Francis Vogner
Colaborador da Foco - Revista de Cinema, La Furia Umana e Revista Cinética

Quantos filmes você vê por ano ou por mês? O que pensa desta quantidade? Qual a sua relação com o circuito comercial?

Depende do mês. No último mês, por exemplo, vi um pouco mais de 150 filmes, por motivo estritamente profissional. Há meses que vejo um filme por dia, em outros um pouco mais ou pouco menos. Há períodos em que vejo mais de um filme por dia, em outros dias não vejo nenhum. Há uma variação de quantidade. Tenho o hábito de rever trechos de filmes ou revê-los inteiros, por prazer, para tirar dúvidas, para entender melhor um ou outro elemento que me encuca. O que eu acho importante é sempre manter uma relação com os filmes. Ver e rever. Arquivá-los, fazer notas e tal. Eu vejo filmes atuais e filmes antigos. Não sinto a obrigação de chegar adiantado nas novidades, nem acho bonito ficar só no “cinema antigo”. Considero mais importante ficar em casa e rever um Leo McCarey ou conhecer alguns filmes do Dusan Makavejev ou do Khouri que nunca vi do que assistir uma sessão no cinema de Medianeiras ou esse filme da Nadine Labaki. Acho que é até importante vê-los, entender o que se passa no cinema e etc. Tem alguns amigos meus que discordam, mas fazer o que, né? A gente aprende coisas sobre o cinema vendo filmes ruins e medíocres também. Sempre vi, desde pequeno, uma porção de porcarias na TV, no VHS ou no cinema. O importante, com o tempo, é aprender a fazer distinções e traçar prioridades. Sou um diletante, me relaciono com o cinema por um princípio de prazer. Virou trabalho, mas não sou um “profissional” no sentido de só cumprir obrigações pontuais com os filmes disponíveis no mercado exibidor. Não faço freelance para mídia eletrônica ou impressa, portanto, se eu não quiser ver Os Penetras e O Hobbit eu não vou, não tenho esse dever. Sendo um crítico que não trabalha dessa maneira tenho esse benefício. Tem a questão do tempo também. Fazer um mestrado, trabalhar em uma porção de coisas para poder comer, vestir e ter o dinheiro do aluguel não sobra tanto tempo para explorar o circuito de cinema e por isso, pensando na economia de tempo, a prioridade dos filmes de circuito fica diminuída. Há de ter tempo para outras coisas também: estudos obrigatórios, estudos não obrigatórios, o interesse por outras áreas do conhecimento que não o da reflexão cinematográfica. Ler um livro como O Crime do Restaurante Chinês, do Boris Fausto, dar uma espiada num clássico que nunca li ou preencher uma lacuna da literatura russa, brasileira e norte-americana é importante. Não dá pra se relacionar com o cinema vendo só filmes ou se trancando em casa. Andar de ônibus e de metrô engole o tempo que poderia ser dedicado aos filmes, mas ajuda na formação literária. Por isso o circuito de cinema se tornou secundário para mim tanto em razão da contingência quanto pela escolha do que fazer com o tempo livre.

Que qualidades você valoriza em um crítico?

Inteligência, estilo, cultura, clareza e economia. Não sou contra o texto hermético, mas acho que isso às vezes serve para escamotear falta de substância, de sensibilidade ou de inteligência. Vemos isso em quem agencia demais predicados teóricos. Não gosto de modismos, os críticos que sempre admirei (Paulo Emilio, Luc Moullet, Eric Rohmer e hoje Toni D’Angela, alguns portugueses) sempre soaram um pouco anacrônicos sem, no entanto, serem. Meu problema com alguns críticos é sempre ficarem citando uns pensadores da moda, se utilizando de esquemas de análise novíssimos. Creio que um crítico deve se relacionar sim com outras tradições de pensamento, assim como, se reconhecer mais literário do que “analista de sistemas”. Acho que o crítico deve estar ciente que lida com uma tradição, tanto cultural, quanto crítica e cinematográfica. Lidar com a tradição empresta ao debate algo perene (fundamental em qualquer coisa que proponha "fazer cultura"), mas não deve, de modo algum, prestar culto, fazer reverência e pedir a benção da tradição. Assim o crítico vira burocrata da cultura, conservador. Uma coisa interessante sobre isso: hoje o Cléber Eduardo me mandou um e-mail e disse que a crítica hoje tem a mania de reverenciar pesadamente alguns críticos. É verdade. Alguns críticos, mas também muitos intelectuais-estrela se tornam baliza. Por um lado acho isso inevitável e até desejável (se relacionar com a tradição crítica é fundamental), por outro é necessário vigilância porque os postulados de uns (críticos, escritores, Zizeks da vida) podem se tornar camisa de força pra outros (críticos , acadêmicos, cineastas, público).

