Fábio Andrade
Revista Cinética

Quantos filmes você vê por ano ou por mês? O que pensa desta quantidade? Qual a sua relação com o circuito comercial?

Realmente não faço este cálculo. Houve épocas em que mantinha algum registro do que via. Hoje esse registro é bem disperso – anoto algumas coisas dos filmes que me fazem desejar algumas coisas, mas é também um hábito meu perder meus caderninhos (perdi mais um na última vez que fui ao cinema, esta semana, ver A Hora Mais Escura). Hoje, tento manter um diário com anotações, mas dificilmente consigo escrever todo dia, e esse paradoxo pra mim é bem expressivo da minha relação com o cinema. Há épocas em que vejo um filme por dia, mas também há outras em que passo semanas sem ver um filme se quer – principalmente quando estou trabalhando diariamente em um. É claro que ir ao cinema é um atividade vital para um crítico, mas o arquivismo desse hábito nunca me atraiu como idéia ou prática.

Que qualidades você valoriza em um crítico?

Uma preocupação real com o texto, antes de mais nada. Os críticos de que mais gosto sempre foram bons escritores. Valorizo também uma dupla qualidade que Paulo Emílio Sales Gomes apontava como essenciais: um apreço pela precisão factual (não só a histórica, mas do filme como fato – uma crítica não pode existir para um filme que não existe) e uma boa dose de imaginação. Se ater exclusivamente a uma das duas pontas, em geral, rende textos que não consigo ler com muito interesse.

Enquanto crítico, você pensa no que ficará de um filme daqui a 10 anos?

O cinema é uma arte muito jovem. Pensar historicamente um período de dez anos já me parece um absurdo, porque dez anos não são nada para a história. A preocupação histórica com um período tão curto inevitavelmente serve para mascarar a idéia de que em um futuro realmente histórico – daqui a 400, 500 anos – talvez só três ou quatro (ou dez, ou vinte... ainda assim: muito poucos) cineastas que conhecemos realmente fiquem como marcos. Em geral, é o que acontece com a história de formas de arte mais antigas, e se esse número aumenta quando pensamos na arte moderna, me parece mais por estarmos mais próximos dela do que por a escritura ou a arte ter modificado essa lógica. Posso ter meus palpites de quais seriam “os grandes”, mas isso não me tira o desejo de lidar com a obra de vários artistas que não estão neste seleto grupo. Interesso-me mais em pensar no que ficará de um filme entre o momento em que ele termina e o momento em que sento para escrever sobre ele.

Como você avalia a influência da crítica no meio cinematográfico (realização, distribuição, público etc.)?

Acho que a influência existe, mas que isso é muito difícil de ser precisado de maneira direta. E não dá para comparar a influência que uma crítica em um grande jornal tem com a que uma revista como a Cinética tem. Eu acho que há um dado a ser pensado nesta influência, que é muito concreto. Se você tem dois filmes que você acha igualmente importantes em mãos, eu acho que cabe ao editor pensar quais serão os benefícios de dar destaque a um a ou a outro. Um filme do Gus Van Sant ou do Almodóvar podem até “precisar” da Cinética, mas não mais do que um filme do Monte Hellman, da Mia Hansen Løve ou do Hong Sang-soo. Eu acho que esse impacto que a revista pode ter na comunidade cinematográfica precisa ser levado em conta, ao mesmo tempo que o impacto que isso vai ter pra revista também precisa ser levado em conta (e não falo aqui em termos de mercado, número de acessos, nada disso, mas sim em como dar destaque a este ou aquele filme pode vir a melhor definir o perfil da revista, ou a melhor desconstruir uma idéia falha que se tenha dele).

Por outro lado, é claro que no contato com o cinema brasileiro há um dado diferente: em geral, o diretor tem muito mais chance de ler o que você tinha a dizer sobre o filme. Mas sempre que a crítica se aproveitou dessa brecha para dizer como deveria ser este cinema, as consequências foram desastrosas. Há uma interação, mas para que isso seja efetivo é importante manter clareza da separação dessas atividades.

Quem é o público leitor de crítica? Você pensa de que maneira serão recebidos seus textos?

