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Um Certo Kubrick

por Eduardo Valente

Não houve outro cineasta como Kubrick. Houve mestres, houve gênios, houve poetas, houve artífices, houve técnicos. Kubrick era isso tudo e algo mais. Nenhum outro realizador nos deixou doze filmes onde, como já se disse, nenhum era ruim ou médio. O décimo-terceiro ainda vem aí, mas o próprio Kubrick dizia ser o seu melhor. Resta ver se a versão que nos chegará será tudo que o mestre queria que fosse. A obra de Kubrick, que em última instância é o que fica, não recebe a mesma atenção que a de um Fellini ou de um Godard ou de um Hitchcock porque é de difícil rotulação. Enquanto um Fellini é sempre um Fellini, Kubrick passeou por todos os gêneros, estilos, décadas, temas. O que unia seus filmes era exatamente a perfeição de cada um, a construção cinematográfica, narrativa, a adequação do estilo ao tema. Por isso mesmo fica mais difícil para os críticos analisarem a obra de Kubrick como um todo. Mesmo agora com sua morte, os artigos nos jornais não deram conta de um estudo de sua obra, pois esta precisa de livros e mais livros. Se desvenda com bem mais complexidade do que se poderia prever.

Então, quando instado a escrever sobre Kubrick num espaço reduzido, só poderia imaginar tentar falar do todo através de um exemplo, pois reconheço a tarefa inumana que seria compactá-lo. Mesmo assim, como fazer para escolher um Kubrick favorito?? Sentei para pensar em cada um dos seus filmes. O Iluminado e Nascido para Matar, embora fantásticos, não são os que mexem mesmo comigo. Lolita, 2001, Dr. Fantástico, Laranja Mecânica, que amo, já foram analisados e reanalisados vezes demais, e não creio que possa contribuir muito mais com o que já foi dito. Barry Lindon e Spartacus nunca pude ver pois não tive a chance exata de exibição, já que não cabem na telinha da TV em qualquer versão de vídeo. A Fear and Desire e Killer´s Kiss nunca tive acesso. Sobravam dois dos meus filmes favoritos, justamente por serem considerados menores (quem não adora os injustiçados??), e muitas vezes esquecidos perante os já citados: Glória Feita de Sangue e O Grande Golpe. Lendo as matérias de sua morte, vi que o primeiro recebe um pouco mais de atenção ainda hoje, então me decidi a tentar cantar minhas homenagens ao mestre através deste filme, pouco visto perto de sua excelência.

O Grande Golpe (The Killing) EUA, 1956

Embora não se possa pensar que Kubrick tenha planejado de tal forma sua carreira toda, a verdade é que, em retrospectiva, há uma interessante divisão entre as fases da carreira de Kubrick a partir de O Grande Golpe, seu primeiro filme por um grande estúdio. De O Grande Golpe a Spartacus, passando por Glória Feita de Sangue Kubrick se introduz ao cinema mostrando sua maestria e compreensão de gêneros cinematográficos consagrados (policial, guerra, épico), até porque esta seria a única forma de ganhar a confiança destes estúdios. Com maior liberdade, Kubrick então dedica-se a obras de difícil categorização, que expandem completamente a noção de gênero: Lolita, Dr. Fantástico, 2001 e Laranja Mecânica. No último estágio de sua carreira, Kubrick volta a gêneros conhecidos, mas o faz com a experiência e a liberdade adquiridas nestes anos, o que o permite ousar e redefinir fronteiras do drama histórico (Barry Lindon), do filme de terror (O Iluminado) e do filme de guerra (Nascido para Matar).

Atendo-se a este panorama, podemos pensar em "O Grande Golpe" como o primeiro passo de uma caminhada, no qual devemos procurar sinais do que viria ao mesmo tempo em que confrontamos os tipos de expectativas que o cineasta tinha que lidar da parte de estúdio, público e de si mesmo. Podemos perceber então, em O Grande Golpe todas as principais características deste consagrado gênero que é o filme policial, ou mais ainda, o filme "de bandido". O trailer original do filme falava justamente desta herança ao compará-lo com Scarface e Little Caesar.

Kubrick, então, jogava com regras pré-estabelecidas. Uma das principais e mais restritivas, dizia respeito justamente ao final do filme. Kubrick disse em 1960: "Um filme ‘de crime’ é quase como uma tourada: tem seu ritual, seu ritmo, que deixa claro que o criminoso não escapará, e assim, embora você possa suspender seu conhecimento deste fato por algum tempo, lá no fundo você está consciente do fato que ele não será bem sucedido". Esta citação é interessante não só pelo que diz do final, mas pela parte que fala do "ritual", do "ritmo". Kubrick sabia que havia certas convenções as quais parece neste início de carreira interessar-lhe justamente dominar, como se para depois poder se libertar delas e aprender a subvertê-las.

