Shadows
por Bernardo Oliveira
Shadows, de John CassavetesUm improviso jazzístico é algo permeado de acaso, mas também de distinção, técnica, cérebro criador. Distinção por que nunca podemos avaliar comparativamente. Por exemplo, quando Coltrane manifesta sua nova criação, não é preciso saber o que Sonny Rollins está fazendo. Sabemos sim que ambos se inscrevem num movimento de busca, uma autêntica busca no deserto, a música do vento. Eles podem se encontrar neste deserto e trocar umas idéias. Mas não será um encontro para determinar quem é melhor, mas para afirmar a distinção. A comparação, pois, é infecunda. E a técnica? Ora, a técnica. Tão necessária para engendrar um ato competente. Coltrane, Shafi e Rollins estudaram para atingir a técnica necessária para o que desejavam fazer. Os Beatles utilizaram a técnica a partir de sua necessidade. Hermeto e João Gilberto: repertório distinto para uma genialidade sem comparações; repertório técnico absolutamente variado e...sem importância. A super-valorização da competência (sempre uma competência em reproduzir) leva a uma consideração equivocada sobre a técnica. Mas assim é o mundo hoje, não entremos em conflito. A questão é mais complexa, mas podemos dizer, grosso modo, que técnica é informação. Cinema também é uma questão de técnica.
O problema é que um improviso suscita sobretudo uma idéia de acaso. Mas nesta manifestação existem tramas das mais diversas naturezas. Por exemplo: se Charles Mingus procura fazer um solo de contrabaixo sabemos que ele se manifesta ali pelo acaso. Sua intuição guia suas mãos através de um combinado de técnica e audição. A técnica fornece os meios; a intuição e a audição, pensam o solo. O cérebro criador, o ímpeto que faz com que acreditemos definitivamente no valor daquela música, é um diferencial interessante e intrínseco. Vejamos outro exemplo: Trilok Gurtu, um percussionista indiano que se meteu nos meios jazzísticos ocidentais, revela uma técnica surpreendente acoplando à bateria as técnicas da tabla. Quando toca a tabla em seu país Trilok não faz somente música, mas uma manifestação religiosa. No jazz, ou com Gilberto Gil no disco O sol de Oslo, seu trabalho é outro. Quando Trilok improvisa, há intuição, técnica, cérebro, distinção e acaso, mas dependendo do seu papel (religioso ou estético?) sabemos o que podemos esperar. O improviso religioso é de outra natureza, possui outros fins. Não quer dizer de modo algum que não podemos nos surpreender na Igreja. É uma questão de feeling diria o outro. É um problema estético, sócio-cultural ou qualquer outra coisa do tipo.
Deste modo, a questão do improviso pode se resolver no que podemos esperar do improvisador. Claro está que operamos aqui com reduções negligentes. O improviso sempre é carregado de um mistério. Não podemos dar conta deste mistério em poucas linhas. Mas, geralmente, ele encerra suas potencialidades neste mistério, que é o mistério do estilo. Ele é o fator de distinção e é por isso que Miles Davis e Clifford Brown são melhores que Winton Marsalis. Por isso que Mingus e Ron Carter são infinitamente melhores que o queridinho Christian MacBride. Por isso que entre Sganzerla e Walter Salles há um abismo. E é por isso que o jazz atual é tão patético, porque parece uma música religiosa às avessas. Se o jazz começa na igreja ele termina nos salões luxuosos de Nova York, 70 dólares por cabeça. Não porque virou artigo de luxo, mas porque se transformou num mar de reproduções vazias em que basta ter a técnica e os padrões e combiná-los "como deve ser". Pois existe um jazz mítico (melhor dizer, mitificado) e ele determina este "ser".
O improviso teatral é diferente do improviso musical. Nele há um feedback que determina a atuação. O ator que está no palco recebe da platéia a carga necessária para continuar. Numa comédia isso é flagrante: quem garante são os risos.
A ciência é a seguinte: delimitar os espaços e dispor os atores sambando no tempo. O que podemos esperar de um filme de improvisos? Um tempo fílmico, um tempo mágico e decepcionante. A decepção é o diferencial, uma arma para sacudir o espectador. Nunca nos decepcionamos com Walter Salles ou com Ivan Reitman. Nunca somos surpreendidos pelos mesmos. Mas podemos falar não de uma decepção estritamente estética. Se o resultado estético de um filme é ruim, se um improviso jazzístico não tem força, se o ator vacila, este não é o problema. A decepção pode ter o ritmo do cotidiano, o vibe de nossas decepções com o irmão mais velho, com nosso melhor amigo. Nossa namorada pode nos decepcionar e é doloroso. Improvisamos uma saída mental para continuar. O filme e a música podem ter estas armas para continuar, bem como, o dispositivo para nos deixar eternamente seqüelados. É problema da vida cotidiana. Seu intercâmbio com a arte é flagrante.
Shadows é um problema. Não se parece com um filme, mas com um improviso jazzístico e não é à toa que Shafi Hadi e Mingus compõem a trilha. Como dissemos, é uma questão de estilo. O ator que improvisa não obtém o retorno do público. Ele delineia sua voz, seus gestos e sua expressões como um improviso musical, sem retorno. Neste sentido é que o vibe do cotidiano é expresso por esse filme. O aviso no final do filme não é dado à toa. Busca o confronto entre o que vimos, o que sentimos, o que pensamos ao longo do trabalho. Se fosse dado no início, o filme seria esvaziado porque saberíamos de antemão e acreditaríamos numa dramaticidade do improviso. Trata-se de observarmos como os atores obtém força para continuar. Importa sabermos que aquilo foi uma espécie de manifestação, energias que afloraram, indeterminação. É desafiar certa "organização", certa competência que o cinema americano carregava e que neste filme é dissolvida em prol da surpresa, da verdade, da beleza e da força de sentimentos muito próximos e muito distantes do próprio cinema americano. A técnica é importante, tanto para o cineasta quanto para os atores. No entanto funciona como acessório. O que importa é a galeria de personagens e seus movimentos no tempo.
O importante em Shadows é fazer os atores bailarem na nossa frente, sem sabermos que se trata de um improviso. Deste modo eles figuram como profundos intérpretes de um texto, por si só, surpreendente. Suspeitamos de certos cacos, endossados pela câmara desordenada, pela música confusa e retumbante, pelos atores titubeantes "como na vida real". No entanto a dialética reside na liberdade da feitura e no talento intuitivo dos atores. As múltiplas virtudes do filme são reunidas nestes dados que o fazem semelhante ao jazz. Estórias da vida, as sombras do cotidiano, as sombras do amor, da morte, do acaso. O início do filme diz tudo: uma imensa alegria, um ponto de tristeza, uma oposição entre o grave e o agudo, mas uma oposição sintética. Identificamos esta oposição en bloc. E esta multiplicidade é que torna Shadows uma obra-prima incontestável da história do cinema. Por sua capacidade de nos reportar a um lugar muito árido e confuso. E ao mesmo tempo, estamos em casa, no quintal, regando as plantas.