Um Copo de Cólera,
de Aluízio Abranches (Brasil, 1999)
Ruy GardnierNo primeiro plano do filme um carro passa. O plano continua, filmando o nada, respeitando a duração. Logo depois, outro carro passa e a cena acaba. Pensamos imediatamente: que plano ímpar na cinematografia brasileira! E, num segundo momento, pensamos: ou trata-se de um belo trabalho ou de afetação de iniciante. Um Copo de Cólera, mais tarde, provará que essas duas primeiras impressões estão corretas.
O começo do filme é apreendido friamente, Júlia Lemmertz e Alexandre Borges sentados em cantos opostos de uma mesa. Aos poucos ouvimos o monólogo interior do personagem masculino, e depois somos levados à cama, onde se passará a primeira metade inteira do filme. Nela, o filme se faz. Num magnífico trabalho de coreografia e atuação, os dois sentem-se à vontade para fazer seus corpos se mexerem como que agregados um ao outro pelos jogos do prazer. A cena é longa, mas é pelo apelo à famosa duração certa (juste durée) do que por mero artificialismo ou trivialidade.
Terminada a cena, entretanto voltamos à realidade, personagens e audiência. O casal vive bem na cama, mas não se suporta fora dela. E parece que é essa mesma a erlação entretida com o cinema pelo diretor Aluízio Abranches. Porque se antes os monólogos eram desprovidos de qualquer sentido além de remeter ao texto original de Raduan Nassar, a força do filme estava nas imagens e na barreira mental estranha que impedia os dois corpos de se agregarem. Depois do coito, a devoção ao texto original se torna impraticável. Que o livro orginal tenha uma prosa fabulosa, admitimos. Mas é inadmissível tentar levar isso à tela sem qualquer adaptação ou sem um maior trabalho de mise-en-scène (dos intérpretes, dos enquadramentos). Se é de aplaudirmos uma adaptação cinematográfica de um texto literário (o que acontece na primeira parte), a mesma reação não é possível com a adaptação literária de um texto literário. Para traduzir, é necessário transcriar, aprendemos com os irmãos Campos. Todavia, se engana quem imagina que esse trabalho se resolva com a melhor interpretação possível ou com alguma boa vontade ou fidelidade ao texto. Fidelidade ao texto nunca deve significar abandonar o cinema, arte maior da realidade. E por mais que vejamos os atores se digladiarem para conseguir fazer caber todas as palavras de Raduan Nassar em suas bocas e gestos, percebemos que o problema principal está já no início. A discussão, irrealista, não nos faz viajar para nenhum universo puramente ficcional, mas também não nos conduz à pele e aos sentimentos dos personagens em questão. A cena atinge o que não poderia, o meio-termo.
Aluízio Abranches, entretanto, tem talento. Seu problema, parece, reside na ousadia. Não falta ou excesso, mas um pouco dos dois. Pois toda a ousadia que surge do filme parece estar balizada na figura de Raduan Nassar tal como um filho mostra a língua para os transeuntes apenas porque tem a presença do pai para protegê-lo. Ousadia bela, sim, a da cena de amor. Pouca ousadia, contudo, para abandonar a figura do pai e poder se afirmar plenamente como realizador. Esperamos então por um segundo filme.