O Grande Golpe é um filme de crime. Conta a estória de um assalto a um jóquei clube, no qual os criminosos sabem existir dois milhões de dólares. O que faz do filme uma obra-prima do gênero é a capacidade de Kubrick de pegar as citadas regras e dar-lhes um tratamento estilístico e narrativo mais do que funcional, hipnotizante. Um dos truques mais inteligentes do diretor é o uso de um narrador não só imparcial, mas frio e quase irônico. Isso é desconcertante, pois este narrador parece saber o tempo todo do resultado final do crime, e brinca conosco, pobres mortais que desconhecem. Na verdade, o narrador é quase uma encarnação do diretor-montador, pois ele é que nos joga de um lado para o outro entre passado e presente, quase que revelando o processo narrativo a céu aberto.

Este processo narrativo certamente foi a mais destacada característica do filme, e não sem razão. Muito antes de Cães de Aluguel (assistam aos dois e não resta dúvida da herança), Kubrick joga com o tempo de um crime. Ele introduz a situação geral, depois volta no tempo para introduzir o drama pessoal de cada personagem, e finalmente chega ao momento do crime o qual ele repete várias vezes de pontos de vista diferentes, cada vez aumentando o entendimento e expectativa do que vai acontecer. Chega a ser impressionante a semelhança entre esta estrutura e a de Tarantino, especialmente porque no final de O Grande Golpe também há um tiroteio no qual todos acabam mortos. O diferencial de Kubrick (que o torna às vezes mais "pós-moderno" e metalinguístico ainda) é justamente o narrador que parece brincar com esta estrutura, como se o espectador fosse um títere em suas mãos.

Porém, brilhante como seja esta estruturação, não está só nela a força de Kubrick. Ele cria personagens que adquiram imediata empatia com o espectador através de tintas fortes (desde sotaques a tiques a esposas doentes), isso em pouquíssimo tempo. Isto é importantíssimo pois não se pode perder o ritmo do filme de ação, mas ao mesmo tempo não se tem o espectador nas mãos com personagens sem empatia. Kubrick sabia disso e contratou Jim Thompson especialmente para escrever alguns diálogos do filme para que os personagens ganhassem força. Mas, mais do que isso, escalou o elenco com perfeição. Como ele mesmo diria depois: "O maior poder que temos está no clima e sentimento que produzimos no espectador através dos atores". Assim, cada rosto e atuação no filme arranca exatamente o esperado do espectador. Especialmente brilhante é o personagem principal de Sterling Hayden, o próprio criminoso profissional, metódico, frio, mas com um objetivo claro e emocional em mente.

Visualmente o filme também é rico. A fotografia trabalha com um jogo extremo de luz e sombras que remete ao film noir, mas o faz trabalhando sempre com grande contraste. Não há no filme os tons de cinza do cinema noir típico. A luz é dura e marca profundamente ambientes e personagens. Já no que se refere ao enquadramento, Kubrick permite que haja muito espaço "vazio" em torno dos seus personagens, e os filma quase sempre num ângulo de baixo para cima. O resultado é uma diminuição dos personagens perante o ambiente que resulta num subconsciente sinal daquilo que ele cita no início como a inevitabilidade do fracasso. Ele cria ainda longos planos em movimento na apresentação dos personagens, filmados sempre com a lente 28mm, a maior grande-angular disponível então, o que aumenta a sensação de estranheza e inferioridade. Já nos planos de ação, os cortes são mais rápidos, por vezes até inesperados.

O filme poderia ser destrinchado ainda mais, plano a plano, para provar sua genialidade. Estas características destacadas, no entanto, já dão uma medida da sua força. Um último detalhe importante diz respeito ao final. Sim, pois os bandidos fracassam como era de se esperar. Mas, isso não acontece completamente de acordo com a "moralidade" vigente no sistema hollywoodiano de então. Eles não fracassam por causa das autoridades (muito pelo contrário, estas não fazem idéia do que aconteceu). Como ficaria claro em toda obra subsequente do diretor, a semente da destruição do homem está nele mesmo. O grupo é derrotado pela fraqueza de um deles. E, também de acordo com crenças do diretor, em última instância a derrota final advém de fatos inexplicáveis, do acaso, de forças maiores que desde o início não permitiam a possibilidade de sucesso. Hayden, derrotado por estas forças (numa cena que lembra muito o Tesouro de Sierra Madre, mas com menor conotação moralista) não se esforça para escapar da polícia. Pois o que é a prisão perante a derrota maior que acabou de sofrer?? Por isso tudo, O Grande Golpe é uma obra que mais do que embrião de um gênio é parte destacada da carreira deste.