Deus
e diabo no escurinho dos trópicos
Mal, virtualidade e heroísmo
em Mateus Meira
"A sociedade
se compõe para distribuir eqüitativamente fatores e critérios,
corrigindo distorções que possam causar depreciativos ou
catástrofes no conjuntural, de forma a permitir evoluções
equiparadas, não o seu involucional, deixando permitir possibilidades
remotas de soluções ou infalivelmente nunca além
dum subdesenvolvimento...
Há em todos os racionais a existência de um determinado fluido
psíquico cognominado "potencial", criado por antecipação
da vontade consciente para desfrutar socialmente, afissurando as pressões
por um alcance transcendental lógico. Até quando já
não exista mais essa necessidade a compor, ela se faz prevalecer
como se a vida não tivesse uma última razão. São
os estímulos sociais da ambição, cuja divisa explicita
quo non ascendet que configura essa disposição e vem estabelecer
o seu parâmetro correspondente."
(Clive Maia Barbosa, A moral da história, p.218.)
"Qual é
o herói do relato? Podemos falar do herói mesmo no caso
de um enunciado não literário? Quais são os critérios
que diferenciam o herói do "traidor", do "falso
herói" (Propp) ou dos personagens secundários?"
(Philippe Hamon)
Eduardo Guerreiro
Brito Losso (diretor do texto)
Precipito-me, com
todo fôlego verbal latino, na chama inspiradora da eureka tropical,
para formular, no anti-espaço da Internet por excelência,
a CONTRACAMPO, a seguinte questão:
Mateus Meira é um herói?
Como dizia a autoridade de V. Propp, o Freud da teoria da narrativa, todo
herói está submetido a três provas essenciais: a prova
qualificante, a principal e a glorificante.
Ponho à prova a qualidade de minha questão? Será
Mateus um vilão? Que tipo glorioso de herói-vilão
ele é? E eu, modesto criminalista do pensamento literário
tropical, como eu, enquanto sujeito destrinçador do enigma de Mateus-esfinge,
posso me fazer de objeto-vítima para sentir a morte qualificante
que me doará a chave do herói-Mateus, e, assim, passar pela
primeira prova proppiana (OBS: aliteração enigmática
que a língua, enquanto sujeito, subjulga-me como vítima
da palavra MATEUS, a heroína do sentido, que me torna vilão
de mim mesmo)?
Não sei. Não saber, todavia, não é ignorar,
é uma estratégia do sucesso, é se fazer de vítima
diante da questão para que esta, com pena de nossa dúvida
mortal perante Mateus, possa responder enquanto heroína deste texto,
que é, em si, e principalmente, através de si (adiante este
atravessamento será glorificado em nosso entendimento) um cinema
do conceito.
Digo através de si para chegar ao outro, ao herói-outro,
Mateus Meira, que me atravessa com suas balas esfingéticas, elas
que questionam minha vida na sua falta de prova de sentido, e me respondem
com a morte na posse do sentido da prova.
Justamente por isso que caio no precipício da verdadeira questão,
essa agora, em sua penetração presentânea, que atravessa
a questão anterior e a ultrapassa por sua anterioridade em relação
ao heroísmo falso da anterior enquanto anterior, pois essa questão,
no agora de mim mesmo e de você-outro, leitor-vítima (ou
mim-outro e você mesmo), é a vanguarda da questão
anterior propriamente dita e encenada, sua vilã vencedora:
Mateus é o herói do mal?
Talvez. Ele é o saco de pancadas da moral da mídia tropical.
Os meios de comunicação, papagaios do bem, mico-leões
da moral (moral essa que está em extinção), escolheram
Mateus como o vilão em si, oponente da fé e dos bons costumes,
mas o glorificam como crente do cinema. Ele crê na violência
virtual tornando-se vítima dos heróis-objetos americanos,
sujeita-se a eles como objeto sem valor de uso, apenas como valor de troca
assassinado. Sim, assassinado através de si mesmo pelo americanismo,
ele ressuscita no tropicalismo, qual Fênix que devora o fogo da
dominação global para expeli-lo não mais com misturas
de guitarras elétricas com atabaques, como fizeram Mutantes, mas
com balas elétricas pipocando no escurinho, tiros que interpenetram
nos poros sensíveis do noticiário da tela televisiva. A
matança feita pelo herói real, vingança cênica
do real sobre o fílmico, desbundou o estado de maldade enquanto
Ser.
