conversa festival do rio 2013
Parte 2

Night Moves

João Gabriel Paixão: Sobre Night Moves, só vou fazer um pequeno comentário. Esse filme tem o mesmo controle do Estranho no Lago.  Ele não tem uma só locação, não é “análise combinatória”. Mas ele tem essa câmera... ele tem a chamada “direção segura”. Do que se trata essa direção segurança? É algo calculista, mas também não excessivamente. Nada é excessivo na direção segura. Há uma dosagem equilibrada, prudente, nos elementos da sua construção, assim como há uma contenção consciente da progressão da trama. A questão de toda “direção segura” é que, se em parte é um elogio, é também sua inevitável limitação.

Calac Nogueira: É, eu acho que esse é um tema do cinema contemporâneo em geral. É a crise dos cineastas que têm boa formação, que frequentaram faculdades de cinema, que lêem crítica, que têm uma cinefilia e que “sabem” o que estão fazendo...

JGP: Mas falta se jogar para expressar mesmo o que você quer...

CN: É o caso de alguns filmes alemães recentes, como esse Barbara, que fez um certo sucesso, passou no circuito. Ou outro filme da Escola de Berlim que eu vi no festival, chamado Ouro. É um faroeste, passado nos EUA durante a Marcha para o Oeste, os caras estão procurando ouro, imigrantes alemães. Mas é só isso: controle, deslumbramento com a paisagem do oeste, e tal. Não sai daquilo. Não tem um risco. São filmes em que tudo está no seu devido lugar, mas para os quais falta alguma coisa.

JGP: Esse risco, pra mim, é o que falta no Night Moves, é o que falta no Estranho no Lago.


Hong Sang-soo (ou Estilo vs. Método)

CN: Essa é a parada dos cineastas que têm um método. Falei do Brisseau, do Rohmer. O Hong Sang-soo, também. Tem método, sabe? Não é um estilo que vai lá e abafa, e você simplesmente contempla esse estilo. É um método. As cenas respiram. Tanto que no Our Sunhi eu não gosto da estrutura do filme, acho meio boboca, os três caras... Mas as cenas respiram... O Hong Sang-soo tem um estilo de decupagem marcado, com os zooms, os planos bem longos. Esse estilo é o "gosto" do cineasta. Mas, mais do que um estilo, no caso do Hong Sang-soo, como no Rohmer, eu diria que é um método de filmar. Porque você não vai só para contemplar o estilo. Tem uma coisa ali dentro que é diferente de filme para filme, que é de certa forma imprevisível, que está nos atores, na interação dos atores, esse respiro que eu acho que tem. Eu gosto muito do Hong Sang-soo, mesmo não tendo amado nenhum dos dois filmes que passaram no Festival. É o meu tipo de cinema.

JGP: Tô tentando pensar a respeito dessa diferenciação entre método e estilo.

CN: Claro que Hong Sang-soo, Rohmer e Brisseau têm um estilo, mas o que eu estou tentando dizer é que eles têm alguma coisa que escapa a este estilo.

JGP: Isso é o mais importante: algo que escapa ao estilo. Acho que podemos falar isso de qualquer filme que é bom, e não só almeja um status de “qualidade”. Porque você deixa de trabalhar com códigos e auto-referencialidades, cujo fim é o cinema em si mesmo (o cinema como linguagem), e passa a usá-lo como seu método, ou sua forma de expressão, para passar suas ansiedades, sua visão do mundo, seus sentimentos, enfim… Em Estranho no Lago, em Night Moves ou até Tip Top, existe essa palavra horrível, a consciência, que passa todo o trabalho do realizador, tanto quanto o trabalho do espectador. O espectador deve ver: “olha o controle do filme”, e não o que esse controle significa pro cinema e pro mundo. Curiosamente a palavra “controle” se aplica a tudo que não incorpora riscos, porque visa eliminá-los, ou ignorá-los, dispensá-los. Nos documentários, no filme do Gray, no Brisseau, no Hong Sang-soo, enfim, na hora em que temos que separar os filmes que nos interessam, vemos riscos, pois vemos pessoas obstinadas em organizar a realidade para a experiência do filme e, nesse processo, dar sentido ao mundo.

CN: Sim. E não é um estilo em si mesmo. Você não vai contemplar esse estilo.

JGP: É, no Hong Sang-soo você tem que entrar ali naqueles personagens.

CN: Naqueles tempos de comédia entre os atores. Um fala alguma coisa esquisita e o outro, de repente, não fala nada, fica um silêncio.

