O Rosto de um Outro
Sondra Locke na obra de Clint Eastwood

Se, conforme a premissa bergmaniana em Persona, ficamos fisicamente parecidos com quem amamos, que espécie de sentimento nos leva a gerar um duplo? Um outro de si mesmo, que amplifica aquilo que nos é favorável ser, mas  também as nossas idiossincrasias, erros e eventuais fracassos. No cinema, a essas projeções reputamos o autor, cuja vida (obra), para nós, são os filmes. Mas nem todos autores têm a coragem de sê-lo implacavelmente. Ao longo de sua extensa carreira, Clint Eastwood, mesmo quando sua aura de autor não passava de mais uma especulação européia, nunca se esquivou dos riscos, nem se entregou às facilidades da autoidealização ou complacência. Sua imagem sempre foi tão franca e direta que sequer era preciso identificar suas obsessões e recorrências para lhe outorgar uma poética.

Em Josey Wales (1976) seu caminho se cruzou com o de Sondra Locke, os dois no meio de uma caravana do velho oeste. Ele um proscrito em busca de vingança, ela a frágil silhueta de mulher num mundo masculino. Daí em diante começaria, a despeito do tumultuado relacionamento afetivo do casal fora das telas, uma parceria cineasta/atriz das mais interessantes.

Há, pelo menos, dois filmes menores de Eastwood, nos quais o maior interesse reside na maneira como Sondra Locke encarna o duplo da personalidade cinematográfica de Clint, ele também ator e diretor em ambos. Sondra é a prostituta perseguida pela máfia de Rota Suicida (Gauntlet, 1977). Um policial bêbado e descartável é designado para escoltá-la. No trajeto, eles se apaixonam e é tal o paroxismo das situações e perigos enfrentados pela dupla que naturalmente essa história de amor só pode se concretizar como uma história de fuga, inclusive dos papéis a eles atribuídos como par romântico.

Assim a personagem intrépida e desbocada de Sondra torna-se peça-chave num jogo de cena  entre o misógino e o feminista. Quer dizer: se ela é, na aparência, a mulher originada da costela de Eastwood, sem autonomia dramatúrgica, há ali, ao mesmo tempo, uma entrega irrestrita do que o próprio Clint poderia representar (como ator e ícone) em favor do outro, de Sondra. Então a prostituta em perigo, que poderia muito bem ser uma decoração, um simples mote para algumas das mais inverossímeis perseguições da história do cinema, de repente é parte essencial de Eastwood, ora seu escudo, como o ônibus de viagem transformado em bunker ambulante, ora sua espirituosa voz, capaz de levar um policial preconceituoso e machista a literalmente sair da estrada por meio apenas de xingamentos  – ainda não inteiramente um duplo, mas o processo já estava em curso.

Com Bronco Billy (1980), Sondra voltaria a trabalhar com Eastwood na pele de uma milionária arruinada que se junta a trupe circense comandada por Clint. No entanto, é em Impacto Fulminante (Sudden Impact, 1983) que teremos o ponto alto dessa parceria.

No quarto filme da franquia "Dirty Harry", até o chefe de polícia  já não sabia mais o que fazer com o anacronismo do personagem e o envia para solucionar uma onda de crimes numa cidadezinha litorânea. Engana-se quem imagina que esse deslocamento corresponde a uma remodelação do velho Harry. Ao contrário, ele o aprofunda. Temos dois Harry: o perseguidor e o assassino do mesmo lado do córner, como nunca se viu tão claramente antes na série. Pois cada vez que Sondra Locke empunha sua arma  para se vingar dos agressores impunes, mais fortes ficam os contornos desse inusitado e violento palíndromo visual entre a justiceira e Harry. Mas, note-se, a assassina vivida por Sondra é ainda uma artista plástica, sensível e sedutora, nem por isso menos capaz de matar. Funciona como uma espécie de consciência externa do truculento policial.

Eastwood seguindo a mística fatal de seu personagem não procura um cúmplice, uma justificativa moral para o secular “olho por olho”. O duplo para Clint é, sobretudo, uma forma de entendimento do que se é, das motivações e atos mais sombrios, sempre assumindo toda a responsabilidade. E Sondra foi seu rosto nesses filmes, sem nunca se parecer com ele.

Adolfo Gomes


 Abril de 2013