Mas Mateus, agora herói, superando os avatares do tropicalismo,
todos hoje tão insossos, é vítima da inveja de quem
queria esse espaço na telinha, mas é dominador de quem impôs
sua colocação como espetáculo para ser saco de pancadas
da moral tropical (repito e atiro essa afirmação quantas
vezes for necessário). Se a pancada da moral é o mal, logo,
Mateus, o saco de balas da imoralidade, é a pancada do mal, e,
por conseguinte, não é mais, evidentemente, do que a moral
atravessada por si mesma, a moral da história.
Cinema e jornalismo são cúmplices do crime que deu a maior
pancada do mal na moral virtual. A dimensão virtual da moral produz
o herói do mal como seu vírus próprio, ao passo que
eu, - a maior vítima de sua bondade, contaminado pela sua linguagem
atiradeira, modesto escritor morto e vivo no ato mesmo da escritura tropical,
neste texto quente, vívido, solar, no raiar de si mesmo - eu torno-me
mal ao dar pancadas na moral da leitura, que é o cinema da escritura.
Assim, meu ato de escrever, no seu processar-se atual e virtual, é
o cinema da leitura: a imagem do mal cometendo seu crime em tempo real.
O crime é o vírus da narrativa, que precisa ser expurgado
com o bem do herói, um antibiótico textual glorificado na
sua eficácia de manutenção da saúde moral.
Mas minha hipótese extrema, já contaminada pelo mal assassino,
já atravessado pela sua irradiação midiática
fatal, é a de que ele é um herói da TV no real, e
também um herói do real na TV, é o crime do real
se proliferando na indignação-vítima dos telespectadores
e o vírus da TV assassinando a diversão real dos espectadores
de cinema. Por isso, o Mateus-herói globaliza mídia, cinema
e realidade entre si, seu potencial virótico serve à globalização
com uma tática bem atual: Mateus se auto-globaliza no espaço
virtual para se desregionalizar-se em tempo viral. Essa é a globalização
do mal em si e para si mesma.
O mal em si, na sua virtualidade de vítima da moral, é o
herói da escritura, pois ela não cessa de amoralizar o cinema
em si e para si, atravessado pela sua própria imagem no espaço
de sua luz. O mal do cinema invadiu o bem da realidade e o subjulgou agora,
no sucesso solar de Mateus. Todos nós, massa amorfa e passiva,
atravessada pelo mal e enfeitada pelo bem, somos seus cúmplices
reais sob o carnaval da moral.
Mateus, mais do que Pedro Álvares Cabral, Getúlio, Collor,
Caetano, Xuxa ou Ratinho, ele é o bem do crime, o mal do heroísmo
e a moral da história do Brasil (tão bem analisada pelo
mestre dos crimes tropicais, o excelentíssimo Clive Maia Barbosa),
ele é o herói tropical do mal, não um clone, um alienado
ou replicante, mais tudo e todos simultaneamente, uno e harmônico,
um Todo com ele mesmo - ele é um TROPICANTE, o significante soberano
do Brasil, o nome-do-pai (que assassina o imaginário dos filhos
e ressuscita no simbólico), a encarnação do medo
real da moral: ele é o herói da própria vitória
do sucesso.
Assassinou o mal virtual e tropicalizou o real do cinema. Não sei
se sou o diabo da escritura, diabo atravessado pelo bem do leitor, sei
que ele é o deus (Mat-EUS) do mal midiático, MATEUS, o sol
virtual do crime enaltecido a bem de massa.
Eis a chave do enigma: Deus e diabo na terra do sol.
Mateus Meira real é o médium atual de Glauber Rocha virtual.
Eis a resolução morta de um enigma vivo, que será
requalificado com a real questão final:
será MATeus não o assassino, mas o próprio Deus Matador?
Eduardo Guerreiro
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