JGP: Quero acrescentar uma coisa: eu não sou um grande fã do Hong Sang-soo, não. E aí eu fiquei pensando na forma como ele usa a música. A gente tava falando do Brisseau e Hong Sang-soo: o Brisseau vai usar uma música, uma música clássica, por exemplo, e ele vai colocar nos momentos mais dramáticos, ou aqueles momentos de revelações filosóficas, para a música realmente engrandecer o que está sendo dito e filmado. É uma coisa épica, e, para satisfazer a alguns, é a coisa mais brega do mundo - mas não, não é brega, uma vez que você tem que acreditar naquilo. Porque, no Brisseau, tudo é verdadeiro. Tudo é sempre verdade. É o que podemos chamar do método-Brisseau. O espectador está convocado para trabalhar; seu trabalho é aceitar a verdade. Então se a menina fala assim: “ó, se você sacar dinheiro... dinheiro é um problema”... E isso no filme é uma verdade material, concreta, aquilo ali vai acontecer concretamente. Por outro lado, no Hong Sang-soo, a música no Hong Sang-soo é uma música mais satírica. Toca Schubert (se não me engano) no Filha de Ninguém.

CN: No gravadorzinho. Muito foda. Muito bonito.

JGP: No gravador, mas também...

CN; Tem duas cenas com o gravador: uma com ela e outra sozinho.

JGP: Essa música toca também...

CN: Não diegeticamente.

JGP: Exato, e sem ser com a compressão do gravador.

CN: Não tô lembrado da cena que toca isso.

JGP: Nos créditos. Mas o Hong pontua os filmes com música, em todos os filmes. E é uma música mais... Ele dá uma coisa mais satírica para a música. É cruel, uma vez que a música, nos filmes dele, tem uma dramaticidade dissonante com a crueza das imagens. Você não acredita na música, enquanto que, no Brisseau, você acredita, porque você tem que acreditar em tudo.

CN: Um é cineasta cômico, enquanto o outro é um cineasta dramático. Mas acho que a música tocando no radinho ali, aquele personagem tem uma relação com a música que eu acho forte. A música se repete em duas cenas: primeiro, ele mostrando a música para ela; depois ele ouvindo sozinho.

JGP: É porque é meio estranho, tem uma certa arbitrariedade. O cara tá ouvindo Schubert... Tudo bem, ele pode gostar... Você lida com isso de uma forma racional: “ele gosta dessa música”, é uma forma racional. Talvez o que eu queira dizer é que esse uso da música no Hong Sang-soo já seja algo mais próximo do estilo do que do método. O uso satírico da música é uma forma de “contemplar o estilo”, como você falou. Enquanto o Brisseau – certo: são propostas diferentes, mas é isso que eu tô comparando – ele não pega a música pelo lado racional. Ele pega a música para entrar nas emoções do filme. Eu gosto muito do Brisseau. Eu não gosto tanto desse filme, La fille de nulle parte. Eu já adiantei dizendo que, para mim, um método do Brisseau – não um estilo, mas um método – é que todos os personagens falem e sejam verdadeiros, verdadeiros de uma forma até absurda, supra-real, em um mundo idealizado...


A garota de lugar nenhum

CN: Mas eu acho isso [esse sentimento supra-real, hiper-idealizado] mais forte nos outros filmes. Não acho tão forte nesse filme, não.

JGP: É um filme assim: o cara fez sem nenhuma grana, no apartamento dele, com ele. Comenta aquilo que você falou que, quando você tá velho, você se expõe mais.

CN: Pra mim, é um filme que só dá para fazer quando você tem 70 anos e se  desprendeu completamente de qualquer...

JGP: Vaidade.

CN: Vaidade, senso de orgulho. Ele vai lá aparecer na frente da câmera, fazer papel de palhaço. O que eu acho foda do filme é também essa postura de fazer o filme a qualquer custo. De acreditar que não importa: não ter dinheiro, não ter materialmente quase nada para fazer o filme, mas ainda assim ir lá e fazer. Fazer isso, lidando com essas limitações, mas ao mesmo tempo fazendo da mesma forma como ele fazia qualquer outro filme. O estilo do filme, o método e o rigor da mise en scène são os mesmo dos outros filmes do Brisseau. Não existe um rancor na mise en scène pela falta de dinheiro.

JGP: Isso é discutível.

CN: Você acha que existe um rancor?

JGP: Rancor, não. Mas o fato de ter essa falta de dinheiro...

CN: O filme assume essa pobreza. Por exemplo, na cena da festinha, com a casa decorada. Nos fantasmas...

JGP: O fato de ter pouca grana é que ele acabou fazendo um filme muito seco, né? Por exemplo, o elemento fantástico, que vem da imaginação... O tema do filme é a morte. Em geral, no Erótica Aventura é, por exemplo, o gozo, o prazer, a liberdade. Nesse filme, o que vem com a magia, a imaginação? A morte. Esse é o elemento supra-real: a morte. Aí é curioso que a única cena que mostra sexo é um papai-e-mamãe, dura 3 segundos, é um insert, e estava sendo encenado.

CN: Tem aquelas duas mulheres, né?

JGP: As duas mulheres?

CN: Tem uma cena que elas se tocam. É aquele plano-tableau. Tem a mulher deitada; tem uma hora que tem uma outra mulher ali.

JGP: Um anjo da morte...

CN: E aí a lourinha vai e dá um beijo nela.

JGP: O sexo realmente... ele não tem função nenhuma no filme. É um filme sobre isso: sobre a descrença, sobre a desilusão.

CN: Ontem o pessoal estava falando: “ah, mas ele quer comer ela”. Não concordo, não acho que o filme passe por essas questões.

