Se a Morte tivesse um rosto, bem poderia ser o de Vincent Price. Haveria os olhos azuis, da cor de duas piscinas ao sol, bem como o bigodinho aristocrático. As sobrancelhas, curvas, em forma de ondas e os lábios grossos comporiam o conjunto. Rugas, profundas linhas a denunciar que este rosto mudou muitas vezes de expressão ao longo dos anos, desenhariam a assinatura do criador – seja ele quem for. Talvez não parecesse uma fisionomia exatamente assustadora. Não para os padrões de hoje, em que a morte quase sempre esconde-se atrás de máscaras grotescas e jogos sádicos. Price é do tempo em que matava-se civilizadamente.
Mas, não se engane: este homem já caminhou por muitas vielas escuras, corredores de castelos vitorianos parcamente iluminados (fruto do senso estético do bruxo que o habitava), teatros semi-abandonados, criptas em noites de trovão e outros ambientes igualmente tenebrosos. O suficiente para conhecer as manifestações do medo e os truques necessários para provocá-lo. Sim, temei Vincent Price, caso tenha o infortúnio de se deparar com sua figura esguia, vestindo uma capa preta de gola alta, no exato momento em que abrir a porta de um aposento iluminado unicamente pelo luar da meia-noite.
O pequeno exercício de imaginação feito aqui não foi sem propósito. Nos filmes de horror em que o ator esteve, o que mais se usava, além de trajes negros e velas bruxuleantes, era a imaginação. As quatro obras de Price escolhidas para compor este texto certamente exercitarão o nosso senso de fantasia, atividade esquecida pela maioria da produção comercial de terror contemporânea (em que há profusão de efeitos especiais computadorizados e violência explícita, como nas séries Jogos Mortais e Premonição). Estamos falando de uma arte quase perdida, portanto. Quase, pois ainda que o modelo “ator aterrorizante” esteja em desuso, a força vital destes filmes é enorme. Como vampiros, são capazes de dormir por décadas e, motivados por algo, provavelmente a sede por sangue, despertarem. Ajudemos o despertar dos vampiros.
Imagem em ação/Imaginação
Como quase sempre havia pouquíssimo dinheiro nas produções, os cineastas, para executar suas ideias, precisavam ser criativos. Roger Corman, diretor de O Corvo (Roger Corman, 1963) e Muralhas do Pavor (Roger Corman, 1962), talvez tenha sido o mais inventivo artista a dirigir Vincent Price. Como filmar um duelo entre poderosos bruxos, quando o orçamento total da obra mal alcança os cinco dígitos? Ora, utilizam-se efeitos fotográficos com luzes coloridas – de resultado belíssimas, por sinal – e delega-se o resto aos atores. Tarefa relativamente fácil, quando se tem, além de Price, Boris Karloff (imortalizado por interpretar a primeira versão cinematográfica de Frankstein, lançada em 1931), outro que muito bem poderia emprestar o rosto à Morte. Dar aos atores tamanha responsabilidade, como se faz no teatro, em que os intérpretes são a razão de ser da arte em questão, não significa subaproveitar o cinema como força de expressão autônoma: um arquear de sobrancelhas de Price, mostrado em close é potencializado pela câmera e, se repetido no palco, sequer seria notado.
Em Muralhas do Pavor, uma adaptação de três histórias de Edgar Allan Poe, vemos, no conto O Caso do Sr. Valdemar, outra saída formal bastante simples, e possível apenas pelo cinema, encontrada para representar o impossível: um estado de semi-consciência pós-morte. Deitado na cama, a face imóvel de Price é iluminada por diversas cores. Corman, mais uma vez, por meio de luzes e expressões de um rosto, transforma em imagem concreta aquilo que habitaria apenas o reino da imaginação, caso limitações técnicas ou orçamentárias fossem realmente restrições.
Por falar em imagem, é justamente este o tema central de As Sete Máscaras da Morte (Douglas Hickox, 1973) e Dr. Morte (Jim Clark, 1974). Obras involuntariamente irmãs, ambas realizam um trabalho de desconstrução da imagem de Price. A primeira tem como pano de fundo o teatro, e narra a jornada de Lionheart, um (mau) ator shakespeariano que decide eliminar críticos de arte que atacaram sua interpretação exagerada. Ideia divertidíssima, quando se sabe que “na vida real” Price recebeu, algumas vezes, o mesmo parecer. Ficamos, então, sempre em dúvida se o ator está incorporando Lionheart de maneira exagerada propositalmente ou não.
Já em Dr. Morte, o desmembramento do corpo de trabalho de Price é feito por meio do cinema: Paul Toombes, um famoso ator de obras de horror estreladas por um personagem apropriadamente chamado Dr. Morte, é perturbado pelas imagens dos seus longas-metragens, quando pessoas próximas a ele são uma a uma assassinadas (o criminoso reencena as mortes dos filmes de Toombes). Trechos de O Corvo e O Caso do Sr. Valdemar compõe o painel de imagens que atormentam o pobre intérprete. Seria Vincent Price, e não Toombes, quem estaria sendo assombrado por sua persona cinematográfica? Dr. Morte dá adeus aos velhos filmes de horror enquanto, abatido, vislumbra o futuro. Em determinado momento, há uma festa a fantasia em que, evidentemente, os participantes estão ou maquiados ou mascarados. Ao perceber, Price diz, em tom nostálgico: “antigamente os monstros vinham como eram”. Ou seja, nos bons tempos não eram necessárias máscaras e disfarces (itens que, quatro anos depois, com o lançamento de Halloween, tornar-se-iam elementos obrigatórios).
Para comprovar que a única máscara que atores da tradição de Price precisam vestir é o próprio rosto, Dr. Morte termina com Peter Cushing – também famoso pela carreira no terror – maquiando a face até transformá-la na exata feição de Price (cujo personagem, Toombes, havia morrido). É tudo muito claro: Toombes/Price pode ter perecido (em corpo e em forma de arte), mas haverá sempre alguém para carregar o legado. A imagem de Vincent Price continuará a nos atormentar.
Wellington Sari
Abril
de 2013
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