Amor
Amour, Michael Haneke, França/Alemanha/Áustria, 2012

Uma cena de Amor é exemplar para entendermos o olhar que pauta este último filme de Michael Haneke. É quando Alexandre, o ex-aluno de Anne, chega para visitá-la de surpresa em seu apartamento. O rapaz é recebido por Georges, que parece um tanto desconcertado com a visita inesperada. Ele pede a Alexandre que aguarde na sala enquanto vai até o quarto buscar Anne. Georges sai, e ficamos junto com Alexandre na sala. Levamos alguns bons segundos contemplando  o personagem em tempo morto, até que Anne finalmente surge na cadeira de rodas. O ex-aluno então projeta um olhar surpreso sobre ela, olhar esse que Haneke habilmente identifica ao nosso, pelo longo tempo de espera que compartilhamos com o rapaz. Ele parece abalado diante da visão de Anne: a cadeira de rodas, o braço retorcido, “metade do corpo paralisado”, ela explica. Identificando nosso olhar ao do ex-aluno, Haneke procura inspirar em nós o mesmo horror que o personagem sente diante daquele corpo doente.

Não é o caso, portanto, de dizer simplesmente que Amor é um filme “a favor” da eutanásia (propósito em si até bastante nobre). Interessa-nos aqui de que maneira ele se encaminha a essa conclusão e que valores estão envolvidos aí. Interessa-nos, particularmente, como Haneke vê o adoecimento e a velhice: não como algo natural, mas como um forte golpe na dignidade dos personagens. Anne e Georges são donos de um imenso orgulho e um amor-próprio que são feridos pela chegada da doença. Basicamente, Anne sente vergonha de seu corpo deteriorado e da dependência que isso implica dos outros. A doença humilha, mais do que qualquer outra coisa (“Para ela e para mim, é triste e humilhante”, diz Georges). Essa dignidade introjetada e ferida é notável em diversas cenas, por exemplo quando Anne ordena a Georges que “Não fique aí para ver como vou segurar o livro”, ou quando a personagem se perturba com a possibilidade de o marido da filha vir visitá-los e vê-la naquele estado. A cena com o ex-aluno é justamente esse choque com um olhar exterior que derruba a personagem em sua vergonha.

Mas que personagens são esses? Não é por acaso que Haneke escolhe como protagonistas um casal refinado, dotado de um senso de dignidade quase aristocrático. O que se reflete também nas relações humanas do filme como um todo: o relacionamento com a filha é sempre frio e distante; as relações com todos que eventualmente ajudam o casal são pautadas por gorjetas (Haneke procura sempre reforçar que o casal não depende de favores afetuosos de ninguém). Mesmo entre Georges e Anne não há uma cena sequer que transmita, mesmo indiretamente, um sentimento de amor entre os dois. Absolutamente nenhum afeto: quando Anne pergunta ao marido porque este segue cuidando dela, ele se limita a responder que ela faria o mesmo por ele. Nenhuma memória de carinho: quando Haneke decide confrontar imagens do passado e do presente, a recordação “carinhosa” de George se limita a um plano de Anne tocando piano solenemente na sala. De nada adianta que se intua na cena derradeira, de maneira fria e cerebral – quase como uma piscadela, uma lacuna que o público se sentirá lisonjeado em preencher com sua "inteligência" –, que a eutanásia aqui é um “gesto de amor” se isso não está efetivamente impresso nas imagens do filme (algo que Haneke se recusa terminantemente a fazer).

O olhar impassível da câmera procura sugerir uma neutralidade diante dos eventos. Trata-se, evidentemente, de uma falácia formal: quando Haneke filma Georges ajudando Anne no banheiro, não temos aí uma cena “neutra”. Na cena em questão, Georges precisa levantar a roupa de baixo de Anne e ajudá-la a se levantar. Um outro cineasta talvez esta mesma cena como um último gesto de carinho dentro da intimidade de um casal (concordemos que “intimidade” e “dignidade” são duas palavras que não exatamente andam juntas). O distanciamento imposto por Haneke na cena, porém, nos reclama o constrangimento: é embaraçoso observar a personagem sendo ajudada daquela maneira pelo marido. Mas o que é constrangedor não é o evento em si, porém a soma entre o embaraço introjetado dos personagens e uma câmera impassível, mantida à distância, fora do banheiro, como se tivesse vergonha de observar a cena. É o distanciamento aqui, portanto, que é obsceno.

Os personagens de Amor não são idosos: são respeitáveis bonecos de cera nos quais Haneke inscreve seu horror à velhice e à doença. Os valores que sustentam o filme podem parecer sofisticados, mas eles são igualmente fúteis: orgulho, dignidade, amor-próprio... Há muito mais nobreza em qualquer filme de Clint Eastwood – e em Menina de Ouro em particular – do que nesse deserto de valores decadentistas. Aos personagens conscienciosos de Haneke, falta justamente a bravura encontrada em Clint para encarar o adoecimento e a morte como algo natural. Mas a encenação sóbria, não-melodramática, continuará seduzindo caminhões de espectadores, que identificarão sua frieza a um suposto “bom gosto”, confundirão “rigor” com “austeridade” e verão “contenção” no que é tão somente distanciamento obsceno.

Calac Nogueira


 Abril de 2013