JGP: Não passa, não passa. E, de qualquer forma, isso não acontece. É um filme sobre a desilusão, isso é discutido durante o filme.

CN: Não sei se é um filme sobre a desilusão, não.

JGP: Por quê?

CN: Porque ele tá lá escrevendo aquele livro sobre o lugar do homem no mundo e como o homem vai encarar o mundo. Desilusão, não... É uma reflexão sobre a morte, e de que ela é a reencarnação da mulher...

JGP: Reflexão também sobre a desilusão, tanto é que ele fala muito sobre isso no filme. Várias vezes: a primeira vez que ele aborda é isso é mostrando o video daquele cara louco, que imagina que tem uma coisa ali e não tem.

CN: Ali ele fala é o seguinte: o que aquele cara via é mais que real que o real. É essa coisa que está além, né? Que é o que todos os filmes dele buscam. E o “além” desse filme é a morte.

JGP: É, é a morte. E se é a morte, é porque... porque a morte é inevitável. Então, se é a morte, já lida com essa desilusão... Não há liberdade na morte. Tanto é que ele fala de Maio de 68; fala que é um desiludido que não acredita em Deus. Brisseau, ele mesmo, tá falando que não acredita em Deus, sendo que ele já falou em entrevistas que é católico. O personagem tá realmente na merda. Ele tá fazendo esse livro, mas é um livro sem esperança, sem ilusões.

CN: É, o personagem não tem nada. Ele está ali, perdeu a mulher. Mas tem um amigo.

JGP: Ele conversa sobre isso [a desilusão]. Você tá falando que não é sobre isso, mas é literal, eles têm até conversas, muitas conversas, a partir da religião, da ideologia política, da ciência também, da arte.

CN: Realmente não acho que é sobre a desilusão. Não tem tantas conversas assim sobre ideologia política.

JGP: Tanto é que é um filme mais... você até comentou sobre isso... tem menos aquela exuberância, que também vinha com a película, a exuberância de um mundo realmente magnífico...

CN: Eu sinto falta da natureza. A natureza que a gente tem nos outros filmes: no Erótica Aventura, no Les Savates de bon Dieu, ele filma espaços abertos, é importante... Os outros filmes têm uma textura quase de pintura, esse não tem.

JGP: Esse não tem. E é óbvio que tem total relação com o digital, com o modo de produção, com a falta de grana... Mas, de qualquer maneira, deixa de ser um filme de uma poesia que vai rumo a uma transcendência, de graça, de espiritualidade, que os outros filmes vão...

CN: Não concordo. Acho que isso tudo está ali.

JGP: Mas esse filme é pesado, cara. Esse filme, pra mim, ele vai pra baixo. Tem essa coisa da morte e dos elementos fantásticos, mas eu sai do filme pesado, sabe? Eu tive essa impressão. Aparentemente o filme não é pesado, mas ele é. Por isso que eu concordei aquela hora com o rancor. Eu não sei se é rancor, mas ele é pesado. Você não sai leve... Porque nos outros filmes você sai em estado de graça, de beleza...

CN: Uma cena que eu gosto muito é aquela em que ele fica esperando para morrer. Eu acho justamente de uma leveza: porque o personagem espera, fica esperando o cara vir matar ele, acho muito bonita aquela cena, e pra mim tem essa leveza, essa tranquilidade.

JGP: Ele não é o filme da Claire Denis em termos de pesado. Não é isso. Ele passa realmente uma tranquilidade, ele não força o peso, mas você sai do filme pesado. Aí eu não sei te explicar, mas pra mim isso foi uma experiência de sair pesado do filme. Enquanto eu saia do Erótica Aventura flutuando, porque eu fui para outro lugar. Esse filme eu não fui para lugar nenhum. A gente ficou no apartamento dele o tempo inteiro. É um filme down to Earth. O que eu mais gosto mesmo é quando tem os momentos místicos, os momentos fantásticos. Eu acho aquela aparição da morte… É quando o filme pode decolar da realidade… Mas aí é engraçado que, novamente, está lá o Brisseau encarando a morte com aquela postura engraçada, aquele pose desengonçada de “quem você pensa que é”? Esse personagem, com essa postura, não havia nos filmes anteriores do Brisseau. Se esse ceticismo debochado estava em algum lugar, era do outro lado da tela, entre os espectadores. Em A filha de lugar nenhum, é o Brisseau que assume esse ceticismo perante a exuberância, perante um além-mundo idealizado e escancarado, sem contar que é alguém bastante travado com a sexualidade (na sua relação com a menina). Por tudo isso, é um filme seco. E é um ceticismo pesado, porque se sente que não há saídas, não há para onde ir – a não ser em direção à morte. Como isso não é pesado?

CN: Realmente não acho filme tão desiludido. Tem a cena em que ele encontra uma ex-aluna, bem melancólico, é verdade. Mas não acho especialmente não... É um filme sobre um personagem que está esperando a morte, à beira da morte, e é isso.

JGP: Mas ele sabe desde o começo que ele está à beira da morte?