Enquanto crítico, você pensa no que ficará de um filme daqui a 10 anos?

Penso. O tempo tem um caráter imponderável. Pode canonizar filmes médios e enterrar grandes obras, como pode também fazer justiça a filmes que passaram batido da agitação geral no seu tempo. Acho que, se desconfiarmos, no presente, de esforços exagerados de legitimação (da imprensa, da crítica, das bilheterias, dos próprios artistas e curadores) que muitas vezes estão mais baseados em plataformas feitas de posturas e palavras do que realmente de proposições sólidas, pode-se abrir o escopo e ver manifestações artísticas mais fortes e singulares (se houver). Mas é difícil controlar esse processo, por isso há de se trabalhar com critérios vigilantes e uma dose considerável de “espírito de porco”.

Como você avalia a influência da crítica no meio cinematográfico (realização, distribuição, público etc.)?

Necessária, perigosa, banal. Necessário como ideal. O crítico deveria colocar em crise as imagens (seja dos filmes, da realidade cultural, de certa configuração social, política e econômica em que os filmes existem) por meio de interpretações dos filmes e da realidade (claro, sem se transformar no Roberto Schwarz ou quetais). Isso quase nunca é desejado porque desvela alguns embustes. Já com relação aos realizadores, creio que eles deveriam ser menos influenciados pelos críticos e serem eles mesmos críticos. Não estou dizendo para que comecem a escrever, mas que sejam tão críticos quanto ao cinema que se faz hoje quanto os críticos deveriam ser e nem sempre são. Ao contrário de alguns amigos, acho interessante que haja uma interlocução entre realizadores e críticos, mas para isso seria necessário franqueza e honestidade intelectual de ambas as partes e essas coisas nem sempre dão as caras, nem sempre são virtudes que se encontra em cada esquina. Aí mora o perigo porque, se não houver a tal franqueza e a tal honestidade, há o risco de se neutralizar o espírito crítico. A banalidade nisso tudo não é da crítica, mas das relações que às vezes giram em falso, não mudam nada e só acirram disputas de poder. Talvez hoje fosse necessário que os críticos se detivessem mais ao filme (um por vez) do que aos filmes (todos de uma vez). É isso: um filme, para depois se ir aos filmes e fazer as distinções corretas entre eles. Tem guru de araque por aí metido a crítico que só faz defesas coletivas dos filmes. O nome disso é picaretagem com direito a nariz de palhaço, orelha de espuma, gravata borboleta gigante e microfone de Silvio Santos. É feio. Pode-se dizer “o Jairo Ferreira fazia isso, defendia a geração dele no livro Cinema de invenção”. Mas ele defendia um por vez no livro dele (falava da obra e dos filmes) e não se furtou a descer o cacete no filme do Zé Celso (o Rei da vela), inventou um programa crítico, mirou a arma para as cabeças que achava que deveria explodir. Paulo Emilio não se elegeu guru, elegeram ele (o próprio Glauber) e mesmo assim ele mantinha distância disso e estrategicamente pulou fora. Isso fez um bem danado ao cinema novo e ao crítico.

Quem é o público leitor de crítica? Você pensa de que maneira serão recebidos seus textos?

O público que tenho contato é formado pelos meus amigos que são meus interlocutores. Sei que outras pessoas leem, mas não conheço elas. O leitor ideal sou eu mesmo, faço textos que eu gostaria que fossem escritos, que eu gostaria de ler. Tento sempre criar certa zona de desconforto para impedir a instrumentalização ou interpretação maluca dos textos. Não acho que eu tenha sucesso nisso, na verdade acho isso um fracasso colossal. A maior parte das pessoas entende o que quer e muitas vezes entende errado. Não acho que a interpretação das coisas deva ser tão livre, estilo anything goes. É preciso nos esforçarmos para entender o que o outro diz ou escreve, pois nunca ninguém e nenhum texto será completamente compreendido, por isso é preciso o esforço para captar algo, mínimo que seja. Sei que tem gente que não gosta do que escrevo, que acha raso, irrelevante e etc. Outros acham complicado e esotérico. Os que falam isso de mim sabem que eu também acho isso deles. Se não combinamos em nada, ao menos no dissenso, na oposição e até no rancor somos iguais.

Você considera que a crítica é influenciada pela visão política e por valores pessoais? Como você avalia isso?

