, mesmo considerando estes filmes extremamente
importantes na cinematografia nacional (Central é um marco!), entendo
esta importância por um viés interpretativo nada simpático,
isto é, busco a seriedade, mas meu objetivo é franco. Portanto,
para que não haja mal entendido: pretendemos com este artigo esboçar
diretrizes para um trabalho maior a respeito da obra de Walter Salles, sobretudo
suas ficções.
Em nossa concepção, dessas ficções emergem dois
pólos de discussão que se imbricarão. O primeiro pólo
é o Brasil como temática ou, como queiram, a idéia
de uma determinada brasilidade. O outro é o modo pelo qual esta brasilidade
vem, isto é, a linguagem dos filmes. Naturalmente, os dois pólos
acima identificados obedecem a critérios de avaliação
distintos. Isto é problemático porque, ao escrever sobre tema
tão popular (o cinema de WS), devemos nos ater a uma prosa enxuta
que, de fato, "dê em alguma coisa". Não esperamos
com isso solucionar o problema mas apontar interpretações
inteligíveis. É possível, sob este intuito, conjugar
dois assuntos diversos em um texto apenas? Defendemos, inclusive, que o
assunto é o mesmo: linguagerm a serviço da temática;
neorealismo às avessas.
A construção da temática do cinema de WS obedece a
dois pilares básicos e facilmente identificáveis, a saber:
o Brasil, seu povo e os paradoxos de sua formação; e o drama
que daí emerge, entendendo a palavra drama no seu sentido mais amplo,
isto é, o drama como acontecimento. Portanto, acreditamos que ao
criar seus filmes WS busca extrair dos acontecimentos da "realidade"
brasileira toda a carga dramática necessária para preencher
a tela e assim manter o espectador na trama. O problema é que a relação
entre estes dois pilares não é uma relação "toma-lá-dá-cá",
mas que termina com um déficit para o fator Brasil, visto que, obviamente,
o objetivo principal é o drama. Como resíduo desta 'extração',
WS faz emergir uma idéia de Brasil. Parece que se utiliza um brasil
como pano de fundo e então, mesmo que a reboque, mesmo que inaudita,
imperceptível, sub-reptícia e camaleonicamente emerge a idéia
de um Brasil que obedece à reduções problemáticas.
A miséria, a desigualdade social, e outras 'saúvas' nunca
foram tão estilizadas como nesses filmes. E o que caracteriza tal
estilização é a construção de um Brasil
'ideal' através de uma extração desigual, onde o drama
serve-se de pressupostos preconceituosos e paternalistas, que somente poderiam
ser encontrados no imaginário de quem vê a pobreza do alto
de seus privilégios. Mesmo assim, a eficácia de tal movimento
é inegável, pois os filmes de WS possuem o tempo necessário
do drama e com isso atraem o público. E não poderia ser de
outra forma: estamos falando de cinema.
Deste modo, a caracterização da realidade brasileira, do Brasil
ou da brasilidade, - termos completamente diferentes, mas que se confundem
nesses filmes - ultrapassa o mero pano de fundo para o drama e segue em
direção a uma visão estereotipada do Brasil. Há
portanto, uma concepção elitizada que serve à eficácia
do drama. A questão é que neste percurso WS desenvolve uma
ética servil da imagem. O servilismo à 'estética' -
a bela luz, o belo plano, o belo corte - dissolve o poder da imagem, exterminando
a possibilidade de uma imagem inteligente que traga o público para
dentro da tela sem apelos categóricos. "Cinema é a maior
diversão" é uma boa filosofia (Thanx Jaime!). Porém,
nem Severiano Ribeiro encarou a pecha de sociólogo da imagem.
Para que esta "concepção de Brasil" não soe
aos ouvidos mais apressados como mera apreensão sociológica,
um esclarecimento: a palavra brasilidade designa, grosso modo, um movimento,
tanto popular quanto intelectual, que busca construir um arquétipo
mais ou menos geral que represente o Brasil e sua cultura e que ganhou razoável
quadro teórico a partir do Modernismo. A brasilidade é um
conceito problemático e um tanto indefinido, visto que é construído
e discutido constantemente. Porém, ainda vivemos dos 'preconceitos
úteis' de Mário e Oswald de Andrade, suas heranças
menos interessantes e no entanto, preciosas, visto que a brasilidade tornou-se
xenofobia de esquerda. Não há portanto nesta brasilidade,
nada de semelhante ao que comumente chamamos "realidade brasileira".
A "realidade brasileira" é um conceito mais vago ainda
e, portanto, mais complexo: é construído sobretudo pela imprensa
e adquire verossimilhança e força em confronto com a experiência
diária. Podemos concluir, com razoável grau de certeza, que
todos os estamentos constituintes da sociedade brasileira são afetados
por esse conceito. "A vida é dura", e nós sabemos
e 'vemos' pela TV. Mesmo uma pessoa com melhores condições
financeiras recebe informações diárias, 'enriquecidas'
com altas cargas de sensacionalismo. Mesmo se esta pessoa habita um meio
culto e intelectualizado, há sempre um Sérgio Buarque ou um
Graciliano para enxertar em sua mente a idéia de 'realidade brasileira'.
