Tudo Sobre Minha Mãe, de Padro Almodóvar (Espanha/França, 1999)

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Cecilia Roth em Tudo Sobre Minha Mãe de Pedro Almodóvar

Existe um prólogo estranho em Tudo Sobre Minha Mãe: nele, sabemos tudo o que acontecerá no filme, temos do filme todas as primeiras pistas para construí-lo na nossa cabeça antes que realmente vejamos a confirmação na tela. Temos de primeira uma dica: All About Eve, o filme de Joseph L. Mankiewicz, que passa na televisão; depois, a silhueta de Manuela (maginificamente interpretada por Cecilia Roth) em frente ao enorme rosto da atriz Huma (Marisa Paredes), que nos indica que Huma exercerá um papel enorme na vida de Manuela; Huma interpreta Um Bonde Chamado Desejo, peça de Tennessee Williams, que Manuela vai ver com seu filho Estéban: saberemos que o filme irá emular a peça; vemos, por um descuido, Estéban atravessar na rua e esbarrar num carro que freia rapidamente: saberemos que, por uma grande paixão, ele morrerá atropelado; no começo do filme, Manuela representa uma encenação em que ela faz uma mãe que tem que doar os órgãos de seu filho morto: não há dúvidas de que isso ocorrerá durante o filme. Todo o poder de narrativa de Padro Almodóvar pode ser encontrado nesse começo de filme, nessa pequena tragédia de amor materno que acaba com a morte do jovem Estéban. Almodóvar cria uma rede de referências impressionante, juntando A Malvada, Um Bonde Chamado Desejo e Noite de Estréia (de John Cassavetes, recém exibido no Festival do Rio 99). Mas quem imagina que toda essa mestria narrativa servirá para fazer um filma asseptizado, como nos filmes recentes de um Peter Greenaway, em que a função referencial é o propulsor do filme, está redondamente enganado. Se Almodóvar tem compulsão a citar, é mais por amor de suas vivências de cinema do que por virtuosismo.

Todo o alardeado "pós-modernismo" de Pedro Almodóvar não diz respeito a outra coisa: sua agilidade em citar, em criar metanarrativas para comentar seu próprio filme. Mas se formos retomar a divisão de Jakobson das funções da linguagem, a função metalingüística, função privilegiada por todos os teóricos formalistas do século XX e por escritores que vão de Joyce e Faulkner a Burroughs e Pynchon, não desempenha em Almodóvar um papel preponderante. Ao contrário, ela está em seus filmes explicitamente para se submeter à grande função almodovariana, a função emotiva. O estudante aprende na escola o que é a função emotiva: é aquela que apresenta a maior ênfase no emissor, nos sentimentos que o emissor tem quando transmite a sua mensagem. E o filme de Almodóvar, se perfaz o percurso estético moderno (função poética) e pós-moderno (metalinguagem), é justamente para mostrar que a função emotiva é muito mais transbordante e rica de sentidos que as outras. Daí a submissão da primeira parte de Tudo Sobre Minha Mãe sobre a segunda: a primeira metade do filme é inteligente, mescla e desmescla de discursos, de jogos de linguagem (quando vemos o menino ser atropelado num dia de chuva ao tentar receber um autógrafo de sua atriz preferida, lembramos imediatamente de Noite de Estréia, mas a graça da cena reside principalmente na convergência de emoção que as duas cenas desencadeiam); a segunda é pura entrega à narrativa, completa agregação da mensagem à tela. Talvez seja esse o desejo profundo de Almodóvar: citar num primeiro momento para que não estejamos mais, num segundo momento, no cinema de Almodóvar, e sim no próprio mecanismo do cinema, num mecanismo puro de emoções onde pouco importa o autor, mas onde toda a atenção deve ser dada ao desenrolar dos acontecimentos e da vida dos personagens.

O desejo de cinema de Almodóvar, principalmente de A Flor do Meu Segredo até agora, indica uma crescente profissão de fé na lógica materna do autor de A Lei do Desejo: nunca a culpabilização, nunca a pena (seja de morte ou em vida, tanto faz). A lógica dos personagens é a lógica da mãe, a lógica que permite tudo de seus filhos: daí não acharmos nenhum absurdo quando Lola, a travesti que é responsável por grande parte das desgraças de Tudo Sobre Minha Mãe, é permitida colocar no colo um bebê. Se num filme tão adorado por Almodóvar como A Noite do Caçador (de Charles Laughton) o horror está em ver o monstro (Robert Mitchum) tentando chegar perto das crianças indefesas, em Tudo Sobre Minha Mãe o monstro é outro: é o preconceito e o orgulho da mãe de Rosa, que atormenta a filha por ter decidido ser freira, depois por ir viajar para El Salvador, depois por trazer uma prostituta para a casa. Almodóvar opõe tolerância a naturalidade ao falar sobre seu filme1: a tolerância envolve um elemento moral de aceitação, mas com um fundo de preconceito embutido; a naturalidade, ao contrário, implica toda a positividade do ato humano, todo o aspecto feminino da lógica de Almodóvar2. A lógica assume o papel do preconceito. A lógica, como ato social da recognição dos valores estabelecidos, assume como seu o que se lhe parece e como outro aquilo que não se assemelha. O feminino da lógica seria justamente aquela esfera onde 'entra tudo', a esfera da naturalidade. Tudo Sobre Minha Mãe é esse universo mítico onde o feminino vence, onde não se trata mais de tolerância burguesa, e sim de total aceitação materna. A verdadeira liberdade seria a instância onde o elemento da tolerância não mais entrasse; onde se pudesse dizer sim a tudo, a todos os atos concretos da vida.