Eu penso em um leitor abstrato, que eu não sei quem é exatamente. De certa forma, é questão de justeza, pois o número de acessos da Cinética não se traduz em rostos, em gostos, em olhares. Às vezes eu conheço um leitor que vem falar comigo, mas o número dos leitores que eu não faço absoluta idéia de quem são é muito maior. Em termos de eficácia do texto, esse leitor abstrato me parece a melhor referência, assim como um cineasta tenta imaginar como um espectador qualquer, que não conhece o material ou mesmo a obra pregressa do diretor, vá compreender o seu filme. Nesse sentido, o texto é uma obra como qualquer outra. Do ponto específico da crítica, há casos em que você conhece pessoas envolvidas no filme em questão e sabe que você está escrevendo também para que elas leiam... de certa forma, você está dizendo algo que considera importante que elas leiam. E há, pra mim, um dado importante, que é a comunidade na qual esse texto se insere. Essa comunidade é também um pouco abstrata, mas o desenho dela me parece vir de percepções e idéias mais concretas, então você se coloca um pouco na função de pensar quais os melhores e os piores caminhos pra essa comunidade quando escreve um texto. E não acho que isso seja algo que acontece após a apreciação, mas sim que o olhar e o gosto do crítico já trazem esse dado, essa informação, no próprio contato direto com o filme.

Você considera que a crítica é influenciada pela visão política e por valores pessoais? Como você avalia isso?

Sim. Eu não consigo escrever do ponto de vista de outra pessoa que não eu mesmo. Não consigo ser objetivo, pois não sou um objeto. Isso é tão natural quanto um texto ter uma assinatura, então não há, em realidade, avaliação a ser feita. É como as coisas são.

O que o leva a ler/escrever uma crítica?

Diversas coisas. Em geral, as críticas que escrevo com maior gosto são apaixonadas pelas idéias que elas transportam. Essas idéias vêm com os filmes, mas nem sempre escrevo melhor sobre os filmes que mais gosto, assim como nem sempre os textos puramente espontâneos são os que mais ressoam as minhas idéias. Em geral, eu refuto a idéia de pureza, então a origem do processo não me interessa tanto quanto o resultado. Escrevi bons e maus textos em contextos muito diversos, mas continuo fazendo porque sou apaixonado pela própria escrita, em especial pela escrita crítica, mas não só. Os textos que frustram são os que me parecem incompletos, que são idéias que não foram plenamente realizadas. Mas é sempre possível retomar, reescrever ou escrever um outro.

Considera que, no seu trabalho crítico, há uma diferença de abordagem para os filmes brasileiros?

Naturalmente. Acho que negar que, como os filmes em questão, eu também sou brasileiro e que meus textos são escritos neste contexto, para este contexto, seria apenas me colocar à disposição do mesmo jogo de forças, mas sem consciência de estar atuando nele. Essa diferença está embutida na própria pergunta – “há uma diferença na abordagem para os filmes brasileiros”, e não “a nacionalidade de um filme é um fator que impõe diferença na abordagem”. Mas quando eu escrevo sobre um filme não-brasileiro eu também sei que estou escrevendo do Brasil, para o Brasil. Esse é um dado que sempre me determina. Embora, em geral, os diretores não-brasileiros não terão chance real de ler o que eu escrevi.

Diga honestamente o que você pensa do panorama da crítica de cinema no Brasil hoje. É positivo ou negativo?

Eu acho que só o fato de ser possível falar em um panorama da crítica de cinema no Brasil sem soar como um despropósito absoluto já é um dado positivo. Eu não acredito que seja possível falar em um panorama da crítica de música no Brasil, por exemplo, e isso é um tanto mais triste. Mas acho também que o caminho na crítica é sempre um caminho solitário. Na minha vida, e na Cinética como parte dela, eu me cerco das pessoas e das visões críticas com as quais eu tenho algum ponto de contato e de interesse, mas o caminho do pensamento é um caminho individual. As discussões internas à crítica são importantes, mas não mais importantes do que o compromisso com o próprio pensamento. Nesse sentido, se os me acompanham de alguma forma na minha trajetória solitária de pensamento, são textos que me interessam. Mas esses textos, esses companheiros de viagem, sempre foram poucos e continuam sendo.


 Abril de 2013