A miséria brasileira possui múltiplas explicações
e a busca de soluções não deve ser encarada como utopia.
Por isso também não deve ser romantizada e estabelecida uma
'realidade brasileira' quando ela é um mito e quando sua explicação
manipula tendenciosamente imagens e estatísticas da pobreza. Deste
modo, há uma utilização estética a partir desta
manipulação e que, novamente, serve ao drama. Esta duas perspectivas
se complementam nos filmes de WS, visto que a primeira se apresenta como
solução da outra: a brasilidade (que é, em resumo,
guardar as fronteiras, folclorizar a cultura), seria o ideal de fortalecimento
para a superação da 'realidade brasileira'.
Há que se perguntar: não encontramos esta visão em
diversos filmes? Por que o cinema de WS é alvejado? A pergunta é
pertinente, sobretudo se lembrarmos a favela de 'Como nascem os anjos' -
aquela cena da montagem do rifle reitera uma perspectiva elitista e paternalista
-, ou os filmes de Sérgio Rezende, sobretudo a vida de Tenório
Cavalcante e o filme sobre Canudos. E não precisamos ficar no cinema:
a música de Pedro Luís, Farofa Carioca e Fernanda Abreu apelam
para uma suposta brasilidade, mais especificamente, um 'carioquismo do calor,
do sol, do samba e da malandragem'. As fotos de Sebastião Salgado
resgatam a "beleza da pobreza". Qual é o problema? É
uma divisão real das diversas manifestações da cultura
brasileira. De um lado, certeza sobre um estado, vontade de mostrar 'como
é' e buscar a transformação através da estetização
dos acontecimentos e das estatísticas (de Geraldo Vandré a
Sebastião Salgado, passando pela cultura proletária e pelos
xenófobos de plantão). De outro, uma sinceridade e uma seriedade
suave e rigorosa para com a cultura brasileira, um certo descaso com o papel
de "salvador da pátria" e com a idéia contra-sensual
de "defesa da cultura popular", como se ela precisasse (embora
muito castigada, toda a história da música popular e do cinema
brasileiros mostram esta vitalidade criativa e, num certo sentido, 'nietzscheana').
O problema é que, tanto Glauber quanto o compositor carioca Arlindo
Cruz, em meio às diferenças explícitas de seus ofícios,
souberam fazer emergir um descompromisso. Não há nesses trabalhos
o menor esforço para se dar conta de um totalidade, isto é,
de uma forma fechada e acabada sobre o Brasil. Glauber pulava de um pólo
a outro mas preferia o centro: qualquer filme seu é um tratado sobre
o Brasil. A idade da terra é um dos filmes mais ricos e sofisticados
desses 105 anos de cinema brasileiro porque Glauber soube falar do Brasil
para o Brasil, sem com isso exibir nenhuma tábua de valores prescritos.
O drama emerge como destino do cinema e traz consigo um plano engenhoso
e uma carga de tensões. Não há a exploração
de um preconceito em relação servil com o drama, isto é,
uma simples extração, mas uma verdadeira relação
de troca onde o drama é enriquecido pelo problema. A música
de Arlindo, Milton (1969-1981), Caetano e mesmo a música dos chorões,
de Callado a Zé da Velha, é uma feliz confusão que
a todo momento retorce o conceito de brasilidade e retira um caldo bastante
original e afirmativo. As complexas noções de erudito e popular
são abaladas no confronto com a história da música
popular brasileira, isto é, tal 'descompromisso' resultou em uma
verdadeira mudança, sem apelações. Quando Nelson Pereira
subiu o morro, não foi para 'mostrar' a pobreza, mas para desvendá-la
com sua câmera. Filmou aquelas cenas sob um intuito bem diverso dos
jogos cênicos de "Central do Brasil". Não quis mostrar
a pobreza para uma apreciação estática, como o fez
Walter Salles, mas como meio sincero para mudar o cinema. Não a pobreza.
No 'absurdo' desta concepção, entendo a obra de WS sob esta
dupla falta (sem alusões, por favor): não há um trabalho
de criação, nem no plano da linguagem, nem no plano das idéias,
muito menos nos dois modos. Há sim uma continuação,
a permanência de um estado. a) A linguagem desses filmes é
unificada: dizem o que pode ser dito através de uma via única.
b) Estetizar problemas e consumi-los como bálsamo ou solução:
eis um problema; c) Difundir uma visão viciada e paternalista do
Brasil. d) Utilizar esta visão tão somente como pano de fundo
para o drama. e) Conjugar estes detalhes como um produto acabado, de modo
que todo filme de WS seguem mais ou menos os mesmos padrões e idéias.
O filme O Primeiro Dia foi o estopim de um projeto em que pensaríamos
o cinema brasileiro da década de noventa para entendê-lo em
confronto com outros ciclos interrompidos do nosso cinema. Quem sabe, escrever
uma verdadeira história da Embrafilme? Ou uma verdadeira história
do fim da Embrafilme? Consideramos WS uma boa chave de entrada para o estudo
destas questões políticas referentes à história
recente do cinema brasileiro, visto a fragilidade de seus filmes e a facilidade
de seus financiamentos.
Bernardo Oliveira
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