CN: Porque o filme é engraçado, tem várias piadinhas, a relação dele com ela é engraçada, tem uma leveza. Ele fica justamente fazendo várias piadas com a morte.

JGP: Mas ele faz várias piadas porque ele é desiludido. Ele não acredita no fantástico. Ele fala isso. “Você acha que eu acredito em cadeira subindo? Você acha que eu acredito em espírito?”. Ele tá sempre falando que não acredita em nada.

CN: Mas depois ele fica viajando que ela é a reencarnação da mulher.

JGP: É, depois ele dá essa viajada, mas depois que acontece tudo aquilo. Foi um dos melhores filmes do festival... Próximo!


Em Berkeley

CN: É, o Wiseman, pra mim, é o grande filme do festival.

JGP: Mais até que Até que a loucura nos separe?

CN: O Até que a loucura nos separe eu achei, mas isso não só eu, as pessoas de maneira geral acharam, o grande choque do festival, o mais chocante. Mas eu acho o Wiseman mais bem resolvido. Wiseman é absoluto, é perfeição.

JGP: Você disse que não era um filme só sobre a faculdade. Eu também concordei e falei que aquela peça de teatro, que fala que nada sabemos sobre Roma, sobre a Grécia Antiga, sobre as civilizações do passado a não ser os principais feitos...

CN: Sim, quase como se ele quisesse fazer o filme para mostrar como era a vida em 2013.

JGP: Exatamente.

CN: O filme tem essa intenção. Se você perguntar para o Wiseman, provavelmente ele vai negar. Mas tem a intenção...

JGP: Eu diria até que é uma coisa do Wiseman, de maneira geral, mas nesse filme é claro, porque é uma universidade, é uma instituição simbólica dentro da sociedade hoje em dia...

CN: É estratégico. Por isso que eu não gosto do filme passado no cabaré, o Crazy Horse. Mas adoro o Boxing Gym.

JGP: Mas por quê? O cabaré seria um espaço limitador?

CN: No Crazy Horse, você não sai dali fisicamente, porque afinal é um filme do Wiseman. É um filme sobre aquele espaço, como os outros também são. Mas você não transborda daquele espaço. Você fica só naquela contemplação das apresentações, que são muito bonitas... Tenho a impressão de que o Wiseman se viu seduzido por aquela beleza, e isso não cai bem ao cinema dele. Acho a beleza do filme meio efêmera, e em geral o Wiseman lida com uma matéria mais profunda.

JGP: Mas você também não transborda no Em Berkeley. É só que eu acho que a instituição é estratégica, porque dá uma ideia de civilização. A universidade é uma civilização. Você tem astrofísica, Thoreau, liberalismo...

CN: Problemas financeiros; problemas políticos. Os estudantes que se manifestam e o poder instituído tem que lidar com eles de alguma forma.

JGP: Por isso, pra mim, é um inventário do que é a civilização, de uma parte da civilização, do que é ir à faculdade, o que tem em uma universidade em 2013, nos EUA, na civilização ocidental, como um documento. O filme é um documento.

CN: O que eu gosto no Wiseman é a impessoalidade. Você vê 50 mil rostos, 50 mil pessoas falando, e o filme tem o mesmo tom para cada um deles, é impessoal. Você sai do particular. Não importa o nome daquela pessoa. A pessoa está ali, diante de você. É ela, o fenótipo dela, a cor, a forma de se vestir, a cara dela, o que ela está falando, a posição que ela ocupa na instituição, mas ao mesmo tempo não é particularizado, não interessa o nome dela, não interessa a intimidade dela.

JGP: A gente ganha um pouco de intimidade com o reitor.

CN: Sim, um pouco mais, mas acho que só por uma questão circunstancial: ele é o reitor, então aparece mais. É das circunstâncias, não é um interesse do filme.

JGP: Eu concordo com o que você tá falando. Eu só não sou fascinado pelo Wiseman porque não me aflora, não me desperta tantos sentimentos e encantamentos como em você esse método do cinema direto, esse método de mostrar tudo que está ali, um olhar... que não é totalizante, mas que tenta somar os fragmentos para dar um filme, para compor aquele universo, sempre impessoal a tudo, sempre vendo tudo de longe, aquilo não me atrai... Isso tudo não me atrai.

CN: Ele está elaborando ali uma realidade. Você, vendo o filme, tem uma realidade ali coerente, nesse estilo dos filmes dele, e uma ideia de realidade, que não é a mesma ideia de realidade do filme do Wang Bing, ou do filme do Herzog. É uma ideia de realidade muito coerente, que está em todos os filmes...

JGP: Fiquei pensando que o seu elogio é o mesmo do Pouco mais de um mês. Eu acho que o seu elogio é o mesmo para os dois filmes, por mais que este seja uma ficção. Aí está o meu problema... Porque o mundo, com todos os seus elementos, sem restrição, sendo captados pela câmera indiferentemente, você tá lidando com aquele espaço no qual você não tem nenhum controle...