Acho que sim. Mas acredito que, se a suposta visão política e os possíveis valores pessoais são entendidos como ferramentas primeiras, temos uma catástrofe. Por exemplo: valorizar Zuzu Angel por ser “relevante no trato com nossos traumas históricos” ou achar Walter Salles importante porque “ele tem o esforço de entender o Brasil”, é uma bobagem. Essa pessoa que vê as coisas assim não tem visão política, mas viseira política. Não acredita em questionamento (político), mas em marketing (político). Com relação aos valores pessoais, acho importante, porque é aí que se manifesta a voz do crítico. E isso não quer dizer que há de se fazer juízos morais, proselitismo, psicanálise e o escambau. Nada disso. Mas se o crítico não sabe de onde fala (e como fala e porque fala) reproduz o coro corrente.

Resumindo, acho que valores pessoais e visão política se manifestam na crítica, às vezes mais, às vezes menos, não importa. Mas colocar essas coisas à frente é legislar sobre o mundo e isso é uma bobagem.

O que o leva a ler/escrever uma crítica?

Ler? Curiosidade, necessidade de estabelecer relação com outras visões do filme. No fundo, o princípio mesmo é o prazer. Escrever? Necessidade, pura e simples. Essa necessidade está calcada também no prazer, mas, sobretudo, na vontade de dar forma a intuições, sentimentos e perplexidades, sejam positivos ou negativos. Vontade de conhecimento, de civilização.

Considera que, no seu trabalho crítico, há uma diferença de abordagem para os filmes brasileiros?

Não. A abordagem não é diferente, o que muda são os filmes e o campo de discussão. Quando escrevo para a Foco – Revista de cinema, para catálogos de mostras de cineastas que admiro ou pequenos textos para a Revista Interlúdio escrevo sobre o que gosto imensamente. Nelas eu sou crítico diletante. Já para outros espaços quando escrevo sobre questões (muitas vezes sobre cinema brasileiro, envolvendo filmes que gosto ou não gosto, sobre crítica) a relação é diferente porque a franqueza não vem só da admiração, mas às vezes do desgosto. Como é necessário ser franco, é preciso ser justo e verdadeiro, e até demolidor. Nas coberturas de festival que fazia para a Cinética, os outros jornalistas achavam que eu pegava pesado, que eu era injusto, petulante e etc. Era verdade e fodam-se. Eu acho que é fundamental que os críticos lidem com todo cinema, não só com o brasileiro. O crítico que só se relaciona com o cinema brasileiro opta pela mediocridade (não por causa dos filmes, mas por causa da estreiteza de pensamento ao achar que o isolamento nessa ilha da fantasia é satisfatório) e usa a tal da frase do Paulo Emilio como álibi. É bom lembrar que Paulo Emilio escreveu sobre Eisenstein, Ford, Chaplin, Vidor, Rossellini, De Sica (desceu o pau), Ray, escreveu sobre Jean Vigo, ou seja, fez mais do que a lição de casa. Quando fez a opção irrestrita pelo cinema brasileiro foi estratégia contingencial e provocadora e até hoje isso rende discussão, muitas vezes transformando o dissenso provocado por ele em cânon de interpretação hegemônica do estado das coisas. É perverso. Muito preguiçoso instrumentaliza as provocações dele usando-as como desculpa e muleta. Veja só o livro organizado pela Maria do Rosário Caetano. Tem muitos depoimentos e textos formidáveis sobre Paulo Emilio, mas alguns apedeutas escreveram um só parágrafo com um ou dois clichês (o pior cinema brasileiro nos diz mais que o melhor estrangeiro e blá, blá, blá) e deu. Dizem amém, aleluia, kyrie e shalom. Uma das tradições mais terríveis e longevas do cinema brasileiro é fazer tábula rasa. Só que esses críticos hoje são minoria e estão superados pela história. Críticos irrelevantes o mundo tá cheio, mas esses anacrônicos nacionalistas são somente fantasminhas que não assustam ninguém. Hoje todo mundo é cosmopolita (até demais), o que é outro problema. Mas, enfim, voltando à relação crítica com o filme brasileiro. Uma coisa que gosto e realmente me fascina na escrita sobre cinema brasileiro é a possibilidade de intervenção. Aqui os interlocutores, amigos ou inimigos, estão cara a cara. É uma realidade viva e dinâmica e a possibilidade de agitar um pouco as ideias é estimulante. Sendo assim, é necessário não conciliar. Sempre. Se não, vira a costumeira política de salão.

Diga honestamente o que você pensa do panorama da crítica de cinema no Brasil hoje. É positivo ou negativo?

