Ruy Gardnier
O Globo; fundador da Contracampo

Quantos filmes você vê por ano ou por mês? O que pensa desta quantidade? Qual a sua relação com o circuito comercial?

Não faço ideia. Deixei de ter caderninho em 1996 ou 1997, e quando as séries de TV passaram a ser um hábito, aí a coisa ficou ainda mais difícil de quantificar. Há períodos em que vejo mais filmes, outros em que vejo menos, muito baseado nos meus cronogramas de trabalho e, eventualmente, na oferta de mostras cinematográficas que me interessem. Não sei se vejo muitos ou poucos filmes: creio que vejo o suficiente para alguém que é ciinéfilo e também trabalha com isso, ou seja, precisa ficar informado do que acontece, e isso significa também ver filmes de cineastas que não são de predileção (ainda que eu faça isso cada vez menos). Vejo muitos filmes no circuito comercial, mas evidentemente os filmes brasileiros que entram em circuito refletem apenas palidamente o que se produz de mais interessante por aí, como se sabe. Ainda assim, algumas produtoras recém-chegadas no mercado vêm conseguindo compensar lacunas significativas e dar um ânimo novo ao nicho de “cinema de arte”.

Que qualidades você valoriza em um crítico?

O essencial de um crítico está no modo como ele problematiza as questões expressivas mais determinantes de uma obra, ou seja, como ela apresenta os elementos expressivos de modo a fazer deslocamentos de sentido que operam na sensibilidade do espectador. Isso é o mais importante na tríade fruição-compreensão-comunicação que compõe a atividade crítica. Mas cada um separado é também fundamental: saber entregar -se apaixonadamente à obra e às imagens, mesmo quando elas não correspondem o sentimento; ter o conhecimento prévio e a sabedoria imediata para contextualizar essas imagens no meio do turbilhão de signos de nosso tempo e dos tempos passados, para saber o peso de cada elemento expressivo; e por fim a clareza e o estilo na escrita, que já compõe por si só um outra obra expressivo, o texto, mas que só deve existir em função da obra que o demanda, e não das elucubrações idiossincráticas que tangenciam a obra mas que no fundo só revelam o poder do ego do escriba.

Enquanto crítico, você pensa no que ficará de um filme daqui a 10 anos?

Eu não acredito que um bom filme ou um grande filme tenha data de validade. Dessa forma, considero natural que o trabalho do crítico diga respeito à posteridade de um filme ou da obra de um cineasta, ainda que a arena e o embate de ideias se dê no tempo presente.

Como você avalia a influência da crítica no meio cinematográfico (realização, distribuição, público etc.)?

Muito relativa. A influência da crítica tende a ser nula em filmes que têm grandes lançamentos e muito dinheiro de publicidade, pelo menos no que diz respeito à bilheteria. Para filmes brasileiros, considero que o público já obedece a um raciocínio automático de que os críticos gostam mais desses filmes do que eles merecem, e portanto um grande elogio de um filme brasileiro não significa mais muita coisa. O único eixo em que considero que uma crítica positiva ou negativa faça diferença na bilheteria é o do “filme de arte” europeu ou asiático. Isso a curto prazo. A longo prazo, a influência da crítica é determinante e um dos fatores mais decisivos para a posteridade de uma obra.

Quem é o público leitor de crítica? Você pensa de que maneira serão recebidos seus textos?

Há o público que quer informação para escolher que filme ver, e usa a crítica como jornalismo de serviços, como se consulta a meteorologia. É um jogo lícito mas frustrante, porque as pessoas têm gostos e bagagens diferentes, e não há um valor objetivo muito claro a ser avaliado na crítica, especialmente a crítica de jornal, com seu tamanho de mil caracteres. Para o público que se dirige à crítica depois que vê o filme, aí sim é o jogo mais estimulante e é o jeito de haver um refinamento de olhar na maneira de digerir e prolongar a experiência do filme.

Quanto à segunda pergunta, levo sim em consideração no que diz respeito ao conhecimento prévio do leitor, seu repertório, e sobretudo em que medida o filme sobre o qual tenho que escrever é mais fácil ou mais difícil de ser defendido. Por exemplo, minhas críticas de filmes de Tarantino são mais teóricas, sem pedagogia, ao passo que com outros (em jornal principalmente) sinto que é importante conduzir o leitor pela mão quase, pois já antecipo uma resistência inicial (Pedro Costa, por exemplo).

Você considera que a crítica é influenciada pela visão política e por valores pessoais? Como você avalia isso?