CN: Eu acho que tem uma diferença deste curta de ficção para os filmes do Wiseman. Porque o que eu estava falando do Wiseman é justamente isso: não é qualquer realidade; não é uma realidade aleatória. Tem um olhar do Wiseman sobre os filmes, que é esse olhar impessoal. Ele fabrica isso. É uma ideia de realidade.

JGP: É uma ideia de realidade?

CN: A ideia de realidade que o Pouco mais de um mês transmite é uma outra ideia, completamente diferente. É uma ideia que tem mais a ver com ruído.

JGP: Você não acha que tem ruído no Wiseman? Eu acho que tem.

CN: Não, os filmes são muito limpos.

JGP: Mas o mundo é cheio de ruído.

CN: Pois é, por isso que não é a realidade em si, é uma ideia de realidade. Que me fascina por essa impessoalidade, como se você estivesse contemplando o mármore.

JGP: Mas não é uma ideia de realidade; é a realidade.

CN: Uma realidade pétrea, estática. Não é uma realidade de movimento, de sujeira.

JGP: Olha, eu acho que tem sujeira sim, no sentido de que simplesmente aquelas pessoas e aqueles espaços, em si, têm sujeira. Mas aí é uma coisa do documentário. A gente estava comentando sobre isso e aí eu falei que o Herzog é muito diferente do Wiseman. E eu me interesso muito mais pelo Herzog. Mas o documentário, de maneira geral, inevitavelmente vai lidar com o mundo, e a sua sujeira não é uma coisa só do Wiseman, de qualquer documentário (menos A imagem que falta!). Os documentários, querendo abraçar a realidade, vão abraçar a sujeira: essa é a primeira coisa que o documentário abraça.

CN: Depende do documentário. No caso do Wiseman, eu não concordo.

JGP: Porra, é um dos primeiros que eu colocaria. Já em um filme do Eduardo Coutinho que passa dentro de um teatro, ele elimina a sujeira, entende?

CN: Mas quando você ouve a voz do Coutinho, aquela voz grossa, de quem fuma muito, é sempre um ruído. Os últimos filmes dele têm tido esse ruído.

JGP: Eu acho que a ideia de ruído que eu tô querendo passar é diferente.

CN: Essa coisa da voz grossa é só para reforçar a ideia...

JGP: O fato é o seguinte: o mundo é essa realidade aí, que a gente conhece. No Wiseman, a gente não conhece nada de novo no mundo. A gente sabe que existem os professores. Ele filma assim: “há professores”. É uma constatação e ponto. Não importa muito o que estejam falando, embora seja o que nos dê o interesse imediato durante a projeção. Mas o espectador nada tem que “aprender” com os professores que passam aí. Se aprendi algo com o filme é ter conhecido a maneira como eles administram de forma muito mais madura os protestos em Berkeley do que aqui no Brasil. Isso foi, a mim, um novidade: o controle, a mente fria, de como a administração lida com aquilo.

CN: Você tá falando das coisas que estão no filme, dos objetos. O que me fascina no Wiseman é o olhar. É a forma como ele imprime essa ideia de realidade.


Corredor da Morte

JGP: Não sei muito bem se entendo o que você diz. Vou falar do Herzog, Corredor da Morte, para comparar. No Herzog, certamente é muito importante ele trazer essa heterogeneidade original da realidade do mundo, quando ele vai entrevistar o cara que está condenado à pena de morte. Porque o cara a cara da entrevista é completamente distinto do material de arquivo em que se narra que “aconteceu isso e aquilo no crime”. O material de arquivo não mostra pessoas. E o Herzog faz esse corte, bastante abrupto, do material de arquivo, que é como uma peça de romance policial, com o rosto de uma pessoa viva, na sua frente, cheia de trejeitos, de uma maneira de falar. É uma pessoa real, e isso é impressionante. Só em fazer este corte, de um registro pro outro, você já sabe que o Herzog é contra a pena de morte, não porque os presos seriam inocentes, mas é porque ele se interessa pelo material humano que está realmente na nossa frente. É diferente de um documentário meramente investigativo, que se basta em recriar uma realidade com os elementos do crime, com o passo a passo do assassino, esse lado CSI da curiosidade mórbida. Já o Herzog vai conversar com os presos, e muitas vezes para falar abobrinha, leviandades. Com um deles, ele começa a entrar num longo papo sobre as viagens que o cara fez, o cara fez muitas viagens... Então o preso viajou pro Peru, e o Herzog conta que ele também estava lá, filmando Fritzcarrldo, há poucos quilômetros de distância, na mesma época. Então o filme tem uma educação do olhar, que é observar a realidade inultrapassável, imanente, ali na tela, esta realidade heterogênea, suja, plural, que são aquelas pessoas vivas e concretas na nossa frente, sem idealização. E confrontar isso com o crime que o cara fez, que se torna uma abstração, se torna uma coisa que a gente tem que criar na nossa cabeça. O Herzog vai mostrar a garagem onde aconteceu o crime: ele mostra a garagem vazia e você tem que criar aquilo. Então ele tem uma relação entre...