Tá, mas qual é o panorama que vocês estão falando? As revistas eletrônicas? As revistas eletrônicas + pesquisadores acadêmicos? As revistas eletrônicas + pesquisadores acadêmicos + imprensa + blogueiros? Se for TODO o panorama (que junta todas essas frentes), vai mal, obrigado. Na verdade em toda história, ao menos no Brasil, nunca tivemos uma vitalidade galopante, cheias de intelectuais brilhantes e redações repletas de jovens turcos. A mediocridade é o tom e a regra, o bom (o positivo) é naturalmente a exceção, o invulgar deveria ser a busca de todo crítico (mas não é). Eu sou da geração que surgiu com a Contracampo e foi influenciada por ela. A revista Cine Imperfeito que fundei com Cláudio Gonçalves (hoje professor de cinema da AIC e cineasta) e o Renan Fogaça (hoje monge trapista lá no Paraná), apareceu quando só existia a Contracampo e queríamos ser como ela. A Cine Imperfeito desapareceu porque não conseguiu criar uma redação, nem um programa crítico e não éramos bons. Quebramos a cara e não deixamos nem ruínas. O importante foi essa vontade de existir em um panorama hostil. A coisa era mais difícil, ninguém considerava quem escrevia em site “crítico” (só era legitimado o inesquecível Pablo Vilaça, o crítico das multidões). Éramos conhecidos em São Bernardo como “o pessoal da filmagem”, não éramos nem “críticos” e nem “de cinema”. Hoje qualquer um é crítico porque faz um blogue ou uma revista virtual. Hoje qualquer fulano na internet adquire vocabulário acessório para ganhar respeitabilidade (“mise en scène”, “matéria”, “modulação do espaço” estão na ponta da língua), os downloads transbordam. Essas são as vicissitudes de ter a internet como meio fácil e acessível de comunicação. O filtro passa a ser o juízo e o gosto de cada um.

A Contracampo foi um fenômeno importante ainda subjugado pelos pesquisadores, talvez por ciúmes ou mesmo por incompreensão. Quando ela surgiu acendeu um rastro de pólvora, juntou uma pivetada isolada em outros estados, com estudantes de comunicação, filosofia e cinema do Rio de Janeiro, com o Cléber que era de outra geração (anos 90), com um dentista, enfim, um plantel extravagante. Naquela época – entre 1999 e 2004/2005 (que considero o fim dessa primeira fase) não existia um panorama “positivo”, existia a Contracampo que tinha textos incríveis e alguns bem fracos, o que é normal. A diferença dela foi a postura e o estilo, a intervenção na cena cultural, a descentralização da produção de conhecimento (fora da academia, fora da imprensa), a eleição de novos cânones, a mudança sutil, mas substancial, na relação com o cinema brasileiro e a cinefilia. E isso influenciou gente pra caralho, inclusive esses cineastas que estão aí e que vocês não gostam, inclusive a Foco, inclusive a Cinética, inclusive a academia. A Contracampo venceu a guerra e também perdeu. Venceu porque muitas demandas que tinha com relação ao cinema brasileiro foram cumpridas e realizadas, perdeu porque muito do que a Contracampo criou virou caricatura na web, na pena e no discernimento de um monte de escribas. Vocês sabem disso melhor do que eu.

Hoje a crítica está meio desorientada, porque não há um programa crítico claro. Não se alça mais voos altos, mas fica-se voando baixo. Quem está aí, e tem talento, pode fazer mais. Quem está ai e não tem talento, já chegou no seu limite. A Contracampo naqueles textos provocadores do Júnior, nos “cinemas falados”, fez um trabalho interessante nos últimos anos que deveria ter continuidade junto às pautas que vocês já fazem e que acho fundamentais. Mas me parece que as revistas estão na segunda marcha. Ninguém acelera, ninguém dá uma de Nelson Piquet pisando fundo ou descendo do carro para dar porrada. Na minha opinião se vocês consideram “a crítica” (essa que vocês se referem na pergunta) as revistas de cinema e os blogues (acho que é isso), acho que tá na hora de repensar os papéis e não ficar dizendo que o panorama é ruim porque a maior parte é medíocre. É e sempre será, medíocre ou mesmo péssima. Hoje acho que não há uma crítica (como programa coletivo), mas alguns críticos espalhados por aí, nas revistas eletrônicas, na academia, nos blogues, que são bons. Talvez o número desses bons críticos não dê para encher uma van ou um Ford Ka, mas eles existem. Hoje falta à “crítica” saber e coração. Não é? O resto é bafo.


 Abril de 2013