A Derrota do pensamento (crítico)

Por que pessoas como eu, críticos de cinema, herdeiros tardios de um mundo de sombra e luzes, encontram-se tão rapidamente no desemprego, na pré-aposentadoria ou na posição de último dos Moicanos? Essa é uma questão. Por que parei de atuar como crítico de cinema, visto que escrevia o que queria em um jornal espontaneamente “cinéfilo”? Essa é minha questão. Me lembro que, ao deixar os Cahiers pelo Libération em 1981, tive pela primeira vez o sentimento de que o discurso sobre a “crise do cinema” – que sempre me deixara indiferente – acabaria por ser verdadeiro e que uma contagem regressiva havia, sem dúvida, começado. Era o momento de Diva (Jean-Jacques Beineix, 1981), um filme que inaugura bastante bem os anos 1980,  a um só tempo insípidos e mesquinhos e, finalmente, sem grandeza.

Como havia muitas coisas que eu não pude ou não soube escrever nos Cahiers, os anos no Libération foram inicialmente eufóricos:  eu tirava o atraso sobre mim mesmo, reciclava tardiamente toda a experiência – bastante radical, bastante áspera – dos anos 1970. Eu estava bem servido pelas exigências do periódico, pelo talento do jornal e pela liberdade de manobra que ele permitia na época. Mas de qualquer forma acabei me tornando, pouco a pouco, uma espécie de consciência moral de fogo da crítica de cinema – melancólica, digna e, por fim, ranzinza. É difícil, com efeito, manter a ideia de um fio condutor, de um “prosseguimento” e de uma memória dentro do mundo voluntariamente amnésico das mídias.

Comecei a me perguntar – era o meu luxo – se o lugar concedido ao cinema nas mídias (na França, sobretudo) não era maior do que a necessidade real de cinema na vida das pessoas, uma necessidade que havia se tornado bastante fraca. Foi a época em que se começou a falar da “morte do cinema”, como se fala hoje do “fim da História”. O que é certo é que os filmes não geram mais “debate” há muito tempo, que eles deixam poucos traços, e os próprios cinéfilos lhe devotam mais uma fidelidade desencantada do que uma paixão esfolada viva. Em breve, na expressão coup de coeur, tão típica do cinismo dos nossos anos, é o termo “coup” que contará, porque ao “coeur” restará a leucemia. (1)

Passada a euforia, eu continuei então falando de cinema, mas tentando relacioná-lo com coisas que o prolongavam ou mesmo que o negavam, eu não sabia ao certo: a televisão, a publicidade, a comunicação, a própria ideia de informação etc. Era preciso fugir da autossatisfação rançosa da “grande família do cinema” e dos maus hábitos dos arrivistas da comunicação catódica. Isso me permitiu fazer pequenas crônicas divertidas, dia após dia, e a tornar-me durante um tempo zapeador profissional, crítico de filmes da TV, observador das informações televisionadas etc. Era um percurso bastante especial, onde acabei por encontrar-me um pouco solitário. Quando não se pertence nem à família dos Césars, nem à família dos Sete de Ouros (2), as pessoas que pertencem a essas famílias sentem prazer em esvaziar os seus bolsos sem citá-lo ou erguer um pedestal a você no fundo do jardim, lá onde ninguém vai. É normal, pois estamos num período em que as famílias – todas as famílias – agora se vingam dos últimos vinte anos, quando foram colocadas um pouco em risco.

Há, de qualquer forma, uma coisa muito simples que eu acabei compreendendo. É que a crítica apenas se justifica se ela responde a um desejo, aquele do autor eventualmente. Lá onde houve um desejo suficientemente forte (e o desejo é sempre violento), o crítico deve responder presente. É como no tênis, não rebatemos todas as bolas sob o pretexto de que elas “fazem sintoma”, mas somos obrigados a rebater as bolas de serviço. Ora, o fenômeno próprio às nossas sociedades é que a fronteira entre desejo, capricho, manha, hobby e jogo coletivo está prestes a se recompor. Muitos filmes hoje não derivam mais do desejo de fazer um filme, mas daquele de ter sido um cineasta ao menos uma vez na vida. Por que não? Eu quero muito que J.-P. Toussaint faça Monsieur (3), mas não sei exatamente como, nem porque eu criticarei este filme, pois ele não implica em nenhum “prosseguimento” para ninguém.

O crítico era necessário quando, na sociedade, havia um lugar onde a violência, o sentido e a necessidade de dizer ou de fazer formavam como um nó, um abcesso. Mas ele deixa de ser necessário a partir do momento em que o “direito à criação”, como diziam os comunistas, é aberto e reconhecido a todos. O crítico trazia novidades de alguns viajantes de alto risco. Tarkovski, Godard, Cassavetes, Fassbinder, sujeitos assim eram como viajantes. O crítico não serve de nada quando tudo isso é substituído pela autoprogramação turística do indivíduo. Um filme como O Urso (L’ours, Jean-Jacques Annaud, 1988) não reclama a crítica de cinema, ele reclama um grande concurso onde o primeiro prêmio é o direito de assistir a filmagem do filme, pois a empreitada da filmagem é sem dúvida a única coisa aventurosa do projeto – “Urso”. O crítico é um barqueiro entre dois pólos. Entre aquele que faz e aquele que vê o que foi feito. O que é preciso saber é a ordem de prioridades. Para mim, o crítico primeiro envia uma carta aberta ao autor e esta carta em seguida é lida pelo eventual público do filme. O crítico representa, então, os interesses daquele “que faz” junto àqueles que não fazem. É como um advogado. Isso parece-me ao mesmo tempo normal e moral. Mas, para outros, é o contrário: eles representam os interesses do público junto ao criador. Esses são como juízes. Alguns funcionam muito bem dentro deste modelo de crítica de moda, que seleciona “o que se deve vestir” do que “não se deve”. É o guia do consumidor, mesmo esclarecido ou simulando esclarecimento, mesmo insolente ou simulando insolência (no atual estilo de Lefort no Libération).
 
Isso leva rapidamente ao conformismo puro e simples porque, por definição, todo público, mesmo o esclarecido, mesmo o adulto, deseja o consenso. E talvez seja mais rentável hoje ver num filme apenas seu aspecto de “fenômeno de sociedade” e ir em socorro daquilo “que funciona”, para apenas então adicionar seus dois tostões supostamente “pessoais”.

O que digo é certamente bastante discutível. Nos remete jamais estar em grupo contra o indivíduo. Mas eu acredito que a beleza do cinema no século XX foi ser uma gigantesca máquina a-social que, paradoxalmente, ensinou milhões de pessoas a viverem com os outros, portanto em sociedade, mas jamais esquecendo que há no mundo algo a mais que a sociedade. Mas quando não há nada além do horizonte do social, quando o mundo desapareceu, encontramo-nos atados à mediocridade da aldeia global; e mesmo sendo esta uma aldeia ultra-comunicada, ela permanece sendo uma aldeia. E uma aldeia não precisa da crítica, ela precisa de griots, de torcedores, de guardas rurais, em suma, ela precisa da televisão.

Serge Daney

(1) Coup de coeur: expressão francesa para indicar “nossa recomendações” ou “nossos favoritos”, bastante utilizada em guias de consumo.

(2) Referência às premiações concedidas ao cinema (Cesar) e à televisão (Sept d’Or) na França.

(3)
Jean-Philippe Toussaint, escritor belga, adaptou seu próprio livro, Monsieur, em 1988.

(Publicado no livro L'Exercice a été profitable, Monsieur. P.O.L., Paris, 1993. Páginas 285-288. Traduzido do francês por Calac Nogueira.)

 Abril de 2013