CN: Vou falar do filme sobre pena de morte do Herzog que eu vi, o Into the Abyss. É uma abstração porque é uma condição impossível de ele estar lá no momento do crime. Mas ele não absolve o cara.

JGP: Não absolve o cara. Absolutamente.

CN: O crime é terrível. Ele fala de todos os pormenores do crime, de tudo que aconteceu.

JGP: Não, ele não absolve. Só que ele filma as pessoas.

CN: E ele filma o lugar da execução, a maca onde o cara vai deitar, o negócio que vão injetar na veia dele, e a plateia com 15 cadeirinhas, o vidro, e tudo é terrível, a forma como ele filma isso... Mas não é esse discurso bobo de “Olha, apesar de tudo, ele é humano, tá gente?”


Voltando ao Wiseman

JGP: Não é um discurso bobo. Mas ele filma dessa forma: ele é humano. Não é uma mera abstração. Mas não é uma fantasia que você cria na sua cabeça de um personagem que é meramente aquele criminoso malvadão. Não é isso. Você tem um atrito com a realidade. E por que eu tô falando isso? Porque esse lado em que ele filma os homens, tais como eles são, é o eu quis dizer com filmar a heterogeneidade, todos os acidentes, e todas essas coisas que são incontroláveis, mas também são inultrapassáveis, para câmera, que é algo que certamente qualquer documentarista vai ter que lidar. Mas o que muda no Herzog, e caracteriza seu olhar, é que ele confronta essa realidade com as abstrações de crimes muito terríveis, como você muito bem falou, e, no confronto dessas duas realidades, uma não absolve a outra, de fato, mas elas são mutuamente enriquecidas. Aprende-se algo com elas. Não é só os rostos daquelas pessoas, ou os descampados ensolarados da prisão, ou a maca da prisão vazia… Não é só essas coisas, por elas mesmas. Há um conhecimento, há um sentido, que não está presente ali, que se dá através do material de arquivo, os fatos jurídicos, etc. E no Wiseman não: é só o que você está vendo ali. O sentido está colado ao que se vê; não há qualquer outro sentido fora do que se vê. E isso não me atrai. O que haveria a ser visto? Porque é como se eu pudesse ter essa experiência se eu fosse lá em Berkeley.

CN: Mas você teria outra experiência se você fosse lá em Berkeley, você teria a experiência da sujeira, você literalmente sentiria o cheiro...

JGP: Bom, mas aí é uma incapacidade do cinema.

CN: É, pra mim realmente é uma experiência do olhar. Pra mim, o Wiseman está no hall desses cineastas que têm esse desafio: como devolver uma inocência ao olhar? Acho que tem alguns cineastas que se colocam esse desafio...  Um olhar que está perdido, porque o espectador de hoje não tem como ter o olhar que as pessoas tinham com os filmes do Lumière, 100 anos atrás. O desafio de recuperar essa inocência, um certo deslumbramento com a imagem. Acho que o Rohmer tem esse desafio. E o Wiseman também. É uma coisa de olhar. As pessoas às vezes podem olhar os filmes do Wiseman e achar muito objetivos. É objetivo, mas tem um trabalho de olhar que é foda. Esse olhar... inocente talvez não seja a palavra, pois é muito elaborado, porque justamente não somos mais inocentes, então você tem que fabricar esse olhar para devolver essa inocência, de você se deslumbrar com aquelas coisas pequenas e impessoais. É uma operação que parece muito simples, mas é sofisticada.

JGP: Admito ser uma limitação minha. Mas, de fato, não vejo interesse na relação do Wiseman com a realidade.


Educação Sentimental

CN: O próprio Bressane falou na apresentação que o filme tinha uma relação com a pintura. E é uma coisa que já estava no Erva do Rato também.

JGP: Mas o filme não tem nada a ver com a fotografia da Erva do Rato, nem com a do Cleópatra. Tem pouca luz (no Educação Sentimental). Nem sei se tem luz, se é só rebatedor.

CN: É só ver o final do filme que você vê que é um set com luz.

JGP: Não, não tinha muita luz no final do final.

CN: Tem uns fresnéis. Ele filma um Fresnel.

JGP: Ele filma um Fresnel ou outro. Parece um filme com pouca luz. É uma luz bem soft, um filme escuro, com pouco incidência de luz, talvez como se fosse uma pintura holandesa que tem aquela luz muito soft. O Erva do Rato e o Cleópatra têm uma impressão de luz muito marcante, tipo os filmes do Brisseau. E é luz frontal, e ele joga mesmo né? Coloca uma gelatina aí...

CN: Isso é mais no Cleópatra. No Erva do Rato, pelo que eu lembro, é mais suave.

JGP: No final do Erva do Rato. É mais pro final. Não é suave porra nenhuma. Nível Claudio Assis, suave porra nenhuma. Bem saturada e luz frontalzona. Então, a luz de Educação Sentimental é muito bonita, eu acho a luz muito bonita. E suave, super suave, quase como se não tivesse luz, como se fosse uma luz natural que entra pela janela.

CN: Tem alguma coisa em comum com A garota de lugar nenhum, feito em poucos ambientes, sempre dentro de casa...

