Holy Motors
Leos Carax, França/Alemanha, 2012

Há uma permanente melancolia nas imagens de Holy Motors que contrasta com a sua exuberância aparente. É melancolia inerente a todo e qualquer espetáculo: do corpo prostituído do ator, que se submete às exigências da performance e aos desejos do público. No final de um dia cansativo, vemos Denis Lavant dar um longo suspiro antes de adentrar em uma casa para sua última “cena”. Essa e outras cenas intermediárias que pontuam a transição entre um encontro/esquete e outro – como a conversa com o “produtor” que vem transmitir as reclamações dos clientes, que anseiam por mais realismo – delineiam uma figura humana que serve de fundo para a exuberância do resto do filme, para a exuberância do espetáculo. Holy Motors é, assim, um filme sobre o ator. Não um ator específico, mas sobre o ator em geral. Pouco ou nada sabemos sobre o personagem de Lavant em particular, e a crise trazida pelo filme é justamente esta: estamos sempre diante de performances, 100% do tempo.

Mas Holy Motors é também, igualmente, um filme sobre o cinema. Do cinema, Leos Carax aponta seu caráter ao mesmo tempo luxuoso e de barraca de feira improvisada: o luxo da limusine que esconde a pobreza do backstage – os truques, as tralhas, o cansaço e o alcoolismo. Carax realiza vários filmes em um (um drama familiar, uma animação, um musical etc.), promovendo uma espécie de retorno ao “cinema de atrações” do início do século XX. Isso fica evidente não só pelos trechos de early films que estampam o início e o fim do filme, mas pelo próprio personagem interpretado por Lavant, que é pouco mais do que um mágico ilusionista, um artista de rua vagabundo que apresenta performances de gosto duvidoso. O cinema herda, assim, o corpo prostituído dos vaudevilles e dos music-halls (diferentemente do teatro, cuja origem é nobre, clássica). Esse gene “sujo”, longe de ser eliminado, permanecerá vivo no olhar impuro dos espectadores, um olhar consolidado na escuridão da própria sala de cinema.

A força do filme, porém, está em revisitar esse “cinema primitivo” não guiado pela nostalgia, mas dotando-o de um olhar próprio e contemporâneo. A noção de que cada esquete é um show independente implica que cada cena seja explorada em toda a sua intensidade possível. Uma intensidade que pode ser buscada ora em um plano/contraplano entre um pai e uma filha, ora na maravilhosa sequência musical, onde Carax explora a amplidão de um prédio abandonado em coreografias discretas e melancólicas. No fim desta mesma cena, há sem dúvida um dos momentos mais bonitos do filme, quando Kylie Minogue se equilibra, como uma acrobata, junto aos letreiros do prédio e a câmera se precipita em grua, mostrando-nos a imensidão de Paris iluminada em baixo. É o corpo prostituído que deve morrer para o nosso gozo, como num melodrama, sob o fundo de um cenário exuberante e luxuoso. A melancolia, a banalidade e solidão do corpo do ator talvez nunca tenham sido tão evidentes como nesta cena.

Não menos intensa é a cena de abertura, que institui o funcionamento do filme. Irresistível aqui a tentação de descrevê-la, para ver se conseguirmos capturar uma ínfima fração que seja da força e do mistério daqueles movimentos: uma longa panorâmica atravessa um quarto, acompanhando um personagem anônimo interpretado pelo próprio Carax. Da cama, passamos por uma ampla janela que dá para a visão noturna de uma cidade, até chegarmos a um estranho papel de parede. O personagem força uma abertura sobre o papel de parede, que dá diretamente para uma sala de cinema. Ele desce os degraus e vemos a amplitude da sala. Uma fera cruza o corredor entre as fileiras. A sala de cinema é esse espaço que conjuga a realidade da janela, a ilusão do papel de parede e o medo das feras. Um espaço que será devidamente implodido pelo filme: dali seremos expelidos e arremessados nas ruas de Paris. Carax coloca “cinema”, “realidade” e “consciência” sobrepostos em um mesmo plano, fazendo deles uma mesma matéria. Se temos frequentemente a impressão de que espaço diegético de Holy Motors, com suas performances infinitas, é o próprio “cinema” em geral, isso não impede que o filme seja um registro fabuloso de Paris, de suas ruas, seus espaços, prédios e luzes, ou seja, da “realidade”. Analogamente, “realidade” e “performance” podem aqui ser constantemente invertidas, como na cena final, em que a chofer interpretada por Édith Scob veste uma máscara para sair do estacionamento. Dessa indiscernibilidade absoluta deriva uma liberdade da qual Carax se aproveita tanto quanto possível, para o prazer de alguns e para a perplexidade de outros.

Calac Nogueira


 Abril de 2013