Ela sempre é influenciada por esses valores, mas isso se dá em muitos níveis diferentes. O nível mais primário é o crítico repudiar um filme porque, independente de todos os outros elementos expressivos apresentados, ele discorda da conclusão. Ninotchka, por exemplo, em que malgrado a zombaria tanto com o capitalismo como com o comunismo, esse último sai perdendo. Ou então o repúdio dos anticlericais ao final de Stromboli. Isso me parece pura e simplesmente filistinismo da pior espécie. Mas a questão fica complexa quando percebemos que não há uma forma objetiva de detectar valor na obra de arte e que uma das próprias matérias da arte, além da forma e das operações de deslocamento dos signos, é o trabalho com os valores, provocar um outro olhar moral em resposta ao que a sociedade apresenta. Aí a crítica é indiscernível porque certos valores simplesmente são cruciais para a interpretação da vida e dos filmes. Um bom exemplo é Michael Haneke: ninguém que já tenha lido, compreendido e aprendido com Nietzsche pode gostar de seus filmes, uma vez que eles trabalham a má-consciência do espectador de forma quase grosseira, praticamente um splatter movie da alma, e Nietzsche já vacinou seus leitores contra qualquer pregação baixa desse tipo. Por outro lado, Haneke sabe enquadrar, iluminar, montar, ritmar seu filme, escolher temas que certamente são contundentes... Tudo que uma crítica tendendo à objetividade deveria elogiar...

O que o leva a ler/escrever uma crítica?

Criei a Contracampo em 1998 e criei a Camarilha dos Quatro em 2008 com um único objetivo, e é o mesmo objetivo que tenho quando escolho pautas e decido escrever sobre certos artistas: ampliar o repertório crítico da minha localidade e do meu segmento de compreensão da língua (Rio de Janeiro -> Brasil -> língua portuguesa), primeiro para mostrar que certas coisas existem, tirar literalmente do buraco, como fizemos com Candeias, Chang Cheh, Hong Sang-Soo ou, na música, com Eliane Radigue, Florian Hecker, Christian Fennesz, e criar um pensamento em cima, uma tentativa de compreensão e sedimentação das sensações selvagens vivenciadas em suas obras. Ou seja, a resposta simples para a pergunta é: ampliar a comunidade de admiradores.

Considera que, no seu trabalho crítico, há uma diferença de abordagem para os filmes brasileiros?

Cada vez menos. Mas é óbvio que existe e deve haver, em alguma medida. Há certos filmes que parecem depender da crítica, embora eu considere no fundo da minha mente que eles não dependem, mas são filmes sobre os quais o crítico de alguma forma se sente responsável, sobretudo os filmes mais arriscados que não chegam a ser bons, mas também não são péssimos. Há uma enorme sensação de condescendência, isso e visível sobretudo em Tiradentes ou na Semana dos Realizadores, e o resultado são críticas que adoram tergiversar para não ter que afrontar o tema de frente e chegar à desagradável conclusão. Por outro lado, existe a ideologia pauloemiliana, que hoje considero inadequada porque o público ao qual se dirigia não existe mais, ou é um fator irrisório nos operadores valorativos da crítica (a saber, a elite esnobe que não olha para o cinema brasileiro), ora porque o próprio cinema brasileiro comercial já é uma coisa defendida pelo status quo, via Globo Filmes et al. Os equivalentes audiovisuais do que Paulo Emilio queria discutir naquela época são hoje os programas de comédia da televisão, as coqueluches do youtube... Não os filmes da Globo Filmes nem os independentes de Minas Gerais e do Ceará, certamente.

Diga honestamente o que você pensa do panorama da crítica de cinema no Brasil hoje. É positivo ou negativo?

É melhor do que era quando comecei a escrever sobre cinema. É pior do que era quando a Contracampo esteve no auge. No terreno “nobre” da mídia impressa, a crítica ainda sofre por não ser levada muito a sério, por ser apenas um dado de cobertura jornalística, e não creio que há condições para que isso mude num futuro próximo. Na internet, há gente boa escrevendo do lado de gente nem tão boa assim, mas considero que todas as tentativas mais sérias e consequentes (aí incluindo Contracampo, Cinética, Foco, Filmes Polvo, Interlúdio etc.) são lentas demais para a intervenção crítica, e parte da crítica precisa acontecer no calor da hora, com o sangue quente e ao mesmo tempo com o olhar no infinito e na perenidade. Sem os dois ela arrisca ficar superficial como a cobertura propagandística ou com o olhar falsamente clínico e desafetado da academia. Em todo caso, de 1998 para cá a crítica então dita “jovem” conseguiu construir um legado que já passou para uma outra geração, e hoje ao menos temos uma cinefilia que não se contenta com o que entra em cartaz. Pode parecer pouco, mas é muita coisa.


 Abril de 2013