JGP: Será? Eu acho que não. Porque o filme do Brisseau é down to Earth, como eu falei. E o filme do Bressane não. Com exceção do primeiro plano (em que, como num stablishing shot, nos situamos imediatamente no Leblon, com o seu relevo natural e urbano particular), o filme todo se passa em um não-lugar.

CN: Os planos e as cenas não montam muito. Como se fossem planos-tableaux que não montam direito.

JGP: Os planos são para si mesmos.

CN: Você vai de uma cena para outra e não tem uma diegese, é difícil de estabelecer uma diegese.

JGP: Bressane é o cinema moderno. Ou modernismo... Cada plano é um plano, e tem uma aventura, tem uma invenção, e um plano super contra-plongée, cada um num espaço diferente, a atriz vai atuar de uma determinada forma... É um filme de negação, assim como o Sganzerla falava de anti-filme. Você vê o filme é como um não-filme em um não-espaço, em um não-tempo. E aí o prazer vem dessa estranheza, e desse desprendimento. Meu prazer do Bressane vem daí. Eu gosto muito da atriz. O conteúdo das falas do Bressane: tem algumas coisas que eu viajo, não acompanho, acho porém interessante ela falando dos pais. Uma coisa que me incomoda no filme é o personagem: ele é muito passivo, ele só tá ouvindo, queria que ele tivesse mais vida.

CN: Ele é passivo porque é a educação sentimental. Ele está ali para ser educado.

JGP: Ele é um aluno que só escuta. De qualquer forma, eu queria que ele desse mais vida esse personagem.

CN: Por isso que eu comparei com o filme do Brisseau. Porque são dois filmes enclausurados naqueles espaços. O filme do Bressane não transborda daquele espaço.

JGP: Certamente não transborda nada.

CN: Enquanto que se você pegar filmes como Filme de Amor, Cleópatra, tem um transbordamento. Filme de Amor, por exemplo, é um filme fechado em um apartamento também, embora no final eles até saiam. Mas boa parte do filme é dentro do apartamento. Eles ficam ali, fazendo composições, uns tableaux-vivants com os corpos, enquanto leem trechos de romances e tal... Mas a forma como ele usa aqueles corpos é muito forte, tem uma força e uma vitalidade ali que eu não vejo no Educação Sentimental. Sei lá... Sinto falta de alguma coisa.

JGP: É, eu entendo. Embora isso que você fale reforce esse não-filme.

CN: Sim, também.

JGP: É estranho, um filme estranho. O Nietzsche é um filme assim também, um não-filme.

CN: Mas o Cleópatra e o Erva do Rato eu já não acho que dá para dizer que são não-filmes não.

JGP: Não, não dá. Por isso que eu prefiro Erva do Rato e Cleópatra.


Abuso de Vulnerável

JGP: Um mistério. O filme me encanta.

CN: Ninguém gostou né?

JGP: Sim, ninguém gostou. Me encanta. Adoro a Isabelle Huppert e os momentos de crise dela. Acho aquilo claramente muito forte e muito bem filmado. Acho muito foda.

CN: Eu gosto da interação dos atores, que é uma coisa física. Não é sexual, mas é uma coisa física. O porte do cara, e ela com o derrame, tem uma coisa física. Eu gosto.

JGP: É ela que eu acho que consegue fazer esse olhar impessoal, objetivo, que você estava atribuindo ao Wiseman.

CN: É, eu acho que a operação do filme é essa: preservar ali uma ambiguidade... Como é um filme pessoal, autobiográfico, manter uma certa distância... se interrogar sobre aquilo. Ela faz o filme para se interrogar sobre aquilo.

JGP: Ao mesmo tempo não parece que é autobiográfico no sentido que não tem... o olhar da diretora não é seduzido por aquele universo, ou então vitimizando alguém, vilanizando o outro, não tem isso absolutamente. E por não ter isso você fica “cara, o que tá acontecendo?”. Ela é tão otária de cara ir nessa parada? Quando isso vai parar? E você fica com essas questões e o filme não te responde.

CN: O filme não te dá respostas fáceis. Por exemplo, a própria ideia do “abuso de vulnerável”, de se aproveitar de alguém em uma situação de fraqueza... É claro que isso está em pauta, mas é complexo. A personagem teve um derrame, então você pode pensar que ela está dando dinheiro porque... porra, ela sofreu um derrame, então foda-se o seu dinheiro, você quase morreu, você vai morrer daqui a pouco... Qual o mal em gastar com uma companhia que te dá prazer? Mas o filme não faz esse laço para você, não te empurra para essa conclusão.

JGP: Não faz. E você não tá entendendo. Você vai indo lá com o filme... Tem gente que vai falar que isso é mal filmado, que é um mau roteiro. Eu acho que não. É como ela queria passar, é como ela estrutura da coisa.

CN: Eu gosto muito das cenas da relação de poder. Ela não pode sentar sozinha, então ela tem que sempre ficar pedindo, mas ao mesmo tempo não é aquela coisa de implorar... É uma relação de poder, um exercendo poder sobre o outro...

