007 – Operação Skyfall
Skyfall, Sam Mendes, EUA, 2013

Filme de celebração: os 50 anos de Bond. Nos cinemas, claro, mas poderia ser do próprio agente. Esta idade tão madura é um convite à autoreflexão. Quem sou eu? Qual meu papel no mundo? Ainda sirvo para algo? Meu passado, tão longínquo, continuará a me assombrar?

A fase de longas protagonizados por Daniel Craig já é conhecida por ser aquela em que há uma reavaliação de James Bond, algo que se ensaiava desde Pierce Brosnan, mas que, com este ator, nunca se concretizava plenamente: o espião era chamado de relíquia machista da Guerra Fria nos diálogos e, nas cenas de ação, agia exatamente como uma relíquia machista da Guerra Fria. Não poderia ser diferente, uma vez que a interpretação de Brosnan era moldada para fazer caber o espírito de Sean Connery e Roger Moore. Com Craig optou-se pelo exorcismo. Sua composição de personagem, mesmo seu tipo físico, em muito pouco lembra os Bonds anteriores. Foi preciso atravessar a tempestade, a violência e a desarmonia da câmera-na-mão trôpega e da violência cheia de secreções de Cassino Royale e Quantum of Solace para que Bond encontrasse a harmonia em um mergulho ao passado. Em Skyfall, James Bond é jogado no abismo e morre. De lá, renasce outro, muito mais próximo aos seus antepassados. Renasce, portanto, velho.

Esta proximidade se dá, principalmente, de dois modos: por um embate - tecnológico contra arcaico, laptop contra Walter PPK – e pela gradativa reintrodução de motivos que se constituem como marca da série, e que tinham sido relativamente abandonados recentemente, no processo de desconstrução do personagem – Moneypenny, o Aston Martin DB5 da era Connery, a vodca Martini, batida e não mexida. Neste sentido, portanto, Skyfall é um filme retrógrado. Porém, este é o sentido que menos interessa, afinal, o 24º longa-metragem de Bond é, dentro do conjunto, uma extrema novidade. Pela primeira vez em 50 anos, é possível falar sobre a imagem. Um simples exemplo ilustra esta afirmação: em determinada cena, ao invés de ouvirmos o espião pedir uma vodca Martini batida e não mexida, vemos, em primeiro plano, o copo com a bebida sendo batida, enquanto Bond aguarda, ao fundo. Apesar de Sam Mendes não ser um grande diretor, é inédita a iniciativa dos produtores da série em contratarem um cineasta de relativo “prestígio”. De alguma maneira, premeditada ou não, Skyfall parece realmente nos convidar a olhar para a tela.

As perguntas feitas no primeiro parágrafo permeiam a obra e, sem dúvida, funcionam um dos seus motores. Entretanto, são respondidas tão abertamente que um crítico, ao decidir analisar este ponto do filme, estaria, simplesmente, parafraseando-o. A sequência do julgamento de M faz todo o serviço sujo de autoanalisar a trama, com seu vilão que não defende bandeiras, nem agita ideologias claramente demarcadas (tirando a ideologia da grana, claro). É na grande sequência do topo do prédio em Shangai que está todo o filme. Qualquer tentativa de desvio desse momento só poderia denotar cegueira. Ali, vemos Bond observar um bandido por entre vidros e luzes coloridas. O que é uma metrópole, senão isso? Tsai Ming-liang já havia demonstrado essa configuração labiríntica comum a todas as grandes cidades em A passarela se foi. Mendes retrabalha a profusão de imagens projetadas com ajuda de luzes artificiais dentro do cinema de gênero, sem motivar a encenação com valores simplesmente turísticos. Ou seja, o espaço, em tal cena, é realmente algo que influi na ação, ao invés de ser apenas pano de fundo. Há uma constante tensão gerada pelos reflexos, quase como na sequência final de A dama de Shangai. A pulsão das luzes, majoritariamente azuis, tem algo de onírico, de espetacular, quase como se a cena fosse um mundo à parte, localizado em algum ponto do futuro daquele mesmo local em que um dia esteve a casa de espelhos no filme de Orson Welles.

Quando a tensão alcança o ponto em que explode a violência, é evidente que o espião precisa quebrar os vidros, bagunçar a ordem sintética, destruir as imagens artificiais dos Bonds refletidos. Desse momento em diante, o agente deixa de ser “desconstrução” e volta a ser o objeto coeso e convicto do seu papel no mundo dos longas-metragens anteriores a Craig. Não é mero acaso que o desfecho dessa sequência – a verdadeira sequência de renascimento, ou retorno, se preferirmos – mostre a bondgirl, lindíssima, enquadrada através da janela, ao lado de outro quadro, A woman with a fan, de Modigliani. A relação de Bond com as mulheres, tão questionada (mais especificamente: acusada de misógina) no decorrer dos anos, deixa de ser uma preocupação. A paixão pela beleza da mulher torna a ser festejada, com a ajuda de estouros, não de fogos de artifício, e sim de balas de revólver que arrebentam vidros para deixar penetrar o vento que agita os cabelos da mulher de pescoço fino como a musa de Modgliani e de corpo esbelto como os prédios de Shangai. Há, sempre, muitas mulheres bonitas nos filmes de 007. Quase nunca elas estão em perfeito arranjo com o espaço, como aqui.

Se o cinema nasceu, como escreveu Jean-Paul Torok, para filmar a morte de mulheres em close up, o processo de renascimento concebido em Skyfall é um ato de cinema. A invenção dessa máquina do tempo que são as imagens em movimento partilha do mesmo propósito paradoxal desse novo Bond: voltar ao passado, com a ajuda do novo. A bondgirl é capturada pelo vilão, como no cinema (e na literatura) de antigamente, e é executada impiedosamente em um close up atroz. Não devemos nos esquecer da outra morte feminina, ainda mais significante, a de M, encenada em um casarão escuro, o equivalente ao porão poeirento da memória. Ela morre para reestabelecer a antiga ordem, a ordem originária, dando lugar à figura masculina. Voltamos a 1962. No mundo politicamente correto de hoje, é sempre um pouco subversivo voltar à sensibilidade do passado e eliminar a chefe mulher para dar lugar ao chefe homem, por exemplo. Outra vez, um paradoxo do tempo: voltar ao passado é renovar o presente. Toda a sequência final é calcada nessa ideia de retorno e, ao fazer isso, ao levar os personagens para o exato local em que Bond foi criado, Skyfall inverte uma das leis de ferro da série James Bond: o espião, ao invés de atacar o esconderijo do vilão, fica na defensiva, atraindo o bandido para a armadilha. O casarão mal assombrado – fantasmas não desfilam diante da câmera, mas, certamente ela, a casa, é filmada como se estivesse prestes a liberar seus demônios, como se, atrás da porta, espreitasse uma má lembrança, um pensamento nefasto soterrado no subconsciente – possibilita o encaminhamento para um clímax bem pouco espalhafatoso e alegre. Dentro de uma capela, morrem a mãe (M) e o filho bastardo, o Jesus Cristo que deu errado. Bond vence, literalmente, pela faca – e não poderia ser portando outra arma que este velho navio de guerra enferrujado e antiquado, como o Temereire do quadro de Turner, mostrado em uma cena emblemática do longa, acabaria com o mal, ao mesmo tempo em que faz a conexão direta com o passado mais primitivo possível, quando havia o homem e sua ferramenta e nada mais; algo bastante coerente ao se narrar mais uma vez um mito também bastante primitivo que é o da destruição e restauração.

Estranha maneira de comemorar 50 anos.

Wellington Sari


 Abril de 2013