Sobra um Homem

Arremessem em uma fossa todos os críticos de cinema de Paris, e encham esta fossa: nada mudará. O cinema, livre, tranquilo, inocente, continuará seu próprio rumo.

Arremessem na mesma fossa todos os diretores de fotografia de Paris, e encham esta fossa: tudo estará perturbado. O cinema, travado, inquieto, ameaçado, parará.

A única coisa que sei sobre a crítica cinematográfica é que ela não serve para nada; que é um jogo; que é um exercício amável, às vezes humilde, às vezes insolente; que é um meio de expressão, e não um meio de análise, de observação, de reflexão; que é um álibi, uma máscara, uma camuflagem.

Para além da crítica, há sempre um homem que fala de si mesmo, que se descreve, que se explica. Trata-se de seus gostos, de seus humores, de sua pele. E nada além. Na prática, a objetividade não existe. Deixemos no canto os críticos impressionistas, esses pedantes, esses mesquinhos... Falaremos de críticos sábios, críticos coerentes, críticos imponentes.

Uma primeira fornada, e não é a menor, compreende a política. O filme é um discurso engajado. O diretor, um aliado, ou um inimigo. No centro, está a crença. E cada crítica é um referência a esta crença. Duas histórias do cinema, a de Sadoul, e a de Brasillach, são assim prisioneiras, e com uma tal cegueira, e com uma tal teimosia, desta via política que direciona tudo, que amalgama tudo, que falsifica tudo.

E quem teria estômago de falar em objetividade, agora que se trata antes de encontrar as armas para suas ideias, de procurar as munições para artilharia política? Mais da metade da crítica é, dessa maneira, disciplinada, mobilizada, condicionada.

Passemos para a outra metade. Não está mais em questão a visão política, mas a visão estética. Trata-se de sustentar, de defender, de assegurar um certo estilo de cinema, e portanto de rechaçar tudo que se opõe a este estilo, tudo o que não corresponde a este estilo. Há, como ponto de partida, uma escolha, e esta escolha é puramente subjetiva. “Nós amamos este ou aquele cinema, e este ou aquele autor que o representa”. Sempre se retorna a esta afirmação cândida, e simpática, mas que em nada corresponde a imagem que se faz de uma crítica objetiva.

E rapidamente alcançamos ao que eu chamo de objetividade limitada, a objetividade cerceada. Fulano será objetivo falando de Lang, mas não ao falar de Clément. Outro só será justo com Losey. Um terceiro com Fuller. O quarto com Preminger. É a objetividade colocando peças no tabuleiro.

Primeiro ponto: a crítica nunca é objetiva, porque o homem nunca é objetivo. Somente uma máquina poderá ser objetiva, e a crítica robótica não existe ainda.

***

Se o crítico não é objetivo, e eu acredito nisso, sobra um homem que escreve sobre o que ele gosta, sobre o que ele desgosta, mas sempre com aquela vontade profunda de afirmar sua própria existência.

Ele escreve, citando, conforme sua natureza, Valéry, Heidegger, Tintin ou São Tomás; ele escreve de forma elegante, de forma pedante, de forma debochada; mas sempre escreve para se impor, portanto para estabelecer suas ideias, para estabelecer sua sensibilidade.

Há somente duas famílias de críticos: os críticos de ideias, e os críticos de sensibilidade, os críticos racionais e os críticos instintivos. Mas, tanto uns como outros, passam longe da objetividade. Por temperamento, eu desconfio muito mais da lealdade dos críticos de ideias do que a dos críticos de sensibilidade. Mas as ideias, são como jogos de cartas, fazem passar o tempo. E os críticos de ideias têm uma bela e grave clientela.

É simples: os clientes dos críticos de ideias pensam como eles; os clientes dos críticos de sensibilidade sentem como eles. A crítica não passa de um contador Geiger, apitando assim que se passa em frente de um filme desta ou daquela matéria, desta ou daquela pele, e os clientes sabem ao que se ater. Um sinal, e nada mais.

No mais, a crítica faz circo, folclore, e se amamos o circo da crítica, a lemos com certo prazer, quando não se leva a uma opinião definitiva, brevemente expressa. Daí a necessidade de não levar nada em conta, nem do gosto do público (o público, é o que exatamente?), nem o espírito do jornal no qual se bate o cartão. Além do mais, o espírito do jornal, taí uma coisa que me faz sonhar. O espírito de um jornal é, em geral, o orçamento de sua publicidade. Ou então nada é.

***

Vocês me dirão: o que faz o cinema nesta situação? Terminado sua função de contador Geiger, o crítico, com efeito, não possui nada além de limitar-se a ela. A crítica jamais deu um bom conselho a um realizador, a um criador. O crítico que aconselha é um animal perigoso, muitas vezes grotesco, e que é preciso caçar com a arma em riste. Tudo que é feito na arte, é feito contra a crítica doutrinária, contra a crítica por princípio. É com o desamparo que se aprende como dormir com uma mulher.

A raça é execrável, e na maior parte dos casos, é gente mesquinha e rabugenta, alimentada por uma inveja abominável que se espalha em discursos pedantes.

Um filme, ou se admira ou não se admira, se estima ou não se estima. Em uma frase, é isso. É como um homem, é como uma mulher; a amizade, ou o amor não vem após uma sessão de psicanálise. Negócio fechado. Não há enrolação. Se se enrola, é que somos pouco dados para a amizade, e menos ainda para o amor.

Um filme, são detalhes, são tensões, e o acordo destas tensões com estes detalhes. Portanto um caráter. Um filme é um caráter. Uma certa maneira de ver as coisas, os seres, e de aceitar a realidade. Estamos de acordo ou não estamos. Se eu amo Ford, Renoir, Walsh ou Aldrich, é por razões próximas daquelas que me fazem amar Losey, Fuller ou Boetticher. Mas estas razões, se elas são próprias ao estilo, são próprias sobretudo do caráter do olhar. Eles olham de uma maneira que me agrada. Com isso, quero dizer o que eles esclarecem, sublinham, denunciam pelo recito aquilo que me toca.

E o estilo, este velho baile, não é agora mais do que orgulho e vontade de um homem. Já se escreveu sobre isso em todas as línguas. E que toda estética remonta a uma metafísica. No cinema, toda a mise en scène remonta ao homem. E eu não consigo chegar a uma definição de como esta mise en scène me toca, por quais procedimentos, por qual técnica, por qual fórmula ela se estabelece; eu não chego nem mesmo a saber o que ela tende a demonstrar, se ela demonstra alguma coisa. O que me importa é por quê ela me atinge; o que me importa é alcançar o homem que se esconde, de constitui-lo, de pesar suas paixões e seus ódios, de descobrir nele algo em comum. Quanto mais bem demarcado este homem, mais seus contornos serão fortes, e mais as coisas serão simples, é o inimigo e o amigo. É preciso rejeitar um filme como rejeita-se um homem; e aceitá-lo como se aceita um homem. Todo o resto é literatura.

Pierre Marcabru

(Originalmente publicado em Cahiers du Cinéma, 126, Dezembro de 1961. Tradução do francês por João Gabriel Paixão).


 Abril de 2013