JGP: Certamente o filme tem uma coisa esquisita de não ter muito mais informação a respeito dos personagens do que aquilo ali... O cara é meio mafiosão, é o cara que gosta de ser o dono da paróquia, e o personagem é aquilo ali e acabou. E ela, ela está lá, assinando cheque, sofreu o derrame. Daí você pode falar: tá, mas o filme não evolui, não se torna mais complexo... Isso eu até aceito, e por isso até não amo o filme. De qualquer forma, o olhar da Breillat que eu acho realmente forte. E eu quero até destacar esses momentos do começo do filme, com ela passando mal, depois indo pro hospital, tentando se recuperar, que acho realmente muito forte, eu fiquei impressionado. Que é uma coisa que é da interpretação da Huppert, mas é realmente da câmera. Aquela câmera impassível, distanciada, e impessoal filmando aquela tragédia, e aquele corpo defeituoso, e isso dá uma força...

CN: Poderia ser um dramalhão muito tosco. Tem todos os elementos: você tem derrame, você tem uma pessoa se aproveitando da outra, mas ela inverte isso tudo. É o contrário...

JGP: O contrário em que sentido?

CN: Justamente por esse olhar do filme.

JGP: Não é um melodrama porque a personagem da Breillat é sempre forte também. Mesmo em sua fraqueza e debilidade, assinando os cheques, ela é íntegra, sem fragilidades. E as pessoas não gostaram nem disso… Aí realmente é uma coisa de educação do olhar.

CN: É uma questão de gosto.

JGP: É uma questão de gosto, mas prefiro um termo mais forte como educação do olhar, porque o que ela faz ali não é convencional absolutamente. Envolve uma distância, envolve uma maneira de encenar muito particular. Que essa coisa que você falou do Wiseman, a construção do olhar.

CN: O que eu acho foda é como pegar todos esses elementos terríveis, que não são fáceis de filmar, que é uma pessoa com AVC, e uma pessoa se aproveitando de outra, e não criar relações de horror, não se horrorizar com o AVC, e nem vitimizar ela... Basta comparar com um Haneke, com Amor. E na Breillat esses elementos estão todos no mesmo plano no filme. As coisas não têm muito volume. Tá tudo ali naquela superfície.

JGP: Eu acho que na ficção você tem esse controle dos elementos que estão em cena, do mundo que está em cena, do que está acontecendo... O AVC, a recuperação no hospital, esse controle das coisas que estão acontecendo que forma esse olhar impessoal. E aí você gera a ficção e a força da ficção a partir do controle da realidade que, em si, é descontrolada. Enquanto que esse olhar impessoal, num documentário, sabe-se lá o que você vai receber… Você tem que lidar com um mundo tal como ele é, e por isso não me atraio pelo Wiseman – e é uma diferença entre o documentário e a ficção – você não tem essa singularidade do que está acontecendo. Nunca é singular, é sempre banal. É cotidiano, é mundano. Enquanto que na ficção é singularizado, sem contar o controle das coisas que estão no quadro. Mas a sensação principal é essa: que é singularizado, é dramatizado.

CN: O mundo da ficção é um mundo depurado. Mas no documentário é também, como eu argumentei com o Wiseman.

JGP: Não, não é. Porque, por exemplo, se há um professor ruim, você tá lá vendo aquele professor ruim.

CN: Mas aí são as escolhas do cineasta. Ele achou que era bom. Você achou ruim. E isso acontece com o filme de ficção: o cineasta armou uma cena ali que ele achou que era boa, e você acha ruim.

JGP: Claro, mas é como se você tivesse mais indefeso no documentário às coisas mais medíocres. Se, na ficção, o diretor toma a decisão de filmar um professor ruim, e pior ainda se achar que tal professor é bom, isso dá um significado ao que é filmado. Além disso, houve um trabalho de construção daquele professor, não é o professor “em si”, tal como existem na realidade. Já um professor ruim em um documentário, sobretudo se for um documentário do Wiseman, não interessa se ele é ruim ou não. Está lá o professor, e você é indefeso a ele, a sua ruindade. Porque o sentido não está colado à qualidade do professor, mas somente à realidade da existência do professor.

CN: A ficção é uma encenação, você quer provocar alguma coisa no espectador, você vai encenar de uma determinada maneira... Vai encenar de maneira a provocar esse efeito nele... Isso num plano ideal, porque a ficção também é cheia de ruídos.

JGP: Os ruídos no filme da Breillat são incorporados à dramaticidade do filme.

CN: Mas você chama de ruído, por exemplo, o braço dela torto?

JGP: Na verdade, não. Eu chamo de ruído… Os instantes inesperados, que não estavam no controle das intenções do diretor, ou do ator. Não sei dar um exemplo ao certo em Abuso de Vulnerável. O fato é que, devido ao olhar impessoal da Breillat, ela incorpora para a cena à realidade que está à sua frente, seja quais acidentes passem por ali. Mas não há só a realidade; o drama está lá, significando a realidade. No Wiseman, há somente a realidade, inerte a si mesma.


 Dezembro de 2013