Daí poder finalmente florescer um universo próprio do amor em Almodóvar. O amor é aquilo que pode ser partilhado numa comunidade, num ambiente ideal de convivência. Esse ambiente pode ser um quarto — lembre-se da bela cena em que Cecilia Roth, Penelope Cruz, Marisa Paredes e Antonia San Juan se encontram na casa de Manuela para discutir assuntos sérios e tudo que vemos depois são as moças conversando sobre as designações de chupetas, boquetes e pirus —, mas pode também ser um país: a linda fábula que é Carne Trêmula ou a alfinetada à prisão de um figurão espanhol em Todo Sobre Mi Madre. O desejo de uma agremiação que acolha o desejo é o reflexo da mais pura beleza moral — e mais uma vez aqui eis o esforço para incorporar a estética apenas como um ramo da ética — do cinema de Pedro Almodóvar. Quanto a isso, basta ver o itinerário de Manuela, inicialmente emulado da peça de Tennessee Williams: ela foge de casa, grávida tal qual a Estela do Bonde..., para criar o filho longe do marido dominador. Ela dá ao menino o nome do pai, Estéban (o pai, antes da saída de Manuela, já chama-se Lola, a travesti). Manuela cria o filho, e consegue uma estável posição de enfermeira. Depois da morte do filho, ela vai à procura de Lola, mas o que ela encontra é uma outra mulher que está grávida de Lola. A mãe está doente com o vírus do HIV e não se sabe se sobreviverá ao parto. Resta viva apenas Manuela com a nova criança, que mais uma vez se chamará Estéban. A maternidade por via transversa, eis um tema intimamente almodovariano, como também a noção de autenticidade dada pela travesti Agrado: "Uma pessoa é tanto mais autêntica quanto mais se parece com aquilo que ela sempre sonhou para si mesma".

Ruy Gardnier

1. Na conferência de imprensa sobre Todo Sobre mi Madre em Cannes, 1999.

2. Devemos a expressão "feminino da lógica" a Bernardo Oliveira, em texto dedicado a A Lei do Desejo, quando da reedição desse filme, na revista Limite, edição especial, número zero, outubro de 1996.

Cópia fotoestática da vida:
todo sobre mi madre

A cada filme, Pedro Almodóvar acentua a gama de comentários acerca do cinema americano ou, simplificando, a carga crítica de seu cinema. É preciso se ter em conta esta relação, sobretudo quando buscarmos o tão famigerado limite entre o melodrama e a comédia... De outro modo, corremos o risco de acreditar na intenção de nos fazer chorar. Isto é uma ilusão. Mais parece que Almodóvar chora de rir de nossas lágrimas.

Todo sobre mi madre é tudo que se pode esperar do cinema de Pedro Almodóvar e muito mais, isto é, um cinema referencial, explicitamente alimentado pela intuição e pelo gosto pessoal do autor, o qual ele converte em criação. Um olhar para os clichês como em Carne Tremula, Mujeres..., Tacones lejanos e outros. A narrativa destes filmes tão característicos, incorre num processo crítico que é, ao mesmo tempo, produto do gosto, comentário crítico imparcial e afetivo e, finalmente, criação. Isto fica bem claro em Carne Tremula, talvez como a primeira vez que tal processo aparece com toda força. Todo sobre mi madre extrapola esta forma. Expande o comentário, porque, antes de comentar, recria o clichê. O próprio comentário já é uma criação. É o processo inverso do de Carne Tremula. Neste, as cenas foram escritas em função do roteiro e, embora altas cargas de cinefilia brotassem daí, não chegavam perto da verdadeira homenagem ao cinema que é Todo sobre mi madre.

Todo sobre mi madre é a história de atrizes que vivem um longo e duplo papel no palco e na vida real. Simulam e dissimulam para viver e sobreviver. Obviamente Almodóvar não moraliza a questão, optando por trazer o esclarecimento à baila através do travesti Agrado, "uma mulher autêntica". O que importa não é o pau, mas o modo. É um filme de modos.

Os homens têm papel crucial, como o próprio Almodóvar confirmou recentemente. Eles são uma espécie de referencial estático aonde as mulheres do filme devem orbitar com graça, porém, histéricas: o filho morto (a memória), o pai desmemoriado, o filho adotado (o futuro) e o travesti (o pai ausente).

E as mulheres são as maravilhosas Dana Rowlands, Bette Davis e Gloria Swanson. Elas encarnam nos personagens através de uma força dupla: de um lado, as atrizes são evocadas por situações semelhantes, como por exemplo, a morte da fã de Opening Night; por outro, o drama pessoal de mulheres que tiveram que ‘atuar’ na vida, como Gloria Swanson. Um movimento duplo que estabelece uma compreensão bastante poética do filme: uma homenagem às mulheres, sobretudo às atrizes e que merece um Bravo! e a inscrição definitiva (já não tínhamos feito?) de Pedro Almodóvar como um dos mais criativos cineastas da história. Ou alguém duvida/discorda que sua obra vale já tal título? Bloco na rua e e-mails ao Contracampo!

Bernardo Oliveira