O Último Desafio / Jack Reacher
The Last Stand, Kim Jee-woon, EUA, 2013
Jack Reacher, Christopher McQuarrie, EUA, 2012

Além da proximidade temporal do lançamento nos cinemas, O Último Desafio e Jack Reacher partilham diversas características em comum: ambos enfatizam armas, carros Chevrolet e são protagonizados por estrelas envelhecidas. Estas são, claro, características superficiais e rapidamente identificáveis que, possivelmente, se aplicam a inúmeros outros filmes de ação – atuais ou não. Neste caso em especial, no entanto, chama atenção a ênfase com que estes dois elementos, a arma e o carro, são utilizados nas narrativas. Sabemos que a pólvora e a gasolina semearam e semeiam o solo da América, que o país tem uma relação bastante estreita com o gatilho e o pistão. A expansão territorial foi conquistada a tiros, e o western é o Antigo Testamento dos EUA. Na série de histórias (re)contadas por meio dos filmes, temos um relato Histórico sob a perspectiva dos vencedores.

O Último Desafio filia-se, ao menos superficialmente, a signos tradicionalmente pertencentes ao filme de faroeste: o xerife, a cidadezinha fronteiriça com o México, o bando que, justamente, precisa cruzar essa fronteira para alcançar o paraíso depravado que é o país vizinho, a barricada, o revólver e a metralhadora giratória (artefato quase sempre presente em westerns “crepusculares”, utilizado para sublinhar o início de uma nova era, quando a máquina passa a executar o serviço do homem, fazendo do cowboy veloz no gatilho um artigo desnecessário). Ao invés de cavalos, temos os Chevrolet de ronco bestial. Seguindo característica que tem se mostrado comum, vemos um filme de ação atual, encenado no mundo atual, buscar uma sensibilidade do passado, no que pode até ser visto como uma manobra para contornar as restrições que a contemporaneidade fornece – restrições políticas, comportamentais, ambientais etc. – ou, simplesmente, uma adesão voluntária ao vintagesismo que é uma das grandes tendências culturais do momento.

É possível que esta última opção seja a mais próxima de O último desafio. A reapropriação do modelo do western se dá majoritariamente no nível fetichista, tal como alguém que colecione videogames antigos, sem nunca jogá-los. Há o revólver brilhando ao sol, há a poeira, há o distintivo do xerife, há a montanha rochosa, a rua estreita e o equivalente moderno ao saloon.Não há, entretanto, aquilo que o é componente básico de qualquer faroeste: um posicionamento moral claro. Existe, apenas, uma ética. O personagem de Schwarzenegger certamente é um bom profissional, que executa apropriadamente o seu dever. O problema é que o policial está rodeado de patetas de comportamento infantiloide, que polarizam com a velhice do astro de maneira, outra vez, superficial. O bando de bobos que se forma em dado momento do longa impede que resplandeça qualquer sentimento de dever, de comprometimento com uma maneira de pensar, de cumprimento de um código de conduta. O que se vê são jovens adultos, e não homens, brincando irresponsavelmente com armas. Em um faroeste, armas jamais podem ser lúdicas, pois são extensões de uma moral cuja aplicação é perfurante e mortal.

Jack Reacher está, em termos cinematográficos, mais próximo ao filme de vigilante urbano e é justamente por isso que o longa se aproxima do western, uma vez que ambos os gêneros dividem características (um é o descendente natural do outro). Ao contrário de Kim Jee-woon, Christopher McQuarrie não busca motivos visuais comuns às películas de cowboys e sim, motivos morais. Há claramente uma vontade de fugir do apelo imagético superficial, de evitar a iconografia minuciosamente planejada. Para se perceber isto, basta que se repare no figurino de Tom Cruise: jaqueta marrom, camiseta branca, calça jeans. Não há estampas, brilhos, broches, cores marcantes ou qualquer outra coisa que possa alcançar status de ícone, que diferencie Reacher de uma pessoa comum. Em uma cena, vemos o personagem dizer que não possuí outras roupas. Além de comum, mundano, incógnito, Cruise é um homem sem posses. Ele não é exatamente um humano. Ele é a Moral.

Como um cowboy, Reacher, o bom, vaga de cidade em cidade executando a justiça que a lei, corrupta e ineficiente, selvagem e incipiente, é incapaz de cumprir.  Os muscle car substituíram os músculos do cavalo, o asfalto cobriu as pradarias, mas a América continua sendo uma terra sem lei. A arma, em Jack Reacher, é tão barulhenta e imponente quanto em O último desafio. Os rifles de precisão empunhados pelo protagonista e pelo personagem de Robert Duvall têm, ao dispararem, o som de trovões, e, ao invés de parecerem fogos de artifício, como no longa de Kim Jee-woon, denotam solenidade, gravidade, ira. O mesmo som tem os motores dos carros, na cena de perseguição, em que a banda sonora é despida de música, deixando o ronco estrondoroso dos muscle car a irromper livremente. A sequência final, ambientada em uma pedreira, dá aos tiros uma característica seca, pesada e quase desagradável: é o som da justiça que precisa ser feita e que, infelizmente, está sendo realizada da maneira errada (a lei deveria funcionar impecavelmente, tornando desnecessária a existência de vigilantes urbanos). O cenário de pedra, iluminado por refletores que emanam luz azulada, com máquinas pesadas dispostas aqui e ali, contribuem para o sentimento de feiura e desagrado. Não se trata, porém, de uma feiura provinda de incapacidade técnica, ou do mau gosto. É uma feiura que se mostra como a única estética possível para retratar as ações de Reacher. O próprio vilão, interepretado por Herzog, é o rosto e o corpo da decadência física e moral, da morbidez, da baixaza a qual o ser humano sucumbe desde sempre. Sua execução é pouco espetacular: ele é morto enquanto está sentado, na penumbra, sem entrar em embate corporal com Cruise, algo relativamente atípico em filmes de ação contemporâneos. É um final sem brilho, porém necessário.

O filme, neste ponto, inscreve à força a epítome do cinema americano, ou seja, do western, nas rochas que rodeiam o esconderijo final do bandido: um homem precisa fazer o que tem de ser feito.

Wellington Sari


 Abril de 2013